Entrevista: Alexandre Lucchese

por Janaina Azevedo

De um ano de entrevistas e pesquisas, o jornalista Alexandre Lucchese fez a primeira biografia do Engenheiros do Hawaii, “Infinita Highway: Uma Carona com os Engenheiros”, lançada em outubro deste ano pela Belas Letras. As pouco mais de 300 páginas dão conta do início, quando Gessinger e Maltz ainda eram estudantes, até a saída do segundo, que encerrou a fase em que a banda dos guris de Porto Alegre virou um dos principais nomes do mainstream nacional.

Nesta trajetória, muitos ficaram pelo caminho. “Infinita Highway” esclarece as circunstâncias que levaram Carlos Stein, Marcelo Pitz e Augusto Licks a deixarem, voluntariamente ou não, a banda. O primeiro, guitarrista da época em que o EngHaw era um quarteto (e que depois fundaria o Nenhum de Nós com Sady Homrich e Thedy Correa). O segundo, baixista de “Longe Demais das Capitais” (1986), o disco que lançou a banda para o país.

E Augusto Licks, o experiente guitarrista convidado para integrar a banda em sua fase de maior sucesso, e dispensado anos mais tarde, de uma hora pra outra. A esse rompimento, seguiu um processo judicial lento e ruidoso, que fez a festa do noticiário musical do momento. Em “Infinita Highway”, Lucchese reconstrói esses acontecimentos, com detalhes e contexto.

Mais do que isso, o livro conta a história de uma época, através do caminho percorrido pelos porto-alegrenses, de banda amadora, formada às pressas para a abertura de um show na faculdade, ao sucesso permeado por polêmicas e um legado de músicas extensas e letras difíceis. Do cenário artístico de Porto Alegre até a realidade burocrática das gravadoras, tudo está nas páginas de “Infinita Highway”.

Cada capítulo é intitulado por um trecho do clássico que batiza a biografia. A narrativa, bastante objetiva e agradável de ler, é interrompida por quatro depoimentos de fãs, que demonstram uma das forças-motrizes do Engenheiros, tão odiada pela crítica, mas absolutamente adorada pelos admiradores. Ao final, Lucchese ainda fornece uma discografia comentada da banda.

Tudo começou quando o autor, jornalista de cultura na Zero Hora, fez uma matéria especial comemorando os trinta anos do primeiro show do Engenheiros, aquele na faculdade. Fã da banda, ele viu aí uma oportunidade de contar melhor essa história. Confira mais na entrevista, realizada em Porto Alegre, no feriado de 15 de novembro.

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Da reportagem, surgiu a ideia para o livro. Explica melhor isso.
Eu já tinha interesse de ler um livro assim, porque ficava pensando que tinham coisas não trabalhadas pela imprensa em relação ao Engenheiros. O livro do Humberto é a história da banda, o “Pra Ser Sincero” (2009). Só que não tinha uma coisa de jornalista, de outras visões. E o Humberto, quando fala da separação da banda, cita muito por cima o que aconteceu. Eu via que era uma frustração dos fãs. Claro, nessa reportagem dos 30 anos não tinha como fazer porque eram cinco páginas do jornal. (Para a matéria) Peguei bem o início, focado no primeiro show.

O Licks chegou a falar contigo pra essa matéria?
Tentei, mas ele não quis dar entrevista num primeiro momento. Eu comprei meu primeiro disco deles com oito anos, era a época do “O Papa é Pop” (1990), super estouradaço, aí criei esse vínculo. Quando comecei a curtir banda, eu morava no interior do Paraná, cidade de Realeza, 15 mil habitantes. Me mudei para Porto Alegre com 18, mas já não tinha mais essa formação. Era outra coisa. E não era mais mainstream, e sim uma banda alternativa.

Mas pra ti ver o alcance que eles tinham, né…
Sim, lá no fim do mundo. (A banda) Chegava em tudo quanto é lugar, que é uma coisa que não existe mais pro rock. Foi algo que não vivi, só quando era muito piá, e não tive a oportunidade de ver no palco. Comecei a pesquisar, e foi como se eu tivesse vivendo essa época. Não queria parar, segui pesquisando. Chegou um momento em que eu tinha que entrevistar as pessoas. Daí pensei: “porra, não vou entrevistar sem saber se vou publicar o livro, acho chato pra caralho, ‘ah, tô fazendo uma pesquisa por mim’”. Propus à Belas Letras (editora de Caxias do Sul, RS), eles curtiram a ideia, e comecei a fazer as entrevistas.

