Entrevista: Cassim & Barbária

por Leonardo Vinhas

Todos os elementos que os integrantes do Cassim & Barbária adicionam para fazer sua música não garantem que o resultado final se assemelhará a uma das referências originais. Esclarecido isso, fica mais fácil dizer que há nela traços de pós-punk, música pop, erudito moderno, noise e, mais que tudo, kraut rock, sem que eles sejam uma banda desse ou daquele gênero.

“Estamos numa fase gótica”, brinca, no palco da Célula Showcase – um misto de casa de shows e estúdio em Florianópolis – Cassiano Fagundes, vocalista e guitarrista, no segundo show da banda após o lançamento de “Cassim & Barbária III”, seu melhor e mais distintivo disco até o momento. O show reflete e amplia a qualidade desse registro – mais sorumbático e épico que os demais, sem dúvida. Uma excelente apresentação, baseada em um disco muito bom, e mesmo assim, a Célula tem menos de vinte pagantes numa quinta-feira de noite chuvosa .

“Se alguém ainda está nessa [a música independente] esperando ficar rico ou mesmo ganhar dinheiro, é ou inocente ou burro”, declararia uma semana antes, com conhecimento de causa e certo senso profético, o também guitarrista e vocalista Gabriel Orlandi, num bate-papo com a banda toda que começaria na mesa de plástico de uma lanchonete e teria sequência nas salas de ensaio da mesma Célula. Cassiano, Eduardo Xuxu (outro guitarrista e vocalista, e um dos sócios-proprietários da citada casa de shows) e Manolo K (trumpete, bateria e o que mais pintar), todos com anos de atuação musical e com longa discografia espalhada entre outras bandas e projetos solo, concordavam sem reservas.

Essa certeza de que sua arte não lhes dará retorno financeiro favoreceu o desenvolvimento de duas características que possivelmente já eram inatas aos seus integrantes: a habilidade de viabilizar financeiramente seus projetos (via editais, patrocínios e afins) e a decisão de que as únicas concessões a serem feitas seriam às próprias vontades de quem na banda estivesse. A imprecisão do tempo verbal se deve ao fato de Cassim & Barbária ser uma agremiação “mutante” – termo que Cassiano e Xuxu usam para explicar as mudanças de formação pela qual a dupla já passou.

Em seus seis anos de existência, a banda excursionou pelos EUA e Canadá (a experiência virou o DVD “Na Estrada, No Estúdio”, lançado em 2010), Argentina e vários Estados brasileiros. Apesar da estrada, mantém-se fiel à capital catarinense onde residem e da qual se orgulham, embora nenhum deles seja natural de lá. É uma trajetória incomum, consoante com sua proposta musical.

A ideia inicial dessa entrevista era entender um pouco melhor essa proposta e essa trajetória. Não foi exatamente isso que aconteceu. Assim como no som, suas vozes também se somam e sobrepõem na entrevista (Gabriel e Cassiano, em especial, falam quase sempre ao mesmo tempo, ora um complementando o outro, ora colidindo os assuntos – teria algo a ver com a letra de seu quase hit “Catastrofismo”, onde cantam que “o amor é colisão”?). E não só isso: o extremo e insuspeito bom humor da banda (ok, insuspeito apenas para quem não os tinha visto ao vivo) levou o papo para muitos outros lados. E se esses desvios não responderam com exatidão à premissa inicial, acabaram por revelar algumas coisas sobre como a banda se vê, seu desapego a hypes ou aspirações megalomaníacas, e, vejam, só, até seu processo criativo.

Uma das coisas que me chamou a atenção quando fui pesquisar sobre a banda foi a constante referência “cabeçuda”. Sei que tem a influência de kraut rock, japanoise e outras coisas, mas não me parece, ouvindo a banda, que a proposta de vocês seja ser inacessível. OK, “Cassim & Barbária III” pode não ser aquele formato canção clássico, de parte A-refrão, parte B-refrão, mas é bem assimilável.
Manolo: A gente tem essa preocupação com harmonia e melodia, o Cassiano e o Xuxu compõem umas melodias bonitas…

Gabriel: A gente na verdade quer fazer música pop, mas não sai (risos). A ideia não é fazer o mais complicado que dá.

