Literatura: Os 65 anos de “A Cidade Perdida”, de Jerônymo Monteiro

por Herbert Moura

Para alguns, talvez seja insólito pensar que no Brasil já foi feito ficção científica. E ficção científica comparável àquelas escritas por Asimov; portanto, grandiosa. No país, o pai do gênero chama-se Jerônymo Monteiro (1908/1970). Em seu terceiro romance, “A Cidade Perdida” (1948), Jerônymo foi responsável por tecer um livro arrojado, no qual, apoiando-se e utilizando-se de uma base científica sólida, traça um novo perfil da história do homem ao dizer que as origens deste estariam no continente americano, mais precisamente na região central do Brasil, e não na Ásia, como a ciência, ao longo dos séculos, vem corroborando. Ficção, obviamente, mas, ao término da leitura, fica-se com a sensação perene de estarmos diante de incógnitas. Afinal, está em questão um passado remoto.

Tolstói teria definido toda grande literatura como “um homem que parte numa viagem, ou um forasteiro que chega a uma cidade.” Não diferente disto é “A Cidade Perdida”. Não foi necessário, entretanto, visitar galáxias distantes ou fazer viagens interplanetárias a bordo de espaçonaves para redescobrir um novo universo. Para abordar tal universo, bastou apenas uma viagem, um tanto quanto longa, é verdade, mas ínfima se comparada com as clássicas viagens presentes em romances de ficção científica. Uma viagem ao interior do Brasil.

“A Cidade Perdida” – em 2013 completam-se sessenta e cinco anos de sua publicação – trata de um Brasil que, em suas reentrâncias, repousava virgem, ansiando por ser redescoberto por aqueles que dão à liberdade um sentido diferente do que a sociedade comum a define. Se, a muitos, nos idos da década de quarenta e no momento atual, liberdade significa o consumo de bens materiais, Salvio e Jeremias, os dois amigos e protagonistas da história, dão à liberdade um sentido diferente: buscar, partindo da exploração dos interiores do Brasil, o novo, que surge a partir da possibilidade de existência de uma civilização antiga, mas perdida. Enquanto Sal Paradise e Dean Moriarty cruzavam os Estados Unidos da costa leste a oeste e interpretavam a liberdade como algo distante dos bens de consumo materiais, definindo o que mais tarde seria a geração beat e redescobrindo um lado do país distante e alheio ao sonho americano, o coração do Brasil era redescoberto pelos exploradores Salvio e Jeremias, embora, excetuando-se o conhecimento teórico, que demonstrou ser decisivo, sem qualquer tipo de experiência ou habilidades numa viagem com o fim ao qual se propuseram.

Incrédulo, Jeremias, narrador do romance, custou a acreditar nas teorias de Salvio, que transpirava entusiasmo e confiança. Tais teorias defendiam a existência de uma requintada e remota civilização perdida, habitante das matas do interior do Brasil, muito anterior aos indígenas aqui encontrados na época da chegada dos portugueses. Ou seja, para Salvio, os indígenas habitantes do Brasil na época do descobrimento eram resquícios decadentes de uma grandiosa civilização que aqui se desenvolveu e prosperou, pois as características apresentadas por tais indígenas denunciavam a condição a que estavam submetidos: estafados de tudo na vida, uma vez que, para se compreender as delícias da vida simples junto à natureza, é necessário passar por uma vida anterior pautada numa complexa organização da existência. E mais: o cânone científico interpreta nossos indígenas como descendentes dos orientais, mas, para Salvio, por que não levantar uma hipótese contrária a esta afirmação? Salvio interpreta os orientais como descendentes de nossos indígenas, porque a história do oriente, embora milenar, seria mais recente do que a história de nossos índios, que, de tão milenar, teria se perdido na noite dos tempos.

Ainda incrédulo, Jeremias apresentava grande resistência e relutava em acreditar nas teorias de Salvio. Este, por sua vez, afirmava que Jeremias apenas repetia o que ouvira porque isto fora divulgado com foros de veracidade científica. E como todo bom reprodutor, em vez de analisar a realidade a partir de si e criticamente, não usou o cérebro, não tentou raciocinar. Em longa conversa com Jeremias, Salvio, apoiando-se em dados científicos comprovados, ou seja, apoiando-se na verdade, mas analisando-a criticamente, demonstrou a Jeremias que o continente americano já estava exposto ao ar e, talvez, coberto de vegetação primitiva, enquanto as outras partes do globo ainda estariam mergulhadas na água, continuando a receber novas camadas de sedimentos e que, milênios mais tarde, emergindo, formariam os outros continentes, o chamado “velho mundo”, mas, na verdade, os novos continentes, de constituição geológica mais recente do que a do solo brasileiro. Dizendo que a maior parte do solo brasileiro é composto por rocha primitiva, arcaica, e, portanto, teria emergido da água milênios antes das outras partes do mundo, é cabível pensar que este mesmo solo brasileiro deve ter recebido a semente da vida milênios antes dos outros continentes. Porém, cabe salientar que se o homem apareceu na América antes de aparecer em qualquer outro lugar porque aqui se encontravam as condições necessárias ao seu aparecimento, temos que em outros continentes apareceram as condições necessárias à vida humana. O homem, portanto, seguiu com o tempo.