Em Porto Alegre, em São Paulo e no Rio?
Isso. Tive uns 20 dias de férias e viajei pro Rio e pra SP. Eles tinham morado no Rio, né. E em SP, muita gente que trabalhou com eles tá morando. A banda foi muito forte em SP.

E tu acha que faltou alguma coisa?
Se tu for ver, dois terços do livro é Poa, até 1988. Porque é o lugar em que moro. Se eu vivesse no centro do país, ia ficar diferente. Isso é algo que, se eu pudesse, faria mais, mas não tinha como.

Mas tu lembra de ouvir falar de alguém que não conseguiu contatar ou alguma coisa do tipo?
O empresário deles, no início de carreira, não quis falar. Mas conversei com os produtores que trabalharam junto, então não senti tanta falta. Gostaria de sentar com o cara. Mas falei com gente que trabalhou com eles e com gente que trabalhou na estrada. Além do Licks, que foi um contato por email.

Eu queria saber mais sobre isso, como é que foi o contato com o Licks. Ele te recebeu de boa?
É muito engraçado. Eu tinha três pessoas que falavam com o Licks. A Dedé Ribeiro, produtora daqui, o Emerson, que é um fã lá do rio, e o Mauro Borba, que é radialista. Se o Augusto falasse “ah cara, vou te dar a entrevista amanhã”, eu pegava um avião e ia, mas não rolou. Mauro tentou, Emerson tentou, e ele, nada. Aí a Dedé, que é amiga dele das antigas, conseguiu: eu mandava as perguntas pra ela, que mandava pro Augusto. Ele respondia, mandava pra Dedé, que mandava pra mim.

Tu não chegou a contatar ele direto, então?
Não. E eu falei: “Dedé, vamos parar com isso, me dá o email dele e eu paro de te encher o saco”. Ela: “Se eu te der o email, ele nunca mais vai me perdoar, e não vai nunca mais falar comigo”. E eu, “tudo bem”.

Teve algo que ele deixou de responder?
Não, ele respondeu tudo. Só que, aí que tá, a Dedé me disse: “Só não pergunta sobre a banda”. Não pude falar sobre a separação porque eu sabia que ele não ia nem receber, ia me responder nada. Consegui falar algumas coisas sobre a carreira dele, a formação e tal. Só que senti que um vínculo ia se fechar se eu forçasse isso. Por outro lado, ele me deixou super aberto, não botou impedimento nenhum. Da família, falei com os irmãos dele, foi super tranquilo. Então deu pra fazer essa radiografia meio que por volta do Augusto. Depois que o livro ficou pronto, levei pra ele, que estava aqui no RS. A gente conversou e o Augusto até falou: “Foi legal conversar contigo, eu tinha muito medo de dar entrevista, mas tu me abriu isso”. Daí ele deu até entrevista pra Guitar Player, depois de falar comigo. Não sei se ele vai ler a biografia, porque talvez toque em coisas que ele não gosta de falar, feridas abertas, e tal, mas ficou uma relação boa.

E o Pitz, que foi muito fundamental pra banda, mas acabou não querendo compartilhar sua versão para o livro? Tu acha que isso foi algum tipo de prejuízo, embora tu tenha conseguido todo o contexto?
O Pitz não quis falar comigo mesmo, disse “Não, não tô a fim, não quero”. E eu respeitei. Até porque ele já tem outra vida, se afastou mesmo de música (Marcelo Pitz, o primeiro baixista do Engenheiros, hoje trabalha em uma universidade em Pelotas, interior do RS). Falei com uns amigos, o (Carlo) Pianta. O Julio Reny, os caras que têm trabalho musical público, o Egisto (Dal Santo), eles me deram um perfil legal. O Pitz é um capítulo importante, só que é dois anos de banda, sabe. É mais curto. Mesmo que eu tivesse acesso a ele, talvez não escrevesse um capítulo exclusivo, como escrevi pro Carlos, pro Humberto e pro Augusto. Mas claro, eu gostaria de falar, tentar entender o que rolou. Embora a gente saiba como é. Não é porque é a versão dele que é mais verdade, sabe. Mas acho que enriqueceria.

