Cinema: Quem Quer Ser Um Milionário?

Por Marcelo Costa

Um policial mal encarado dá uma longa baforada na cara de Jamal Malik. O rapaz havia participado na noite anterior do game show televiso “Quem Quer Ser Um Milionário?” (equivalente ao Show do Milhão apresentado por Silvio Santos), e saiu da TV direto para uma delegacia acusado de ter trapaceado nas respostas. Jamal havia chegado até a penúltima pergunta, cujo prêmio somava 10 milhões de rúpias (cerca de R$ 1,9 milhões), e ainda tem – se conseguir provar que é inocente – a pergunta final no valor de 20 milhões de rúpias.

O que intriga a polícia e o apresentador de “Quem Quer Ser Um Milionário?” é o fato de que professores, médicos, advogados e outros concorrentes nunca passaram das 16 mil rúpias, e Malik, um jovem que nasceu e viveu boa parte de sua vida em uma favela (e que atualmente ganha a vida servindo chá em um companhia de callcenter) não só os ultrapassou com larga vantagem como também está perto de alcançar o prêmio máximo do programa. São quatro alternativas em questão: A) Ele trapaceou; B) Ele tem sorte; C) Ele é um gênio; D) Está escrito.

Desde que começou a bater asas ao estrelado, “Quem Quer Ser Um Milionário?” faturou sete Baftas (o Oscar inglês), quatro Globos de Ouro e recebeu dez indicações ao Oscar. Vem causando comoção por onde passa, atraindo duras críticas e fervorosos elogios – quase sempre na mesma proporção. É uma produção EUA/Inglaterra, com um diretor inglês, mas filmada na Índia, com atores e roteiro indiano e, grande detalhe para o cinema brasileiro: vem sendo constantemente comparado a “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. “Quem Quer Ser Um Milionário?” é tudo isso que dizem?

O diretor Danny Boyle começou a carreira muito bem quinze anos atrás. Ele pegou as melhores idéias que Tarantino havia apresentado ao mundo em “Cães de Aluguel” e “Pulp Fiction” e as transformou em duas pequenas obras-primas do cinema indie britânico da década de 90: “Cova Rasa” e “Trainspotting”. Depois, derrapou com uma produção mediana (“Por Uma Vida Menos Ordinária”, “A Praia”, “Extermínio”) até despencar ladeira abaixo com “Caiu do Céu” e “Sunshine”. Em “Quem Quer Ser Um Milionário?”, porém, o Danny Boyle inteligente do começo de carreira está de volta.

Apesar do diretor britânico, irritado, dizer à reportagem da Folha de São Paulo que detesta “Cidade de Deus” (em outras reportagens, porém, o próprio se derrama em elogios ao filme de Meirelles), fica parecendo que, assim como fez com Tarantino no início de carreira, Boyle apropria-se de uma nova linguagem e dá um passo à frente criando algo instigante. Cores, edição, enquadramento e mesmo passagens aproximam “Slumdog Millionare” de “Cidade de Deus”, mas não dá para dizer que Danny Boyle (e o diretor de fotografia Anthony Dod Mantle, amigo de César Charlone, fotógrafo de “Cidade de Deus”) copiam o brasileiro. È mais uma apropriação que cria algo novo.

Tudo bem que o novo em “Quem Quer Ser Um Milionário?” não seja assim tão novo para os brasileiros: a miséria de Mumbai, cuja metade dos 17 milhões de habitantes de vive nas ruas ou em favelas sem saneamento básico, não é nenhuma novidade para quem habita debaixo da linha do Equador, mas Danny Boyle utiliza-se de tudo que cerca esse ambiente para criar um excelente conto de fadas moderno juntando elementos de humor, fantasia, emoção e até violência que, em perfeita sintonia, apresentam uma história que prende o espectador até o último segundo da trama.

Interessante observar que o dinheiro volta a ser tema forte de um filme de Boyle. Em “Cova Rasa”, o dinheiro corrompe a amizade. Em “Trainspotting”, acontece quase o mesmo, se der para dizer que drogados têm amigos de verdade. Em “Caiu do Céu”, no entanto, Boyle situa a trama naquela fase da vida em que a pessoa não sabe realmente o valor das coisas, cuja inocência é a marca da personalidade, defendendo que para uma criança, ainda não influenciada pelos males do mundo, dinheiro é apenas papel. Em “Slumdog Millionare”, dinheiro – mesmo uma fortuna – fica em segundo plano: o que importa de verdade é o amor.

