Entrevista: Tagore

por Leonardo Vinhas

Os fãs que o pernambucano Tagore conquistou com o álbum “Movido a Vapor” (2014) e suas muitas apresentações ao vivo se encantaram pela sonoridade derivada do udigrudi pernambucano (Alceu Valença, Zé Ramalho, Lula Côrtes) e pela presença de palco inquieta e carismática daquela figura que, apesar de jovem (28 anos), ostenta cabelos e barba grisalhos e longos. Esses fãs possivelmente tomaram um susto ao ouvir “Mudo”, primeiro single do segundo álbum, “Pineal” (2016). A sonoridade assumidamente influenciada pelos neopsicodélicos, Tame Impala à frente, em nada lembra o que a banda vinha apresentando até então.

Porém, existe um processo bastante lógico nessa mudança, e é isso que Tagore Suassuna, cujo prenome batiza um projeto musical mutável em formação e sonoridade, explica nessa entrevista telefônica ao Scream & Yell. O repórter ouviu “Pineal” ainda em fase de mixagem (o álbum já está disponível nos portais de streaming – ouça no Spotify), e pôde explorar mais o processo caseiro e minucioso de gestação do disco, que levou quase três anos. A conversa, claro, não ficou só nisso.

Ao vivo, a banda é formada por Tagore (voz, violão e guitarra), Caramurú Baumgartner (percussão e voz), Júlio Castilho (baixo, guitarra e teclados – substituindo temporariamente Diego Dorneles), Alexandre Barros (bateria) e João Cavalcanti (baixo, guitarra e teclados). Agrupamentos diferentes dentro dessa formação foram feitos nas turnês anteriores (com Emerson Calado como baterista), e o impacto que isso teve no novo momento da banda também é assunto, bem como o contrato com a Sony, responsável pelo lançamento digital de “Pineal” (ainda não há edição física).

Tagore está em um momento decisivo da carreira. Com a impressionante repercussão de “Mudo” e da faixa-título no Youtube e nas plataformas de streaming, parece estar prestes a dar um passo firme rumo a uma popularidade que há muito tempo passa longe dos artistas independentes do Brasil. Ele está ciente disso e, surpreendentemente, à vontade. Confira o papo.

Você já deve ter respondido muito essa pergunta para as pessoas mais próximas, mas vamos lá: a sonoridade mudou, e muito. O elemento pop continua, claro, mas não há mais nada de regional no som. O que aconteceu?
É uma indagação que a gente faz entre nós mesmos (risos). A gestação desse disco começou lá em 2013, quando o “Movido a Vapor” não tinha nem sido lançado ainda. A gente gravou o “Movido a Vapor” entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012. Depois de gravado, ficamos seis meses mixando, e o disco ficou pronto lá por outubro de 2012. A gente começou a fazer o planejamento de lançar, mas aconteceram vários atrasos por fatores sobre os quais não tínhamos controle. Uma hora a gente estava com tudo arranjado para lançar, só que um amigo nosso faleceu, ficamos super baixo astral, a galera deu uma esfriada no processo… Foram muitos fatores que fizeram com que o “Movido a Vapor” ficasse pronto por dois anos sem ser lançado, saca? E a gente tocando muitas das músicas dos discos, fomos maturando o show ao vivo… Quando o disco foi lançado, o show estava bem legal, porém o ponto negativo é que a gente perdeu muito a “instiga” de lançar um produto que tá fresco. Isso deixou a gente meio angustiado, mas beleza, continuamos rodando com o “Movido a Vapor” até agora. Em 2013, o disco não estava lançado, estávamos com poucos shows, eu estava terminando minha faculdade, então dei início a um processo de “pré-pré-produção” do que seria o “Pineal” já muito influenciado por essa psicodelia que veio com o Kevin Parker. Conheci o som deles no meio de 2012 e me fascinou desde o começo. Reuniu referências que eu curti muito: a parada do vocal ser meio John Lennon, a parada das guitarras ser meio Cream, de Eric Clapton, no começo… Fui muito capturado pela vibe geral. Comecei então a olhar muito para essas influências, que eu já curtia, mas agora com outro olhar. Beatles mesmo, Hendrix, Floyd de Syd Barrett: essas coisas que constituem o básico da psicodelia. Fui produzindo as musicas já com essa estética. Em 2014, quando fomos para São Paulo, tivemos a oportunidade de montar o estúdio na casa onde a gente estava, e eu e o João começamos a lapidar essas canções que tinham sido feitas em 2013. Surgiram aí versões bem parecidas com as que entraram no “Pineal”. Em 2015 foi a última leva de pré-produção, quando a gente definiu os arranjos e aí partiu pra gravar. Não sei se consegui me explicar bem, mas o processo foi esse pra mudança do som. A gente ficou muito tempo com a parada do regional sem poder lançar, e isso ficou meio que engasgado até que uma hora saturou.

Cansou.
Cansou. E foi muito rotulado também. Foi calcado muito no udigrúdi daqui [de Pernambuco], e realmente tem muita influência, sou muito orgulhoso disso. Só que em algum momento ficou muito restritivo para o nosso som. “Ah, a pegada Alceu Valença” (repete várias vezes)… Acho do caralho, acho Alceu Valença foda, mas quero que a gente seja conhecido por mais coisas do que isso. Talvez o “Pineal” ser completamente diferente seja uma reação a isso.