E tu acha que é um caso de que a recusa fala muito? Porque o próprio Humberto e o Maltz admitiram que tinha um clima meio que de bullying com ele.
Acho que os guris não deviam ser fáceis de trabalhar, mas fala sobre ele, sim. Ás vezes eu vejo que o Humberto é muito visto como vilão. Alemão, nazista, umas coisas assim. E claro, ele também não facilitava. Mas é engraçado porque no Rio tu conversa com as pessoas, e em SP também, e “nossa, cara, o Humberto é a pessoa mais fácil de trabalhar do mundo. Muito tranquilo, direto, não enchia o saco com nada”. As pessoas falavam do Augusto, porque ele era muito criterioso. Daí alguns dos entrevistados me diziam: “Ah, o cara enchia o saco, ficava um tempo olhando os botãozinhos. O Humberto não, ele sabia o que queria e vamos lá”. (O Humberto) É um cara mais direto, já tinha essa visão um pouco mais profissional, que acho que, aqui no RS, as pessoas viam como algo sem coração, meio como se tivesse só pela grana. E eu não acho que tivesse, acho que tava por mostrar o trabalho, fazer circular, com respeito ao público, “vamos dar o melhor, a gente tá vendendo o show, vamos apresentar uma coisa à altura”. Acho também que essa coisa muito focada, de não tá pela festa, quando tu tá num ambiente muito amador é mal visto. Aí se tu tá num ambiente mais profissional, as pessoas acham muito tranquilo. Os guris são criticados, mas também são muito elogiados por gente que trabalhou com eles. Os roadies, que trabalharam com mais músicos, por exemplo. O Nilson, que foi o roadie do Carlos, hoje tá com os Titãs. E o Cassio, que até hoje trabalha de vez em quando com o Humberto, tá com a produção mais rigorosa do Brasil, que é Maria Bethânia.

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E tu acha que essa postura explica o sucesso da banda?
Eu acho que explica um pouco. Tinha muita dedicação. Não sei se profissional, tanto que é um pouco contraditório, porque nunca registraram o nome da banda. Tinha uma coisa de serem uns gurizão tocando junto. Mas também era algo do tipo “vamo ver até onde é que a gente vai, até onde o motor aguenta”. Mas acho que o mais explica na real é o formato da banda, as canções. Isso que é fundamental. Porque tu pensa em Replicantes, até hoje faz sucesso e toca, só que num gueto, que é o punk. Ele são super respeitados, em várias regiões. O TNT se manteve um tempo. O Garotos (da Rua) também. Só que era diferente. O TNT era uma banda de rock adolescente mesmo, não de canção. Era rock, refrão bom, uma estrofe curtinha. E o Engenheiros tinha essa coisa de canção popular mesmo. “Somos Quem Podemos Ser” podia tá no Clube da Esquina, facilmente. Acho que nisso eles eram muito criticados também, pois tinham uma estética que não era a roqueira da época, guitarra, três minutos, refrão. Como se tivessem trabalhando contra o movimento, sabe. A gente tava tentando se livrar dessas letras quilométricas, que muitos já estavam achando chato, e os caras: “não, vamos continuar fazendo isso aí”. No Brasil, pegou muito. As pessoas quando ouviam no rádio identificavam “ah, é guitarra, é rock, é banda, mas é canção popular, é letra e música”.

Tu acha que as pessoas fazem esse tipo de distinção?
Eu acho que sim, é uma coisa fácil de compreender. Porque era o que vinha tocando no rádio, sabe. As pessoas estão acostumadas a ouvir uma balada do Roberto Carlos. Quando tu ouve “Refrão de Bolero” é uma balada, tem solo de guitarra, mas é uma balada, é uma canção. Conta uma história.

Tu chegou a colocar isso pro Maltz e pro Gessinger? Que eles acham?
Pro Gessinger, sim. E desde o início ele fala isso: “Ah, a gente não é uma banda de rock, a gente é uma banda de canção”. Virou rock porque era o que tava tocando no momento. Se fosse outra onda levantando, eles iam surfar diferente, ter outro modo de expressar poesia e música. É uma banda muito Oswaldo Montenegro, Belchior. E eu acho que isso pegou. A tradição brasileira é essa, canção. Acho que por isso dura tanto. O rock pega forte, mas ele passa rápdo também. E a canção se mantém. E acho que também tem essa coisa de viajar né. Além de apostarem em canção, o Engenheiros também viajou muito. Tocaram em qualquer lugar.

