Boteco: Três cervejas da Brasserie Cantillon

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por Marcelo Costa

O mais antigo estilo de cerveja do mundo atravessou séculos, e ainda hoje permanece idêntico a sua origem. Surgido em Bruxelas, o estilo Lambic caracteriza-se por fermentação espontânea através de leveduras selvagens, método que poderia enlouquecer o mestre cervejeiro de uma grande fábrica, mas que na capital belga é usado naturalmente: com janelas abertas, teias de aranha e buracos no teto, os cervejeiros convidam as leveduras para a produção da cerveja, e o resultado é um estilo único, que devido à ação de uma levedura especial, a Brettanomyces (Bret, para os íntimos), faz da Lambic uma experiência que pode assustar inexperientes, isso tudo porque a Lambic é uma cerveja naturalmente de ataque ácido, avinagrada e salgado – a acidez é tão intensa que se costuma utilizar lúpulos envelhecidos na receita, mantendo suas propriedades conservantes e renegando a função de amargor (a acidez por si só já basta. Acredite). É um estilo único e que requer dedicada atenção: é impossível beber Lambic sem se curvar a sua personalidade excêntrica e repleta de sabores difíceis.

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Entre as fabricantes clássicas de Lambic, a Brasserie Cantillon é um dos destaques. Fundada em 1900 em Anderlecht, na Grande Bruxelas, a pequena fábrica permanece idêntica desde sua fundação: “Você vai deixar a civilização moderna, adeus ao ruído, adeus ao mundo”, avisa o site oficial. Seu proprietário atual, Jean-Pierre Van Roy, é a quarta geração da família a cuidar da cervejaria, e mantém os padrões com mão forte: enquanto muitas cervejarias, de olho no mercado, adoçam suas lambics para facilitar o consumo do público, a Cantillon mantém-se firme à receita original, que resulta em uma cerveja seca e extremamente ácida, um sonho dos puristas. A Brasserie Cantillon produz de Lambics clássicas (como a Lambic Grand Cru Bruocsella Cantillon, envelhecida por três anos) a variações como a Gueuze (um blend que une lambics novas e envelhecidas num método semelhante ao do champagne) e a Kriek (Lambics que recebem adição de cereja e framboesa). Abaixo, neste primeiro passeio, três rótulos famosos da cervejaria bruxelense.

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Começando com a Cantillon Kriek 100% Lambic, uma cerveja que recebe adição de 150 quilos de cereja em barris que totalizam 650 litros de lambic que, via de regra, estão descansando há 18 meses. Assim que a mistura é feita, o barril é lacrado e cinco dias depois começa a fermentação. O resto é história. Na taça, a Cantillon Kriek 100% Lambic exibe uma coloração vermelha rubi, que influencia na cor do creme, de média formação e baixa permanência. O aroma é intenso e traz percepção de cereja e framboesa afundada em sugestões de salgado (de areia de praia), acidez, vinagre, azedo e um leve picante (remetendo a limão). O paladar traz no primeiro ataque uma acidez intensa de mãos dadas com um azedume revestido do adocicado da cereja, que é bem sutil e remete a sidra (principalmente com adição de açúcar, comum em alguns pubs bruxelenses). Há sugestão de notas frutadas (limão e acerola) e algo que lembra suco de tomate. O final é seco, salgado e adstringente. O retrogosto reforça a acidez, mas traz uma leve sensação de cereja em uma cerveja única.

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O rótulo lascivo da Cantillon Rosé de Gambrinus já prenuncia uma cerveja apaixonante, que recebe adição de framboesas frescas ainda quanto está no barril, seguindo um processo semelhante ao da Kriek Lambic. Essa versão acima é a engarrafada em 2013, e segue a risca a máxima de que, quando jovem, a Rosé de Gambrinus ainda irá apresentar o seu sabor frutado cheio. Mais tarde, com o envelhecimento, o sabor lambic irá tornar-se dominante em detrimento do sabor do fruto. Não que isto seja perceptível facilmente no aroma, mas melhor começar pela coloração, roseada, e pelo creme, de boa formação e média permanência. O aroma traz acidez em primeiro plano circundada por notas frutadas (framboesa) e um azedo intenso que remete a limão. No paladar, o corpo é baixo e a textura, frisante. Neste exemplar de 2013, o frutado se destaca com charme adocicando a acidez e o azedume com toques de framboesa, mas não os sobressaindo – há ainda percepção de salgado, que aumenta a salivação da boca. O final é impressionantemente seco e o retrogosto, mineral e frutado. Para amar (ou odiar).

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Fechando este primeiro passeio pelas cervejas bruxelenses da Cantillon com a Gueuze 100% Lambic Bio, uma autêntica “Bruxelles Gueuze”, mistura de Lambics de diferentes safras buscando criar um resultado único – do mesmo jeito que um monge, Dom Pérignon, misturou diferentes safras de vinho branco para criar o champagne no século 18. No caso da Gueuze, a mistura geralmente utiliza uma Lambic nova (mais ácida) com uma Lambic maturada entre dois ou três anos (mais suave e intensa). De coloração alaranjada e creme de boa formação e média permanência, a Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio safra 2013 destaca, no aroma, acidez, azedo, cítrico (que remete a limão, maçã verde e pitanga), leve amadeirado e avinagrado. Ou seja, já adianta o desafio que surgirá no paladar, que, por sua vez, é mais interessante do que o aroma prenuncia. A intensa acidez da levedura distribui estocadas e adstringência, liberando um suave tom avinagrado que, conforme se acalma, libera notas cítricas e um leve caramelado, que acompanham o bebedor do final ao retrogosto, permanente e inesquecível (para quem gosta e para quem não gosta). Um clássico.

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Balanço
O que falar de uma lambic? Sim, ela é extremamente azeda, tem uma sensação forte de salgado e sua acidez é intensa. Alguns, quando a provam pela primeira vez, acreditam estar diante de uma cerveja estragada, quando, na verdade, é uma cerveja com personalidade. Seria reducionista coloca-la no meio do caminho entre uma cerveja popular e um champagne, mas o exagero talvez permita que neófitos vislumbrem a natureza de uma bebida única e especial. A a Cantillon Kriek 100% Lambic pode enganar entusiastas de cervejas frutadas, por isso é bom lembrar do lema da Cantillon: nada de açúcar. Ou seja, a Cantillon Kriek 100% Lambic é uma cerveja com um azedo/ácido intenso revestido pelo suave frutado da fruta vermelha. Se o começo é intenso, o final é provocante (e borbulhante sob as papilas). Já a lasciva Cantillon Rosé de Gambrinus é uma daquelas cervejas que melhoram com o tempo, e este exemplar deste post, datado de 2013, bastante ácido e levemente frutado, diz mais sobre seu ano de envase do que necessariamente sobre a própria cerveja. Fechando o passeio, a Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio soou a mais calma das três garrafas, permitindo sentir um frutado variado, amadeirado e até uma camada de caramelo revestindo o final. Na fábrica, cada garrafa de 375 ml custa 7 euros (o pack com as três sai por 20 euros). No Brasil pode ser encontrada por cerca de R$ 60 (cada uma).

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Cantillon Kriek 100% Lambic
– Produto: Fruti Lambic
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 5%
– Nota: 3,28/5

Cantillon Rosé de Gambrinus
– Produto: Fruit Lambic
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 5%
– Nota: 3,62/5

Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio
– Produto: Gueuze Lambic
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 5%
– Nota: 3,86/5

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– Top 1001 Cervejas, por Marcelo Costa (aqui)
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