Livro: Amanda Palmer e a Arte de Pedir

por Nathália Pandeló

Se há uma máxima bíblica que Amanda Palmer parece seguir é “pedi e recebereis”. A julgar pelos jeans rasgados, os espartilhos, os coturnos e as sobrancelhas desenhadas despretensiosamente a lápis preto, ela não aparenta ser uma das leitoras mais fervorosas das escrituras. O que ela aparenta é ser uma estrela do rock, e isso ela sabe fazer muito bem.

Seu status de cantora indie ultrapassou as fronteiras do clubinho de bandas underground da internet e chegou às manchetes do mundo todo quando conseguiu um feito inédito até então no mundo da música: pediu US$ 100 mil aos fãs via financiamento coletivo para lançar um novo disco e recebeu US$ 1,2 milhão. Foi a primeira vez na história que um projeto desse tipo atingiu uma cifra de sete dígitos. A façanha deu origem à sua palestra na série de conferências TED, “A Arte de Pedir”, cujo vídeo viralizou e agora chega às mãos dos leitores brasileiros como um lançamento da editora Intrínseca (com tradução de Denise Bottmann e 304 páginas) com o subtítulo “Ou como aprendi a parar de me preocupar e deixar que os outros me ajudem”. O livro é uma tentativa de expandir o conceito que os 13 minutos do material original não permitem incluir: a dor e o prazer de ser um artista e viver como um profissional criativo.

Muitas das vezes, trabalhar com criatividade requer exatamente encontrar novas soluções para problemas como a legitimação e a monetização de algo que para muitos sequer é um trabalho, e para outros tantos não passa de um produto. Com os meios de produção e distribuição cada vez mais a um clique de distância de qualquer artista, “A Arte de Pedir” propõe a reflexão: ao invés de buscarmos novas formas de obrigarem o consumidor a pagar por músicas, filmes e outros bens criativos, por que não fazer do pagamento não um fim, e sim uma consequência?

Parece utopia, mas Amanda tem propriedade para falar: antes representada por uma gravadora, quando ainda fazia parte do duo The Dresden Dolls, ela foi considerada um fracasso de vendas. Seu lançamento na época foi comprado por “apenas” 25 mil pessoas. Foi exatamente esse o número de apoiadores de seu projeto de financiamento coletivo, que contribuíram com até US$ 10 mil cada para fazer o disco acontecer. Amparada em exemplos como o do Radiohead, que ultrapassou as expectativas de vendas do álbum “In Rainbows” (2007) permitindo que os fãs pagassem a quantia que achassem justa pelas 10 músicas, Amanda Palmer desafia os conceitos da indústria e propõe que o relacionamento artista-fã não é meramente uma transação comercial, e sim uma troca de experiências e conexões reais.

A internet é a principal ferramenta para encurtar essa distância, e Amanda destila história após história de fãs que lhe ofereceram o sofá para passar a noite, de admiradores para quem ligou para consolar após uma perda, de seguidores do Twitter que a ajudaram a completar uma letra de música. E, embora a autora nem sempre o diga com todas as letras, o que fica claro é que há sempre o elemento da conexão humana para fazer toda a diferença, seja da artista para os fãs ou no sentido contrário.

Não que isso seja novidade. Um dos exemplos que Amanda usa no livro é Henry David Thoreau, autor de “Walden ou A Vida nos Bosques” (1984). O livro é uma espécie de autobiografia do escritor transcendentalista considerada um manifesto pela vida autossuficiente e livre dos costumes e do consumo da sociedade do fim do século XIX. Em “Walden”, Thoreau se retira para viver na floresta, onde constrói a própria casa e vive apenas com o mínimo necessário para sua sobrevivência. O mais curioso é que o próprio autor, um bastião da vida independente, ergueu sua cabana em terra emprestada por um vizinho, constantemente jantava na casa do também escritor Ralph Waldo Emerson e recebia da mãe e irmã uma cesta de quitutes que incluíam, entre muitos itens assados, rosquinhas recheadas – os famosos donuts. Tudo isso para mostrar que até o mais independente dos homens precisa de uma ajudinha de vez em quando.

Sem a pretensão de apontar a solução para um mercado que ainda busca se encontrar, Palmer volta aos seus tempos como estátua humana em uma praça de Boston, quando ficava horas a fio vestida de noiva, para mostrar que existe, sim, esse quid pro quo. Seja a caminho do trabalho em uma rua movimentada, seja no palco de um show, as pessoas querem (e precisam) ser movidas, tocadas, emocionadas por algum estímulo. Pela letra de uma canção, pela cena de um filme, pela mulher toda vestida de branco e imóvel sobre um caixote. E quando acontece essa sinergia, muitos de nós optam por dar algo em troca, seja um sorriso, o compartilhamento de um post no Facebook ou uma nota de R$ 20.

A verdadeira reflexão de “A Arte de Pedir” está, principalmente, em mostrar o tanto que poderíamos alcançar e conquistar não fosse a nossa mania de autossuficiência e a vergonha de se expor pedindo um favor, uma ajuda, uma força. Ao narrar com detalhes os vários encontros que teve com fãs e a derrubada da parede que separa o artista de seu público, Amanda Palmer demonstra o quanto somos todos donos dessa escolha, certos de que se hoje é o nosso dia de receber, amanhã será o de retribuir, em um ciclo eterno de gentileza.

Fosse o livro mais curto, talvez não desse a impressão de uma tentativa de autopromoção em alguns momentos. Sem a formatação típica de um conjunto de memórias (como muitas vezes “A Arte de Pedir” tenta ser), os capítulos frequentemente dão a sensação de ser um bate-papo com a autora, daqueles em que os assuntos fluem livremente, sem qualquer compromisso com a ordem cronológica ou a sequência que o leitor espera. E, embora esse vai e vem de momentos e fases na vida da artista seja importante para compreender de onde ela veio, onde está e para onde quer ir, é difícil escapar da percepção de que alguns relatos estão ali para reafirmar, constantemente (e, às vezes, sem qualquer necessidade), a conexão real que ela tanto faz questão de ter com os fãs. Em contraste, as controvérsias que viraram quase uma consequência do sucesso no Kickstarter foram minimizadas.

Mas, verdade seja dita, esse seria um feito quase impossível quando se trata de uma espécie de autobiografia de uma artista em pleno auge criativo. Amanda Palmer ainda tem tanto a realizar que, logo após o lançamento do livro, estreou em uma nova plataforma: o Patreon, um site onde fãs entram com o apoio financeiro e artistas e criadores diversos oferecem o que todo mundo quer: conteúdo. Mesmo sem um ponto final, “A Arte de Pedir” deixa a moral em alto e bom som: apenas aceite os donuts.

– Nathália Pandeló (@nathaliapandelo) é jornalista, assessora de Comunicação e diretora de conteúdo na Build Up Media. Assina o blog Madeira de Deriva (www.nathaliapandelo.com.br)

Leia também:
– Amanda Palmer estrela a série “o amor só é brega se você for brega” (aqui)
– Eduardo Vicente: “Crowdfundig faz parte do contexto de uma cultura mais fortalecida” (aqui)
– Dulce Quental: “Crowdfunding está me mostrando o quanto é difícil mobilizar pessoas” (aqui)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.