Sim, não dá pra desprezar o público que possivelmente vai ser menor do que em POA ou em outra cidade grande.
Sim, ir pro interior, não ficar esperando, sabe. Acho que fortaleceu muito a banda.

E público de interior é diferente de capital, eles se apegam mais porque têm menos oportunidade de assistir à banda que gostam.
Sim, ainda mais naquela época, a circulação era bem menor. Até hoje o Humberto se serve disso. Ele viaja pras praças que as pessoas conhecem, confiam, gostam. “Bah, eu fui em noventa e não sei quantos, foi do caralho, vamos de novo”. Acho que tem isso. Pô, a Legião não viajava assim, cara, não se metia em qualquer palco. Era toda uma negociação pra conseguir. Os guris (do EngHaw) não, sabe, era “vamo, vamo, vamo, ginásio, paciência, vamo”.

E falando sobre o livro agora, fala sobre a opção de escrever em primeira pessoa em determinadas partes, que acaba sendo bem frequente. Por que tu escolheu te colocar dentro da história?
Eu não gosto de ler biografias, antes de escrever esse aqui eu não li muito.

Não? Sério? Tu não tem nenhuma influência?
Bah cara, na real eu tentei ler algumas, comecei aquela “Quando os Gigantes Caminhavam Sobre a Terra”, sobre o Led Zeppelin. Até foi de onde eu peguei esse negócio de inventar trechos e botar em itálico, pra marcar (no início do livro, alguns trechos têm diálogos simulados pelo autor, com base nas pesquisas e entrevistas. Essas partes estão grifadas). Isso eu achei bem legal. Mas não consegui ler até o final. Das que eu gostei, por incrível que pareça, está a biografia do Borghettinho (Renato Borghetti, gaiteiro gaúcho), uma das poucas que li até o final. Eu gosto do personagem Borghettinho, e tinha um lance que eu percebi que ele (o autor, Márcio Pinheiro) mudava muito o enfoque de vista dele, às vezes começava a contar um causo, às vezes era um texto mais jornalístico. Eu pensei “bah, isso é legal”. O que eu não gosto de biografia é que geralmente até começa bem, mas depois vira ata de reunião, tipo “tal data aconteceu tal coisa”, é muito chato. Do Pink Floyd eu já comprei umas três, não consegui chegar no final de nenhuma. Daí eu pensei “pô, vou ter que inventar algum modo de contar isso de uma maneira interessante”. Eu cubro literatura no Segundo Caderno (caderno cultural do jornal Zero Hora), então minha influência é mais da ficção.O lance foi dar os pontos de vista, quase como um livro de contos: tu “vê” daqui, daí tu “vê” a visão do roadie, daí tu “vê” a minha visão, de quem tá pesquisando dentro, sabe. Por isso, vai variando. E colocar em primeira pessoa foi porque eu acho que é importante ter também uma honestidade de dizer quem tu é, o que tu tá fazendo aqui. Eu falei de mim só quando achava que ajudava a contar a história, pra saber quem eu sou. Pra fazer um livro mais honesto, mostrar que tu tá ali, que é um ser humano e tá sujeito a problemas também.

Que não é um Deus olhando de cima e contando a história.
Eu acho que essa vulnerabilidade é importante mostrar.

Bom, e tu não é fã de biografia, mas qual que tu acha que é a importancia de biografias, tanto de músicos quanto de personalidades em geral?
Eu acho que é pra enriquecer o passado, se a gente não sabe de onde veio, não sabe pra onde vai. Eu acho um horror tu não ter uma bio do Teixeirinha (artista gaúcho). Acho que tem um livro de uma coleção dos anos 80, da editora Tche, e não é uma biografia, meio que o cara faz um perfil da carreira dele por cima. Imagina, se os Engenheiros conquistaram o Brasil, o Teixeirinha fez muito mais, era um cara multimídia, e a gente acaba não tendo (uma biografia) porque emperra nesses lances de família. Então como é que tu constrói ídolos, pessoas nas quais tu pode te inspirar, pra conhecer a tua realidade e quem sabe transcender, mudar? Esses dias, tava conversando, não vou falar com quem, mas a viúva de um tradicionalista me disse assim: ”Ah, já consegui parar um monte de biografia do fulano”.