A sonoridade antiga, então, morreu?
A gente pode até voltar ao regional, mas se isso rolar, vai ser um regional desconstruído. Tipo esse último da Elza Soares, saca? Bem lógico-matemático, todo quebradão, com uns moogs no lugar do baixo…

Com o que você contou do processo do “Pineal” agora, parece que foi tudo caseiro. Foi?
Duas músicas tiveram sua bateria gravada num estúdio de Recife, o Carranca, ainda com o Emerson Calado na bateria. A masterização foi feita pelo Felipe Tichauer num estúdio em Miami. Mas toda a captação e mixagem foi em casa. Gravamos tudo em linha, inclusive microfone. Gravamos tudo no Logic (Pro, um programa de produção musical da Apple).

Essas gravações foram, basicamente, você, o João e o Benke, do Boogarins, certo?
Sim. O Benke participou de duas músicas, e participou da mixagem de uma terceira. E mesmo quando ele não gravava, ele estava bem presente, dando opinião, servindo como referência de ouvido novo no processo. Era muito importante a opinião dele porque ele não estava enfiado no processo, então ele vinha com a parada fresca, sem vícios. É um cara que eu admiro muito, foi ótimo contar com ele. O Dinho [Almeida, vocalista do Boogarins] também gravou vocal em uma música, “Reflexo”.

É engraçado que você e o Caramurú viajaram muito para promover o anterior, e ele acabou participando pouco desse novo. O Julio e o Alexandre também não viajaram tanto. Acha que isso pode ser um problema para executar esse material novo ao vivo?
O Alexandre não gravou com a gente, as baterias foram com o Emerson Calado ainda, só que ele não pode acompanhar a gente então o Alexandre entrou agora. O Alexandre passou uma semana com o João, ficaram diretão só para tirar bateria e baixo. Quando isso estava fechado, eu entrei, e ficamos tocando muito como bateria, baixo e guitarra. Quando estava bem legal, passamos a ensaiar no estúdio com tudo mundo: cinco pessoas mais a utilização de sampler. O processo do ao vivo foi construído em conjunto, com todo mundo tentando entender o material e contribuir com a sua pegada. O Tagore funciona basicamente como um duo na sua concepção artística, e como um quinteto na execução dessa criação.

A banda está dividida geograficamente. Vocês já chegaram a morar todos juntos em São Paulo, depois voltaram para o Recife. Agora está dividido de novo, não? E mais que antes.
Eu e Julio estamos em São Paulo, João e Alexandre em Recife e Caramurú em Curitiba.

Então. Na turnê do “Movido a Vapor”, você variava os formatos, tocando como duo com Caramurú, trio com ele mais o João, ou com a banda completa. Só que o som mudou muito, e talvez não acomode essa flexibilidade. Como vocês vão excursionar para promover o “Pineal”?
Com a banda inteira. Vamos manter o quinteto. Minha fixação em São Paulo vai facilitar, eu acho, porque agora temos três integrantes no “eixo”, no Sudeste. O trajeto de ônibus fica mais fácil, só dois integrantes precisam de avião, o que deixa a coisa menos custosa. Mas vamos fazer uma tour baseada em ônibus mesmo, que é mais viável do que em avião, como vínhamos fazendo.

Essa foi a razão pela qual você voltou a São Paulo?
Isso. Tanto isso como a necessidade de manter um networking constante, ficar perto das bandas que a gente gosta… Francisco, el Hombre tá lá, várias outras galeras. Muita gente que eu curto tá lá, então me sinto mais imerso no meu habitat de criação, de arte.

Quando vocês foram todos para divulgar o “Movido a Vapor”, acabou não rolando tudo o que vocês esperavam e acabaram voltando para o Recife. Com você e Julio de volta à capital paulista, o que mudou? Ou seja, o que está diferente agora, tornando esse momento paulistano viável?
Eu diria que a experiência de conhecer a cidade, ter um domínio maior de deslocamento, um círculo social de amigos, um networking constante. O Julio já morava lá quando fomos em 2014, e ficamos todos no mesmo apartamento para fazer a concentração, tentávamos fazer os pré-shows ali só com os violões, esse tipo de coisa. Como a gente ficou bem mais entrosado, a gente já não precisa estar toda hora junto, dá para nos vermos mais perto dos shows. Acho que a banda está bem mais madurona, essa é a diferença. E o som menos regional – São Paulo consome o regional, mas acho que consome mais essas coisas cosmopolitas, universais. É o lugar onde a semente deve ser plantada. Lá e no Sul, onde a gente também tem um público bem forte (nota: Tagore fez muitos shows na região da Serra Gaúcha nos últimos dois anos – mais que muitos artistas locais). E também ajuda a fazer tudo da maneira mais econômica possível, já que tá todo mundo meio quebrado.

