Um passeio no East Village e Patti Smith

Texto e fotos por Thiago Pereira

O East Village é uma das áreas mais interessantes de Manhattan, em Nova York. Menos sisudo (mas igualmente boêmio) e consideravelmente mais jovem que sua vizinhança, o Greenwich, pelas ruas do bairro é possível captar traços da nova e a velha juventude norte-americana. Cheio de sebos de discos e livros, estúdios de tatuagem e charmosos brechós, a região tem como uma de suas referências a Union Square, praça que é um dos pontos mais comerciais da cidade, eternizada por Lou Reed nos versos de “Run, Run, Run” (“Gonna take a walk down to Union Square/ You never know who you’re gonna find there“).

Hoje em dia, o que encontramos por lá, entre um Best Buy (gigantesca rede de loja de departamentos) e uma livraria Barnes & Nobles (a mais fraquinha entres as filiais espalhadas pela cidade – mas ainda assim ótima) é a deprimente imagem de uma Virgin Mega Store desativada. Os restos da indústria fonográfica repousam por ali nos sebos de discos, onde se encontram “basements” recheados com produtos de um dólar.

Para quem ainda compra CD’s (e não tem frescura com usados), gastar umas horas nesses lugares é o paraíso. Boa parte da discografia do R.E.M. pode sair por menos de 10 dólares, por exemplo. Aventure-se na Rainbow Records, cujo dono, Bill, um velhinho boa praça, vai te indicar desde coisas como o jazz radical de Sun Ra até os bons trabalhos de Missy Elliott. Se o seu inglês não for 100%, pode até acabar perdendo algumas dicas, já que o figura fala rápido pra cacete, energia pura. Tanto que abre a loja todos os dias, feriados inclusos.

Mas se música for mais do que disquinhos para você, o East Village é “o” lugar para se fazer turismo-rock, digamos assim.

Uma das grandes referências do bairro é St Mark’s Place, a rua central. Muitos garantem que boa parte dos personagens que habitam o clássico livro “Mate-me Por Favor” vivem por ali, buscando guitarras vintage e comendo uma das melhores pizzas da cidade, no Artchoke Basilles. Na St Marks está o prédio onde foi tirada a foto de capa de “Physical Graffiti”, do Led Zeppelin, que é o mesmo prédio que serviu de cenário para o clipe de “Waiting On A Friend”, dos Stones. Na esquina com a 2nd Avenue, os New York Dolls posaram para a contracapa de seu histórico primeiro álbum. Onde hoje fica a loja Trash Vaudeville, antes era um espaço que servia de ensaio para gente como a Yoko Ono Plastic Band.

Pertinho, na 3td Avenue, está a redação do Village Voice, um dos pilares do jornalismo undergronud norte-americano. Ainda nas letras, na 10th está o St Marks Church: Poetry Club, local onde Patti Smith, Lenny Kaye, Gerard Malanga e muitos outros recitavam seus trabalhos nos anos 70. E a geração Beatnik marcou presença por lá com um morador ilustríssimo, Allen Ginsberg.

Na 9th Street, está o prédio onde morou Joey Ramone – e nas redondezas está a Joey Ramone’s Place, trecho de rua em homenagem ao cara. Na Alphabet City, área que abriga as avenidas batizadas com letras (A, B, C…) ainda mora Richard Hell (nome ímpar do punk nova-iorquino) e fica o Niagara Bar, capitaneado por Jesse Malin, ex-vocalista da D Generation. Aliás, o muro do bar também mostra representa uma das tradições do East Village: o grafite. No caso, uma homenagem ao mítico Joe Strummer (e como recém-escreveu aqui o mestre Forastieri, eu também “tenho orgulho de pisar no planeta onde Joe Strummer viveu”). Vale a pena fazer um brinde no Niagara para St. Joe Strummer, como canta o Hold Steady.

Na Avenue B morou Iggy Pop, que inclusive batizou um de seus discos com este nome (um Iggy Jazzy, pré-“Preliminaires”!). Também na B está o Manitoba’s, pub pilotado por Handsome Dick Manitoba, vocalista do Dictators. No setor classic rock, o Fillmore East, de Bill Graham (produtores de shows! Leitora obrigatória para 2010: “Bill Graham apresenta”, lançado aqui pela Barracuda) ficava por ali. O Continental abrigou zilhões de shows de punk rock, mas hoje funciona apenas como bar (fique atento sempre para as promoções de happy hour!). Mais acima, na Houston Street, está o Mercury Lounge, casa onde os Strokes apareceram de vez para a mídia em 2000.

Já na área do Bowery, perto de Chinatown, ficava o CBGB´s, que dispensa apresentações. Ali pertinho fica o Bowery Balroom, que foi onde assisti a um dos grandes shows da minha vida.