Cassiano: A gente não tem essa técnica.

Xuxu: Mas me lembro que quando o Cassiano me procurou para montar a banda – só temos eu e ele da primeira formação – ele chegou e me disse (imita o amigo): “eu quero montar uma banda de kraut” (risos). E a banda se formou em torno da ideia dele. Querendo ou não, a gente mantém a coisa de ele ser “o líder”. Eu gosto de pensar nisso.

Gabriel: Eu também.

Xuxu: A gente acabou criando uma cara bem nossa, que tem muito a ver com a mudança de formação, que é uma constante desde o começo. A gente já mudou umas seis ou sete vezes, e sempre foi de propósito. É uma coisa massa! Cada vez que muda um cara, muda a sonoridade.

Cassiano: Inclusive teve uma época que chegava gente já sabendo que dali a dois shows iria sair, por uma viagem ou outro motivo qualquer. A gente não quer ter um formato fechado de banda.

Gabriel: Isso é mais fácil quando a ideia do som está mais madura, quando você sabe onde pretende chegar com a música. Aí os novos elementos vêm para formar nuances e levar para outros caminhos, mas o som buscado está claro para todos.

Se prevalece esse formato “não-fechado”, vale perguntar, então, se vocês chegam a compor a música pensando em quem vai executar, em quem está no momento.
Cassiano: Não, porque quando a gente chega com a ideia, pode ser algo que já vem pronto. Eu mesmo trago muitas músicas já gravadas na minha casa para trabalhar com a banda aqui. Só que inevitavelmente ela vai ficar bem diferente da ideia original. Eu… vou usar termos técnicos de crítica genética: a gente vem com “imagens geradoras” – gostou dessa? (risos) – que acabam tendo várias influências… No final, o processo não é nada fechado, não acaba nem na composição, porque pode virar outra coisa totalmente distinta ao vivo.

Gabriel: Ainda hoje continuamos assim. O que é gravado é uma representação da música naquele momento. Por exemplo, temos trabalhado bastante numa música do “III” chamada “Cânion”, e ainda não conseguimos chegar a um resultado porque ela talvez não funcione como está no disco, e ainda não achamos um jeito de fazer funcionar ao vivo. Mas uma hora deve chegar a um resultado (risos). (nota do repórter: chegou. Executaram uma versão muito bonita da canção no referido show na Célula Showcase)

Xuxu: Tem a ver também com algo que eu e o Gabriel temos que é o lado de compor em estúdio. O Manolo também tem disso, o Cassiano nem tanto. De entrar para gravar sem ter muita coisa definida e aquilo que parece experimentação acaba sendo algo que foi criado e resolvido ali na hora mesmo.

Gabriel: E a gente ainda se chama Cassim & Barbária porque isso tem a ver com o pilar da construção toda. Em algum momento tem que ter uma linha de composição, uma coisa mais firme, e no nosso caso é o que o Cassiano concebeu.

Mas não vira uma “banda de patrão” em momento algum?
Todos: Não, de jeito nenhum!

No começo, vocês tocavam bastante ao vivo. Mas a julgar pela agenda recente, e pela conversa que estávamos tendo antes da entrevista começar, parece que agora vocês têm um foco muito maior em estúdio.
Xuxu: A gente só ensaia quando tem um show pra fazer.

Manolo: Ou um disco. E o disco não tem ligação com o show. A gente grava o que parecer o certo para aquele momento, depois a gente vê como vai fazer no palco.

Xuxu: Neste momento a gente está se batendo para construir um show – não uma coletânea de músicas, mas um show. A gente está tendo dificuldade, mas uma hora vai sair.

Cassiano: Como eu disse, a gente conversa muito sobre conceito – de som, do show. E no caso do show, a gente pensa na parte visual, ou decide dançar um break…

Gabriel: Imitar o Michael Jackson, hahaha!