Aqui no Brasil tem isso né. Teve aquele movimento dos artistas que tentaram mudar a lei, e a história bizarra da biografia do Roberto Carlos.
Daí barra nisso, ignorância. Acham: “Ah, vai falar uma coisa que não é”. Que bom que falem algo que não é, porque aí tu dá tua versão depois, e as coisas se movimentam. Se não, fica morto. Cara, o Humberto não me incomodou pra nada disso, eu duvido que teria outra banda que me desse essa liberdade, do tipo: “Ah, faz o que tu quiser, te dou entrevista, mas não quero nem ler esse livro”. Porra, melhor coisa.

Ele não quis ler?
Não, desde o início. A gente marcou de fazer a biografia, daí a editora falou com ele, porque é a mesma que publica os livros dele. O Humberto disse: “Vou dar entrevista, colaborar no que for preciso, mas é um livro do Alexandre, eu não quero nem ler esse livro”.

No sentido de “não quero ler antes de sair”?
É. Exato. E o Carlos foi a mesma coisa. Liberdade absoluta. Os caras sabem que isso é bom pra eles. É espírito democrático. E o Humberto continua sem ler, ele disse que não lê nada que publicam dele, o que eu acho bom.

Mas não tem nada desabonador no livro, né.
Não, nada. Mas o que eu entendo por outro lado é que se tu começa a tentar te interpretar, pra um músico, é um risco. Tu acaba querendo corresponder a certas expectativas, “ah mas eu sou isso, eu faço desse jeito”. Eu acho bom tu te distanciar. “A minha preocupação é o meu próximo disco, não o que tão pensando de mim”. Isso é admirável. Humberto teve a maior paciência comigo, me recebia lá e ficava três, quatro horas falando sem parar, cansado.

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Quantas vezes tu encontrou ele?
Foram umas cinco vezes de tarde inteiras. Depois a gente manteve contato por email. Mas de fazer uns turnos assim foram cinco, umas duas tardes quando comecei o processo e umas três no final. Eu ia lá pelo final da tarde e ficava até o amanhecer. Até ele me mandar embora. E com o Maltz eu consegui conversar uma vez aqui na Feira do Livro, depois foi tudo por internet. O Maltz era muito tranquilo, um contato mais direto. Se tinha uma dúvida, já mandava pra ele no Twitter, por DM, ele me respondia na hora, se tava de bom humor continuava conversando, foi bem tranquilo.

Tu acha que há a possibilidade da formação G,L&M voltar?
Não sei, cara.

Num exercício de livre suposição, porque a gente não tem como saber o que passa na cabeça deles. Já fazem o que, 20 anos (o processo de Licks contra os ex-colegas foi concluído em 1997)?
É, a saída do Augusto foi em 93…

E ele logo entrou com o processo, né?
Sim. Foi imediato. O processo se inicia em janeiro de 94, bem na sequência. Foi bem litigioso, no sentido de que não teve acordo. Ele devia tá puto com os caras. Juntou uma coisa com a outra. Primeiro os guris fizeram ele sair, né. Tipo: “Ah, te vira aí, a gente te convidou pra entrar, agora tu sai”.

Mas dentro do raciocínio deles, quando eu li essa parte, eu pensei “mas faz sentido”.
Com o Pitz foi assim!

Lendo a biografia, em algum momento pra mim começou a ficar claro que a banda era os dois. O resto ficava gravitando em torno. Mas o Licks ficou numa situação ruim, olha tudo que ele investiu…
Equipamento, tempo, vida, né. Foi praquilo.

E também tem a questão do Humberto e do Maltz terem xingado ele…
É, primero os guris erram com o Augusto. Daí ele vai lá e registra o nome. Quando descobrem isso, ficam putos, né. Aí falam pra imprensa. Isso é janeiro, não tem nada acontecendo. Ao invés de publicar uma notinha, (os jornais) publicam um negócio desse tamaho com a foto. Foi o pior momento pra isso acontecer. Aí ficou pior ainda. Quando o Augusto esteve aqui, nós conversamos um tempão. Em determinado momento, ele falou da banda, mas não citou o Humberto e o Carlos. Ele fala: “A gente tava num momento que tudo era pop, a produção era legal, no estúdio tal”, mas nunca assim “o Humberto me disse tal coisa”.

