Entrevista: Marcatti

entrevista por Marcos Paulino

O site de Marcatti adverte os visitantes: “Histórias em quadrinhos nojentas e desaconselháveis a todas as idades”. Não é verdade. O trabalho que o quadrinista oferece ali é muito recomendável. Aos 55 anos, o paulistano Francisco Marcatti Jr. tem uma longa jornada dedicada aos quadrinhos, iniciada quando, aos 15 anos, teve duas histórias publicadas na revista “Papagaio”, feita por alunos do Colégio Equipe, onde ele nunca estudou.

Na edição de abril de 1979 da revista “Boca”, publica sua primeira HQ em que exibe a influência do comix underground de Gilbert Shelton e Robert Crumb. No ano seguinte, com o dinheiro de uma herança, compra uma impressora off-set de mesa, e assim, além de escrever, editar e desenhar suas histórias, passa também a imprimir, dobrar, grampear e distribuir as diversas revistas de sua autoria. Simultaneamente à sua própria produção, Marcatti colaborou com revistas como “Chiclete com Banana”, “Mad” e “Casseta & Planeta”, além de ter feito as capas dos álbuns “Anarkophobia” e “Brasil”, da banda Ratos de Porão.

Em 2001, criou aquele que é provavelmente seu personagem mais conhecido, Frauzio, para uma revista mensal, lançada pela Editora Escala e distribuída em bancas de jornal. Hoje, a HQ de Frauzio é trimestral e pode ser comprada no site do autor, assim como seus demais títulos. No ano passado, Marcatti participou da 2ª edição do FLIQ (Festival Limeirense de Quadrinhos), assim como tem feito com todos os eventos onde é possível divulgar seu trabalho, conforme conta na entrevista a seguir ao Mundo Plug, parceiro do Scream & Yell.

http://www.marcatti.com.br

Quando você se descobriu artista?
Quando era bem pequeno, vivia quebrando coisas e minha mãe dizia que eu só fazia “arte”. Até hoje, continuo apanhando por ter escolhido essa profissão. [Risos] Falando sério, não me considero artista. Prefiro me perceber como um profissional de comunicação. Aquilo que faço depende da participação do leitor. Não quero fazer algo pessoal e fruto exclusivo de mim. Quando crio uma HQ, produzo só a metade do trabalho. A outra metade é concluída individualmente na cabeça e na alma de cada leitor.

O humor muitas vezes escatológico sempre foi sua vocação?
Sou “filho” da contracultura. Meu objetivo sempre foi provocar e questionar, e o humor é a mais poderosa forma de criar desconforto. A primeira vez que alguém usou a palavra “escatológico” para descrever meu trabalho, fui buscar seu significado no dicionário. Fiquei fascinado pelo fato de ter duas definições tão diferentes. Abordar excrementos e etc. é a parte divertida. Mas a segunda definição, que trata do estudo do fim do mundo sob o aspecto bíblico, me deixou mais inspirado. Com toda a inteligência e sabedoria que o bicho-homem tem, é um desperdício de neurônios passar a vida discutindo e especulando sobre o fim de sua própria espécie. Do ponto de vista individual, a morte é um tema importante, mas o fim da espécie me soa como ameaça vazia de um poder inócuo. É hilário, pueril e inspirador.

Para criar seus personagens, você se inspirou em pessoas de carne e osso?
Sim e não. Procuro jamais individualizar minhas observações. Minhas personagens são um pouco de todos nós. Cada uma carrega alguns vícios de comportamento que, de um modo ou de outro, todos temos. Não me inspiro em pessoas, mas no comportamento de algumas delas, incluindo de mim mesmo.

Você é da mesma geração do Laerte, do Angeli e do Glauco. Por que foi por um caminho tão diferente do deles?
Essa é difícil de explicar em poucas palavras… De uma forma mais ampla, posso ser considerado da mesma geração dessa turma maravilhosa e inspiradora. E faço questão de incluir Luiz Gê nessa lista! Mas tenho em torno de 10 anos de diferença de idade com relação a eles. Quando o Laerte tinha 20 anos, eu tinha 11, por exemplo. Comecei a fazer HQs quando esses monstros já eram minha referência. Junto com a carga de influência com a qual eles me inundaram, vieram os desdobramentos sociais e culturais de quase uma década. Incluindo os desdobramentos que eles provocaram!