Tô olhando no Youtube agora (24 de outubro) e estou vendo que o vídeo de cada single tem mais de 130 mil visualizações cada (nota: já passava de 240 mil ainda antes do fim do mesmo mês).
Acredito que esse número – absurdamente grande para uma banda do nosso nível – é fruto do investimento da Sony, do direcionamento que eles estão fazendo. Eles estão impulsionando junto a um público que é mais alvo, mais direcionado. Tá tendo um alcance maior, e para pessoas mais certeiras, e esse processo que está fazendo a expansão da parada. Quando eles param de impulsionar, dá uma desacelerada, mas continua pegando mais gente.

Como a Sony entrou nessa jogada?
Eles estão lançando exclusivamente digital, mas temos o direito de uso da marca na versão física. Quando lançamos o “Movido a Vapor”, o Marcelo Monteiro – na época n’O Globo – colocou o álbum como melhor do ano na lista dele. Aí surgiu a oportunidade de ele incluir um som nosso numa coletânea que ele estava lançando – a “Novíssima Música Brasileira”, que também é o nome do selo que está abrigado na Sony. Entramos com “Vagabundo Iluminado”, e aí fui chamado ao Rio de Janeiro para gravar um clipe para promover a faixa como single. Eles gostaram muito da performance, perguntaram se não tínhamos um trabalho pronto para ser lançado, e mostramos o “Pineal” para eles. Foi aí que surgiu a proposta de fazer o lançamento digital e o impulsionamento dos clipes. Estamos aí, fazendo esse trabalho e tateando para ver no que vai dar.

E o que está dando, até o momento?
Tô me sentindo… como diria, não explorado, como muita gente fala das grandes gravadoras. Não tô me sentindo sugado na minha arte, e sim que está havendo um trabalho de parceria. Tô vendo que eles têm um trabalho mercadológico, mas preocupado com a criação, com a arte mesmo. Por exemplo: não pediram para a gente remixar nada no nosso trabalho, entenderam que a estética é mais caseira, mais lo-fi. Achei muitíssimo positivo que eles aceitaram isso como uma característica e não como um defeito. Achava que eles iriam pedir uma mudança, e nada disso aconteceu. Acho que estão confiando bastante no nosso trampo.

Quando saiu o “Novíssima Música Brasileira”, teve muita gente do meio musical celebrando as gravadoras grandes voltarem a olhar para o meio independente. Por outro lado, houve muitos que chiaram, tanto artistas como produtores, dizendo que uma coletânea era “muito pouco”, era um “retrocesso aos anos 80”, entre outras críticas mais ou menos pesadas. A mim, me parece uma coletânea bastante adequada. Se não representa toda a produção atual – o que seria impossível de qualquer forma – pelo menos traz um panorama bem interessante do que está sendo feito.
Verdade. Teve essas críticas, sim.

Então. Você acha que ainda persiste esse, digamos assim, “coitadismo”, esse “complexo de outsider” no cenário brasileiro? O próprio Tame Impala: no começo, crítica, artistas e fãs saudavam a banda, agora desdenham porque eles vêm seguidamente ao Brasil, “parece Jimmy Cliff”, essas coisas. Parece que as pessoas querem porque querem ser “coitadas” e valorizar só quem está “fora”.
Acho que esses exemplos existem, sim. Eu mesmo conheço muita gente que era bastante fã não só do Tame Impala, mas de outras bandas de levas muito importantes, e que hoje em dia caem nessa onda de modismo, uma parada mais recorrente à superficialidade, e não uma aprofundada na arte mesmo. É realmente difícil deixar de existir isso, é uma reação natural a muitos fatores. Tem gente que acha que faz um trampo massa e que devia ter um alcance muito grande, e que por não conseguir esse alcance fica ressentido com isso. Tem gente que preza pela parada bem obscura, quer que seja bem “jogada” e não se preocupa com timbres, com volumes, com mixagem. O do-it-yourself cruzão tem esse tipo de gente meio ranzinza e que começo a dizer esse tipo de coisa. A galera não procura ver a arte pela arte, só porque ela tá numa vitrine grande, saca? Gente que vem falar mal de um cara como o Drake, por exemplo, com aquela música do “me, myself and my millions” (“Headlines”). A letra é besta, mas vai sacar a melodia que tá sendo usada ali, os timbres! O cara tá numa grande gravadora, estourado, e tá fazendo uma parada de qualidade. Não é porque ele está num mainstream pesado que ele é um cara ruim. Então acho que existe, sim, preconceito contra o mainstream, contra a ideia do mainstream. Essa coletânea nem toca nesse patamar de mercado, é um núcleo bem menor, mas atrai esse mesmo preconceito: gente que vai falar mal do The Baggios porque “tá passando da onda”. Tem gente que segue por si só, e eu admiro. A gente não almejou chegar na Sony. Uma vez que chegou, está curtindo, mas não está achando a melhor coisa do mundo nem a salvação. Não é estar nela que vai fazer a gente “acontecer” no sentido material. Mas segue esse preconceito besta. Sabe, como quem fala “argentino é chato”. Bicho, argentino é ser humano, e tem ser humano chato e ser humano legal! Não tem esse tipo de bitolações. É vício de pensamento.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. Foto que abre o texto: Reprodução Facebook / Divulgação.

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