“Quem Quer Ser Um Milionário?” e “O Curioso Caso de Benjamin Button”, os dois grandes favoritos ao Oscar de Melhor Filme deste ano, mostram dois modos diferentes de fazer cinema, embora ambos tenham residência nos contos de fada. “Benjamin Button” tem um argumento genial (escrito por F. Scott Fitzgerald em 1921) que foi adaptado com um roupagem conformista (que atinge, principalmente, roteiro e fotografia). “Millionare”, ao contrário, tem um argumento batido (inspirado em um romance indiano) que foi adaptado com uma roupagem criativa que abusa das cores, da câmera frenética e de um roteiro extremamente ágil.

Os dois filmes, ainda, guardam semelhanças no modo em que derivam de outras películas. Enquanto “Button” repete cenas e opções de roteiro, mas pouca acrescenta ao filme que o originou, “Forrest Gump”, soando inferior, “Millionare” está em pé de igualdade com “Cidade de Deus”. Apesar de focar na genealogia do crime organizado, o brasileiro também tem seu q de conta de fadas (Buscapé sai da favela para virar fotógrafo de um grande jornal), porém “Slumdog Millionare” eleva isso ao mundo da fantasia com melhor qualidade final de cinematografia e muita personalidade de direção. Danny Boyle pariu o segundo filme definitivo de sua carreira. Se vai ser premiado por isso, não importa. Já basta ter feito grande arte.

Arte: Folha de São Paulo (aqui)

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

Leia também:
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9 thoughts on “Cinema: Quem Quer Ser Um Milionário?

  1. Você pode enxergar comparações em qualquer filme, seja em “Romeu e Julieta”, seja num filme de terror. Se for assim, nenhum filme pode colocar uma carruagem, uma biga, que vão chamar de “Ben-Hur”.

  2. Pedro, a referência é estética e as comparações são óbvias. O interessante é que a comparação não diminui o filme ( e o texto explicita isso), pois Boyle acrescentou muito de sua personalidade cinematográfica ali. Agora,. já existiram diversos filmes que colocaram carruagens e brigas em cena e não foram acusados de copiar “Ben-Hur”. Esse, no entanto, copia – elogiosamente – a estética de “Cidade de Deus”. Se não quiser enxergar, ok, mas é real.

  3. Esse “Caminhos das Índias” vai ser esquecido em breve. É ridículo tudo isso que criaram em torno de um filme medíocre como esse. Eastwood e Aronofsky não foram indicados na categoria principal, então que o Oscar fosse pra “Milk” que é o melhor dos cinco. E olha que isso não quer dizer nada.

  4. Achei o filme sensacional, muito bom mesmo.. ainda mais porque fala sobre o amor ^^
    tem as perseguições, um pouco de violência, temas pesados, mas no fundo é uma linda história de amor =D

    na cena em que ele avista Latika no metrô e ela sorri pra ele, eu quase chorei de emoção *-*

  5. Não acho que com “Caiu do Céu” ele tenha descido ladeira abaixo, é um filme bom, não o melhor de Boyle, só um pouco diferente do que ele vinha fazendo, enfim.
    De todos os filmes dele, só não assisti Sunshine e Slumdog ainda, mas o meu preferido com certeza é Cova Rasa, há quase 15 anos que assisto e sempre gosto mais.
    O Oscar, Danny mereceu!

  6. Eu gostei de Slumdog e prefiro ele ao Benjamin Button, mas cada vez que assisto aos filmes que concorreram ao Oscar mais sinto falta de O Lutador.
    Vou tomar porrada, mas acho Transpoting superestimado. Gosto do filme, mas sei lá… E acho Exterminio bonzaço (sem falar que influenciou todos os filmes de terror/zumbi que vieram depois, sem entrar no mérito da qualidade deles, hehe) e gosto bastante de Sunshine também.
    Não assisti Milk ainda, mas dos filmes que estavam concorrendo ao Oscar, por enquanto o Slumdog é o que acho melhor.

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