Por que decidiu produzir sozinho toda a sua obra?
Tenho muita pressa! Olho meu trabalho como um conjunto e preciso vê-lo realizado dessa forma. Questões de mercado, grades de programação editorial e toda essa conversa business me enchem o saco. Por conta do conteúdo, meu trabalho não é comercialmente viável, mas minha postura de trabalho segue a lógica da indústria. Nenhuma editora séria teria capacidade de escoar a velocidade de títulos que produzo. Além do mais, não sei dizer se gosto mais de desenhar ou de imprimir! [Risos]

Como você conseguiu viabilizar esse trabalho solitário?
No final da década de 1970, estudei na Escola Senai de Artes Gráficas. Lá, tomei contato com os processos de produção e impressão gráfica. Eu fazia minhas HQs e já sabia que Gilbert Shelton, nos EUA, e Hunt Emerson, na Grã Bretanha, imprimiram, eles mesmos, suas revistas. Em 1980, recebi o dinheiro de uma pequena herança e comprei uma máquina offset. Ruim pra caralho! Mas é a ela que devo todo meu espírito de produzir e produzir e produzir… Em pouco mais de dez anos, de 1981 a 1993, criei e imprimi perto de 35 títulos.

Financeiramente, é viável se manter cuidando de todo o processo?
É claro que não! Há anos venho vivendo exclusivamente de HQs. É difícil, para não dizer quase impossível. Mas, no Brasil, não conheço uma profissão honesta que seja bem remunerada. Se foder fazendo o que gosta não é um “privilégio” de quadrinistas.

Hoje você vende sua produção pelo site. Onde mais os fãs podem encontrar suas revistas?
Com a fascinante e histórica explosão da produção independente de HQs que o país vem testemunhando, feiras e eventos têm ocorrido no Brasil todo. Na medida do possível, procuro estar presente em todos os eventos que promovam a ligação direta entre autor e leitor. Feiras como a FLIQ, de Limeira, da qual participei no ano passado, têm sido fundamentais no estreitamento dessa relação. Costumo dizer que a melhor parte de ser autor independente é conhecer seu leitor pelo nome e sobrenome!

Levando em conta todas as etapas, da criação das histórias à sua impressão e posterior venda, qual é a mais difícil?
Sem sombra de dúvida, vender é a parte mais difícil. É doloroso conversar com um leitor e apreciador do seu trabalho e, de repente, ter de interromper a conversa com a pergunta “débito ou crédito?”.

Das publicações com as quais colaborou, qual te deixou mais feliz?
Jamais me envolvi ou colaborei com outras publicações sem estar motivado ou criativamente estimulado. Não há predileta. Cada uma guarda peculiaridades e contextualizações que só me dão orgulho e saudade.

Você já fez a graphic novel “Mariposa” e adaptou o romance “A Relíquia”, de Eça de Queiroz. O que achou dessas experiências?
Essas experiências são tão importantes quanto diferentes entre si. Sob meu ponto de vista, divido meu trabalho em três “pernas”: novelas, adaptações e provocações. Como a “Mariposa”, também lancei “A Risada de Arnaldo” e “Cavacos”. Adaptei “A Relíquia”, de Eça de Queiroz, e estou adaptando “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, para a Cia das Letras. Comparando com o processo mecânico, a gente precisa fazer um furo para depois fazer uma rosca. Com uma broca, fazemos um furo e, delicadamente, passamos o “macho” para criar os fusos… Nas adaptações, faço o furo, passo os três machos e sopro várias vezes para garantir que não sobrem limalhas nos veios das roscas. Nas novelas, eu passo machos de diferentes medidas, forçando e revolvendo meu tema até quase espanar a rosca. E, com o Frauzio, eu faço o furo com prego e forço o parafuso até sair sangue do buraco!

O que você está planejando para o futuro próximo?
Fazer HQs! Muitas HQs! Viver só tem graça quando se vive. Cada minuto dedicado a fazer planos é desperdiçado em vivenciar e saborear tudo aquilo que se pode e se dispõe a fazer.

– Marcos Paulino é jornalista editor do site Mundo Plug (www.mundoplug.com)

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