O “novo mundo” descoberto por Colombo e Cabral era, na verdade, o mais antigo dos mundos, berço da raça humana e da civilização. Nesse sentido, segundo Salvio, nos é permitido afirmar que o homem já vivia em nosso continente alguns milhares de anos antes da época em que se acreditava tivesse ele surgido. O livro não almeja, com isso, levantar hipóteses implausíveis. Jerônymo Monteiro, para tecer sua ficção, levantava tais hipóteses apoiado em argumentos científicos verdadeiros, como demonstrado no segundo capítulo da obra, a partir deste grande diálogo de Salvio com Jeremias, no qual aquele provou a este a importância e necessidade de explorar os recônditos do Brasil em busca de provas que seriam responsáveis por sustentar suas teorias. E, enfim, Jeremias deu crédito ao amigo, confiando nele e aceitando partir em tal aventura pelos até então pouco explorados interiores do Brasil. Neste mesmo diálogo, Salvio demonstrou a Jeremias a existência, na América do Sul, de características evidenciadoras da presença de vida, neste continente, muito anterior às civilizações já conhecidas pelo homem. Ruínas de templos, palácios, pirâmides, hipogeus, túmulos, monumentos de estilo original, cujas linhas arquitetônicas não se parecem com as dos monumentos egípcios ou greco-romanos. Jeremias já estava demasiado convencido da possível veracidade das teorias de Salvio, quando disse a este que possuía um objeto misterioso. Era uma grade de ferro, com símbolos estranhos, que imediatamente despertou a atenção de Salvio. Aquele objeto enviado da Venezuela há anos por um tio de Jeremias já falecido levou Salvio a concluir que aquele era o momento exato para partirem numa aventura pelos recônditos do Brasil. Antes, no entanto, ainda na longa conversa tida com Jeremias, Salvio arrematou: “O que eu penso é muito simples, Jeremias, mas, no atual estado dos conhecimentos estabelecidos, poderá parecer loucura. Só o conto a você porque somos amigos, e, mesmo que lhe pareça absurdo, você não vai me matar…”

Resumindo o pensamento de Salvio, responsável por nortear sua exploração, pode-se dizer que, em épocas muito primitivas, desenvolveu-se no planalto central do Brasil uma civilização que seria ponto de partida para todas as civilizações do mundo. “Daqui teriam saído os homens que, fundando a Atlântida, se tornariam os mais famosos e misteriosos seres da nossa raça. Da Atlântida eles se teriam passado para a África, com os elementos que deram nascimento à decantada civilização egípcia. A civilização sul-americana, como todas as outras, devia ter-se baseado num princípio religioso, e este só podia ser o culto solar, porque nada impressionou tão profundamente o homem primitivo como o sol, porque bem logo ele aprendeu a reconhecer que é do sol que nos vem toda a vida.” Está, portanto, formada a tensão do enredo. Após a leitura dos dois primeiros capítulos, somos tragados pela história a partir da premissa um tanto quanto louca, mas com ares de ser baseada numa loucura lúcida. O narrador avisa, no início do livro: “Ninguém vai acreditar no que está escrito lá pelas últimas páginas, de tão inverossímil que parece, embora seja a perfeita expressão da verdade.”.

À medida que avançavam em suas explorações pelos interiores do Brasil, indícios da existência de uma civilização perdida definiram os rumos da viagem. Ora navegavam em canoas pelos rios amazônicos, ora desbravavam o caminho a partir de longas caminhadas. Mas, quando Salvio, Jeremias e Quincas, este último profundo conhecedor de toda aquela região e responsável por guiá-los na jornada, depararam-se com famosas inscrições numa pedra, foram definitivamente traçados os rumos da viagem. Quincas contava que, quando viajou por aquela região com o seu pai e Leandro, outro explorador, há cerca de dez anos, aquelas inscrições na pedra foram responsáveis por definirem os rumos daquela viagem. Leandro, após a feitura de cálculos, decidiu-se por marchar, a partir daquele ponto, seiscentos quilômetros para noroeste, até alcançar o Araguaia. Tendo chegado ao Araguaia, atravessá-lo-iam e penetrariam no Pará, seguindo pela fronteira com o estado de Mato Grosso. Não diferente de tal roteiro foi o caminho escolhido por Salvio, após também a feitura de cálculos realizados com base nas inscrições da pedra. Entretanto, será que haveria diferenças entre o desfecho daquela exploração anterior, empreendida pelo pai de Quincas, quando Quincas ainda era um moleque de quinze anos, com o desfecho da exploração atual, guiada pelo filho pródigo? A exploração anterior culminara com o desaparecimento definitivo e misterioso de Leandro e do pai de Quincas. E a atual, quais consequências ela renderia?