Cassiano: A gente tem consciência do que está fazendo, e talvez por causa disso o som tenha uma riqueza e um direcionamento não usual.

Vocês fizeram poucos shows de divulgação do “III”. É por pensar tanto no conceito?
Gabriel: É, fizemos dois até agora. Se contar o do [festival] Floripa Noise [em abril de 2014], que veio antes do lançamento do disco, fizemos três.

Xuxu: Inclusive gostei daquele show que a gente fez no Floripa. Foram três guitarras o tempo todo, bateria o tempo todo. Antes, com o Zimmer (nota: ex-integrante, ou “integrante não-praticante”, da banda, presença constante em ensaios, shows e gravações – e até nesta entrevista, ainda que silenciosamente) ou mesmo com o Manolo, a gente estava usando muito sampler. Mas naquele show não. Só que a gente já abandonou aquele show (risos). Eu tô quase me arrependendo…

Manolo: A banda tem uma preocupação de apresentar uma coisa interessante, não tocar as músicas numa sequência e pronto.

Gabriel: Inclusive o show tem sempre alguma coisa que a gente não gravou [em disco]. Mas esse nosso processo de pensar um show diferente a cada pouco é cansativo, sabe? E a gente não tem interesse em ficar repetindo o mesmo show no mesmo lugar para as mesmas pessoas. Então talvez seja bom tocarmos pouco, porque aí a cada vez podemos fazer uma coisa diferente.

Vamos falar um pouco da versão que vocês gravaram para “Chica Rutera”, do El Mató a un Policía Motorizado. Foi a que mais polarizou no retorno que tivemos do pessoal que escutou a coletânea “Somos Todos Latinos“.
Cassiano: Tem alguns elementos de ligação dentro dessa banda, algumas coisas nas quais a gente insiste, e uma delas é o kraut rock, sempre foi. E “Chica Rutera”, pra mim, tem muito disso. A batida dela é reta. A gente conversou muito sobre o conceito…

Manolo (rindo): A gente sempre conversa mais sobre o conceito da música do que passa tempo construindo-a.

Cassiano: “Chica Rutera” foi assim: a gente pegou algumas coisas características da canção, e outras que são nossas. Da original, tem a linha vocal e uma guitarra com e-bow…

Gabriel: …que foi a única coisa que foi mais ou menos parecida. Porque até na letra mexemos: mudamos a ordem dos versos e cantamos “Espero que vuelva”, e no original é “espero que vuelvas” (nota: mudando a conjugação da segunda para a terceira pessoa do singular, deixando a frase gramaticalmente bizarra). Foi proposital (risos).

Xuxu: Desde que o Gabriel entrou, há uns quatro anos, a gente começou a usar muito vocal. Antes até tentávamos, mas em dois – eu e o Cassiano – é mau, em três é massa!

Cassiano: A gente usa a voz como um instrumento. Tanto que tem muita música com vocal, mas sem letra.

Pouco antes de começarmos, vocês brincaram dizendo que, somando o tempo dedicado à música entre os integrantes, tem mais de um século de experiência aí. Então eu pergunto uma coisa que vejo – ou melhor, não vejo – em Florianópolis e em outras cidades: onde estão as bandas novas? Não está faltando uma renovação? Quem está no palco em geral é quem está há anos na estrada…
Gabriel: Eu não me imagino preocupado se temos uma “cena”, se faço parte de um clube… Não penso se tenho algo a passar para as bandas novas, e não sei se eles querem, e também acho que não tem nenhuma banda nova legal (risos). To ranzinza.

Xuxu: Eu já pensei bastante sobre isso na época em que tinha que pensar (risos). Agora…

Gabriel: A gente já está cuidando da própria banda, e é quase mais do que a gente pode (risos).

E também todo mundo já entendeu que não vai viver de música, quanto mais ficar rico…
Manolo: Acho que isso na verdade é bom. A gente não tem ilusão, então pode fazer o que gosta.