E o Humberto e o Maltz citam ele? Nominalmente?
Sim, normal. E tu vê né, o Carlos deixa bem claro, “foi uma estupidez o que a gente fez”. Eu acho que tive sorte nesse sentido, de pegar os caras nesse momento que eles repensaram e conseguiram falar sobre as coisas de uma maneira mais tranquila. Mas sobre eles voltarem, eu não sei, o Humberto continua com a carreira dele, mas o Carlos não. E se tu fosse fazer um show, ele ia ter que parar de fazer tudo faz pra ficar só tocando bateria e se botando em dia. Ele não consegue segurar um show, teria que parar um ano quase. E o Augusto também, pelo que eu vejo no Facebook, ele tá tocando, mas não sei se subiria no palco. Ia ter que ensaiar pra caralho. Só seria viável se saíssem em turnê. Eu gosto disso neles, quantos músicos dos anos 80 tão aí gravando as mesmas músicas há 20 anos? Eles não. O Humberto tá fazendo disco novo, criando. Tá fazendo show, lotando palco no Brasil inteiro, duas, três mil pessoas circulando. Tá olhando pra frente. E o Carlos, a mesma coisa. Os fãs ficam “ah, será que volta”, mas eu penso “que legal que os caras ficaram tanto tempo juntos aí”. Foi, passou. Vão pra frente, sabe.

Como tu acha que seria a recepção do Engenheiros, se surgisse hoje, exatamente como era, com todas essas idiossincrasias que sempre teve e nunca escondeu?
Cara, eu acho que na real não ia acontecer nada, porque o cenário é diferente. Naquela época, com poucos meses de vida, tocaram pro Gigantinho lotado, depois voltaram, fizeram três shows também no Gigantinho (ginásio de Porto Alegre). Quem é que faz show pra 10 mil pessoas no Gigantinho, uma banda brasileira? As bandas de rock, tantos as novas quanto as velhas, vão tocar no Opinião (casa para cerca de 2 mil pessoas), quanto muito no Pepsi On Stage (cerca de 6 mil pessoas). É Opinião e olhe lá. A música não tem mais a mesma importância que tinha.

Não tem mais rádio, tv….
É, esse sistema morreu.

Mas eu digo de recepção das pessoas hoje na internet, com haters e tal.
Sim, mas eu acho que não chegaria a se popularizar, ficaria num nicho. Qual banda que hoje tem isso. Apanhador Só? E eu não sei se Engenheiros seria muito diferente. Talvez tivesse um pouco mais de visibilidade, mas é um nicho muito pequeno. Eu acho, por exemplo, que nos anos 80, se Porta dos Fundos existisse, eles iam montar uma banda. Não iam fazer vídeo, não iam fazer teatro. Iam montar uma banda. Porque era o que tava rolando na época. Mas hoje, as pessoas que tem essa vontade de mostrar um trabalho pra mais gente e fazer acontecer, elas já não estão mais na música. Elas tão em outros lugares, a música meio que perdeu a relevância. Quem tá trabalhando com música é quem gosta muito, músico mesmo, gente que é apaixonado por guitara, por instrumento. Não sei se Engenheiros nascesse hoje, montariam banda, ou se fariam outra coisa, um canal no Youtube, um Catarse pra fazer apresentações. Talvez seriam outras coisas. Acho também que seria um público muito restrito, porque é um público de músico. Eles eram bons, mas não é por isso que lotavam o Gigantinho. Eles lotavam porque era o momento. Era isso que tava acontecendo.

E tu acha que a crítica, principalmente na internet, mudaria um pouco a postura, do Humberto, de falar mal dos colegas, de desafiar a gravadora, tu acha que isso influenciaria? Porque antigamente eles lidavam com imprensa né, jornalão e revista. Hoje isso foi pra internet…
Eu acho que não. O Humberto não lê nem a biografia da banda dele, vai ler comentário? Ele não tá muito aí, não. Uma coisa que eu acho que seria uma influência positiva pras pessoas também é esse lance de não se importar.