Até esse momento da história, a certeza única tida pelo leitor atento parte de duas premissas básicas, uma justificando a outra. A primeira define-se pelo fato de ter sido loucura embarcar naquela exploração, pois estaria a vida em risco, uma vez tendo contato com as circunstâncias mais adversas possíveis, como os inúmeros grupos selvagens com os quais se depararam durante a jornada. E da segunda premissa entende-se que, caso seja comprovada a existência de uma civilização perdida, ou resquícios da mesma, tal loucura empregada na realização da viagem seria justificada pelas consequências que a descoberta geraria. Tal revelação, certamente, se conforme as teorias de Salvio, abalaria os cânones científicos: a verdade estaria sendo lançada à luz sob o ponto de vista histórico dos “derrotados”, algo que os “vencedores”, pertencentes ao “velho mundo”, sob a figura dos descobridores, e aqueles que exploram o Brasil durante séculos, estes sob a figura dos colonizadores de diversas nações, não iriam permitir tão facilmente. Ou seja, para que a nova acepção de que o berço da humanidade seria o Brasil, criada por Salvio, fosse, de fato, aceita e metamorfoseada em dogma científico por aqueles que detêm a palavra final em tal campo, seriam necessários fatos evidentes e comprovadores da nova realidade. E será que Salvio e Jeremias, ao final, seriam os portadores da verdade?

Aos amantes da ficção científica e aos que buscam incessantemente dar sentido ao existir, conscientes das características transgressoras da arte, “A Cidade Perdida” é leitura indispensável. Mostra-nos da importância de sempre buscarmos agir emancipadamente a partir de nossos próprios pensamentos; e da necessidade de empreendermos um pensamento crítico quando a realidade é demasiada enganosa, pois, ainda que pareça loucura duvidar do óbvio, só é possível chegar à verdade se sempre levantarmos indagações cujas respostas nos pareçam distantes. Sobre realidades enganosas não há muito que falar. Temos um modo de vida que preza, acima de tudo, por meios racionais para se chegar a fins irracionais, estando como consequência a artificialidade de uma realidade pautada pela primazia econômica. “A Cidade Perdida”, por conseguinte, tem teor atemporal e é aplicável ao momento presente devido às características transgressoras de seus personagens. Estes, empunhando a bandeira da coragem e insatisfeitos com o estado das coisas, buscaram dar sentido à existência ao agirem a partir de pensamentos próprios e emancipados, tal quais os membros da geração beat.

Há, no livro, como prenúncio do momento vivido por nós e como uma característica fundamental da literatura científica, revelações pessimistas acerca de um futuro que até então era incerto, após os horrores da segunda grande guerra, mas que dava margem à elocubrações contundentes sobre o porvir, como as feitas por Jerônymo Monteiro baseando-se em argumentos que, muito embora em 1948 parecessem distantes de se realizar, hoje são perfeitamente passíveis de serem enxergados nas características da sociedade e do modo de vida atual. Não só pelas ações transgressoras dos personagens, como também pelo teor reflexivo e contundente das mensagens cunhadas por Jerônymo, o livro ganha em atemporalidade, sendo perfeitamente aplicável aos dias atuais. Já pelas últimas páginas, Salvio, inspirado pelas novas descobertas, define: “As democracias atuais são farsas, e não têm mais campo. Elas quererão reagir, lutarão, mas se transformarão, sem o sentir, em ditaduras também. Quer dizer: estamos vivendo uma época de violências. Daí, os grandes exércitos, as grandes polícias, a escravização do povo. Este reagirá a princípio, mas se adaptará com o correr dos anos, e cada país será, então, um rebanho de escravos trabalhando sob domínio dos ‘representantes da lei’: fuzis, baionetas, metralhadoras e bombas atômicas…” (Não se esqueça: o livro é de 1948.) Jerônymo Monteiro parecia prever que os habitantes do século XXI viveriam um mundo de massas, onde não há espaço para o pleno desenvolvimento das emoções e sensibilidades individuais e únicas de cada homem, e onde o projeto controlador neoliberal é empreendido com afinco pelos governos sobre os povos.

Foi dito por Millôr Fernandes, certa vez: “Em ciência leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos.” Mas quando se trata de uma literatura cujo teor seja científico, leia Jerônymo Monteiro. Após a leitura de “A Cidade Perdida”, caso surjam dúvidas e intrigas concernentes à realidade dos fatos – se no país há ou não resquícios de uma civilização perdida – o Brasil, embora não mais tão virgem quanto à época, ainda existe e estará passível de ser explorado por aqueles que dão à liberdade um significado diferente do comum: um sentido imaterial.

“A Cidade Perdida” encontra-se fora de catálogo, mas pode ser adquirido em sebos como o Estante Virtual ou mesmo ser lido online através do site Ebooks Brasil (aqui)

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