Cassiano: Tem um lance que acontece com bandas e com o Cassim & Barbária acontece muito. De vez em quando aparece um louco que vem e se apaixona pela gente, que entende a coisa, e isso é uma das coisas legais de tocar. Sempre vai ter alguém que gosta, e isso dá um gás.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Leia também:
– Download gratuito: baixe a coletânea “Somos Todos Latinos” (aqui)
– “Somos Todos Latinos”: compare as versões originais com as da coletânea (aqui)
– Em DVD: Hotel Avenida e Cassim e Bárbaria (aqui)
– Adquira “Cassim & Barbária III” diretamente com a banda (aqui). Ouça o disco aqui

6 thoughts on “Entrevista: Cassim & Barbária

  1. Pelo nome da Banda achei que tinha alguma coisa a ver com o Kassin, produtor dos Los Hermanos. Ele como produtor é bom, mas o disco que ele lançou é horrível, vergonha alheia de tão ruim.

  2. Concordo com você. E o pior é que o disco do Kassim foi bem recebido pela crítica especializada.Mantive o disco no meu player durante um período para ver se o tempo o melhorava ou, pelo menos, me melhorava. Apaguei porque nenhuma das duas possibilidades aconteceu. Hahah

  3. Você pode ouvir até 2088 que não melhora. Se ele não fosse tão “querido” pela crítica especializada esse seria considerado um dos micos do ano que foi lançado.

  4. Falando da banda, eu gosto muito do primeiro disco, e ficava vendo Catastrofismo na MTV, era legal. Mas foi extremamente broxante e desestimulante de que cena independente ninguém vai ficar rico,viver de musica,etc. Acho que temos que parar com essa porcaria de discussão e começar a fomentar as coisas para que exista um mercado forte do segmento. Será que esses caras ficaram sabendo da Sacola Alternativa, um evento do Fernando Dotta e da Balaclava Records? Eu acho que deveriam ficar estimulando novos talentos ao invés de jogar água fria. Lamentável.

  5. Fernando, não acho que eles jogaram água fria em ninguém, só deram a real que qualquer cara que está tocando na cena independente há mais de 15 anos sabe. Muito pelo contrário: minha banda, a Sandoz, é uma das catarinenses que se beneficiaram pelos projetos do Cassim e barbária de circulação e incubadoras de bandas novas. O que eles dizem é que mais importante pra eles do que ganhar dinheiro e sobreviver com a banda é viabilizar os projetos da banda, até porque é mais real e possível isso do que a ideia anterior. E eles passam isso pras bandas novas, o projeto de circulação deles era assim: eles chegavam numa cidade de SC, faziam um bate-papo com bandas, produtores, etc sobre viabilizar gravação e tour com edital, fomentavam discussão e depois faziam o show, o que foi uma estratégia muito boa de marketing deles, porque assim ganharam muitos fans, mais pela atitude do que pelo som. Particularmente não gosto do tipo de som que eles fazem, mas acho que a trajetória deles é bem coerente e verdadeiramente independente.

  6. Massa Jonas! Tenho muito tempo dedicado à música. 20 anos ou mais. Vivo dela, inclusive. Tenho a Célula Cultural (que tem show, estúdios e tal). Por conviver muito com bandas e artistas (em função das minhas atividades), acredite, não tenho opção se não diariamente pensar em música. em estratégias, em evento, em mercado, etc. gostaria de ter mais tempo pra pensar na minha música, mas adoro minha vida assim. Imagino que o Fernando seja mais jovem.
    Pessoalmente, ler o que tu escreveu aqui, é a cereja do bolo. O que faz as coisas valerem a pena pra mim. assim como eu, tocado por outras coisas ou pessoas, diversas vezes viro a chave ou caio em reflexões desconstrutivas pra depois reordenar os pensamentos, é muito bom saber que em algum momento, ajudei num processo similar de outro. É verdadeiramente o que paga tudo o que eu faço.
    Nem sei como caí neste link hoje, tempos depois da entrevista, mas ler isso fez valer meu dia. Obrigado!

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