E ele não me parece ter uma personalidade muito rockstar, é mais introspectivo.
O Humberto é família total. Não sai de casa, só pra caminhar, fazer as coisas a pé. Tu nunca vê ele num restaurante, jet set, coluna social, nunca vê ele em lugar nenhum. Criou o mundo dele, né, e meio que habita ali. Mas se comunica pra caramba. É um cara que tá sempre bem informado, muito esperto no que tá acontecendo. Mas acho que não tem muita vaidade. Tem e não tem ao mesmo tempo, porque poderia tá mais por aí. As pessoas acham que, porque eu fiz a biografia, sou tri amigo do Humberto. Eu tava lá na Zero Hora e me pediram: “Lucchese, liga lá pro Humberto”. Daí eu “Ô, Humberto. Bob Dylan ganhou Nobel. Quer dar uma palavra?”. E ele: “Não não, deixa pro Peninha falar” (Eduardo Peninha, escritor fã do Dylan). Ele não fala sobre nada.

E sobre a música, “Infinita Highway”, porque tu escolheu dar esse titulo?
Eu acho super estranho, tem gente que começa a escrever o livro já com título, é ruim porque te fecha caminhos. Depois que terminei as pesquisas, comecei a escrever. Foi muito rápido. Aí já sabia onde ia começar e terminar, era só sentar e escrever. Foram uns três meses disso, aí ficou pronto, quase fluxo de consciência.

Ah é? Não parece, parece super trabalhado o texto.
Não, foi muito fluxo de consciência. Eu tinha na cabeça o livro meio pronto. Aí quando terminei, fui ler. Achei que ficou quase um livro de estrada, não sei se é porque eu escrevi, mas li muito rápido. Pensei: “Taí, Infinita Highway, parece que tu tá numa carona com os caras”. E tem os relatos dos fãs, é como quando tu tá na estrada, para pra frazer um pitstop, num posto de gasolina, e encontra alguém que já voltou da viagem e te conta como é lá na frente. Os títulos dos capítulos vieram depois. Daí pensei nisso, “Infinita Highway, Uma Carona com os Engenheiros do Hawaii”, mandei pra editora. Me disseram assim que tudo bem, legal, só que teria que ser “Uma carona na história dos Engenheiros do Hawaii”. Mandei pro Humberto, contando pra ele, pra que não ficasse sabendo pela imprensa. E ele: “Mas por que não Uma carona com os Engenheiros do Hawaii, sem ‘na história’”. Eu me senti encorajado, falei pra editora: “Olha, até o Humberto gostou”. Ele me salvou nessa. Achei melhor, mais sonoro, rápido.

E tem também a relação com a música, que é uma das principais…
Tem uma coisa também que é a música que fala muito sobre a banda. Quando eu pensei em fazer os títulos dos capítulos foi isso, tem frases que se tu parar pra pensar, meio que prospectam o futuro. (A música) Fala de um beatnik, pô, o Carlos era um beatnik. Fala de “nada a temer”, de “estamos sós”, é quase uma declaração de princípios da banda.

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Janaina Azevedo (www.facebook.com/janaisapunk) é jornalista. Todas as fotos do texto são de Thais Brandão / Divulgação, exceção da foto da primeira formação dos Engenheiros do Hawaii / Divulgação

Veja também:
– Download: 21 bandas independentes regravam canções dos Engenheiros em tributo (aqui)
– Ao vivo em São Paulo, Humberto Gessinger segue em frente dignamente (aqui)
– Humberto Gessinger (2016): “Não há planos para nenhuma volta dos EngHaw” (aqui)
– Humberto Gessinger (2014): “Quero viver esse momento com intensidade” (aqui)
– “Insular”: Humberto Gessinger está ficando velho. Mas continua o mesmo (aqui)
– Três CDs dos Engenheiros do Hawaii (aqui) e o “Acústico MTV” (aqui)

2 thoughts on “Entrevista: Alexandre Lucchese

  1. Ótima entrevista! O Alexandre Lucchese diagnosticou muito bem a importância que a música tinha no passado e a que tem hoje. Isso explica muita coisa.

  2. Também acredito que os Engenheiros, se surgissem hoje em dia, não alcançariam a mesma relevância. É incrível como eles, sendo uma banda de rock, conseguiram alcançar as cidadezinhas do interior do Brasil, pessoas simples. Até hoje eles tem muito público.

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