Feliz ano-novo, Patti Smith!

Mutação feminina de Bob Dylan e Arthur Rimbaud. A poetisa do punk. A inventora do movimento riot girl. A maior das mulheres no mundo do rock. Mas, hoje à noite, Patti Smith prefere ser apenas uma vizinha de bairro. “Boa noite a todos no Bowery, nossa casa”, diz ela, culpando malandramente o atraso devido ao frio de seis graus negativos que faz lá fora.

Dentro do Bowery Ballroom, indiscutivelmente um dos lugares mais charmosos para se escutar música em Nova York hoje em dia, o clima é aconchegante o suficiente para Patti sem sentir mais do que a vontade.  Ela se sente em um lar. A platéia, acima dos quarenta, deve ajudar nesse processo. Além de alguns gatos pingados que nasceram depois de Sid Vicious bater as botas (como eu), o público é formado por um bando de gente que, é possível, tenham visto Patti (ou Patti Lee, como chamam alguns “íntimos” na platéia) ajudar a reescrever a história do rock ali do lado, no extinto e legendário CBGB´s.

Ela está radiante, quase frívola. “Recebi uma mensagem de celular, posso ler?”, pede ela a platéia, que se delicia ao saber quem é o remetente: Michael  Stipe, do R.E.M., amigo próximo e maior divulgador do trabalho da cantora para pelo menos duas ou três gerações. É esse o clima que permanece nas duas horas de show, onde ela parece estar se apresentando com os amigos – destaque absoluto para Lenny Kaye e seu reluzente cabelo grisalho, um dos maiores sidemen da história do rock, mas principalmente para os amigos, tamanha a quantidade de homenagens que ela espalha entre discursos e canções.

O início do show é transcendental, com apenas ela e Kaye empunhando violões na belíssima “Beneath The Southern Cross”, uma espécie de oração pessoal para a cantora, que a registrou no soturno álbum “Gone Again”, de 95, um dos mais doloridos discos já gravados, por um simples e humano motivo: na época ela tinha acabado de perder, num espaço de meses, o irmão e o marido.

“Beneath The Southern Cross” da a tônica do show: despedidas. Daria pra dizer que o concerto foi uma espécie de réquiem, um funeral, se a calejada e otimista Patti Smith já não tivesse aprendido a lidar com a morte como uma conseqüência natural da própria vida. E que nós mesmos, de alguma forma, estamos nascendo de novo a cada momento. Nesta noite, o que é perda é transformado em pura beleza.

Então, cada adeus, cada lembrança a quem tinha partido, se transforma em uma autêntica celebração. Depois de espalhar clássicos como “Ask The Angels” e “Set Me Free”, Vic Chesnutt, o amargo compositor que havia se suicidado poucos dias antes, é lembrado por uma apresentação assistida por Patti no mesmo local meses antes.

Morto também em 2009, Jim Carrol, o autor de “The Basketball Diaries” (que inspirou o filme “Diários de Um Adolescente”, com Leonardo Di Caprio), “um dos grandes poetas da América” e ex-amante de Patti, teve uma canção executada por Lenny Kaye (“Com Lenny, Jim escreveu canções… comigo fez outras coisas”, riu Patti, maliciosa). Robert Maplethorpe, o fotógrafo que radiografou os EUA gay e underground e dividiu um apê com a cantora foi lembrado com emocionantes leituras de “Just Kids”, livro que ainda será lançado e que aborda a história dos dois. E, provavelmente nem Deus imaginaria ver isso, Michael Jackson é saudado com uma versão reverencial de “Billie Jean”. Patti, a madrinha do punk, balança os quadris gostosamente.

Depois de uma arrepiante “Pissing On A River”(“Everything I’ve done, I’ve done for you/ Oh I give my life for you/ Every move I made I move to you/And I came like a magnet for you now”, de chorar, porra), ela diz: “Olhem para a lua. É ela quem diz: teremos um mágico 2010”. O frio pouquíssimo convidativo fora do Ballroom deixava pouca vontade de encontrar a lua. Mas da previsão de Patricia Lee Smith, 64 anos completados naquela noite dia 30 de dezembro com direito a parabéns de todo mundo depois da meia noite, ninguém duvida. Graciosa, sábia e generosa- é assim que a música a alma de Smith se apresentam hoje em dia. Que venha esse mágico ano então.

– Thiago Pereira é jornalista e faz parte do trio que comanda o programa Alto Falante

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Leia também:
– “Bill Graham apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock”, por Marcelo Costa (aqui)
– Patti Smith é o símbolo de um tempo que não existe mais, por Marcelo Costa (aqui)

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