Cinema: “A Vida dos Outros” é uma poesia sobre o início da verdadeira revolução: ela começa em nós mesmos

por Marcelo Costa

Georg Dreyman (Sebastian Koch) é considerado o maior dramaturgo da Alemanha Oriental, tido por muitos como modelo perfeito de cidadão para o país, já que não contesta o governo nem seu regime político. Aparte importante: a história se passa no começo da década de 80, quando um muro (ainda) separava as duas Alemanhas, e a RDA (República Democrática da Alemã), por meio de sua polícia política, a Stasi, vasculhava a vida de seus moradores procurando desertores e pessoas contrárias ao regime, que sumiam na noite para nunca mais voltarem ou eram completamente colocadas à margem na sociedade.

Dreyman não planeja nada contra o governo da RDA, mas o ministro da cultura, Bruno Hempf, tem lá suas dúvidas, e pede a Stasi um pacote completo de escuta telefônica na casa do teatrólogo, motivado primeiramente por desconfiança, e posteriormente por interesses pessoais (sexuais). Anton Grubitz (Ulrich Tukur), um chefão da Stasi, encarrega o amigo Gerd Wiesler (Ulrich Mühe), seu subordinado, para o serviço. Wiesler é um dedicado funcionário do governo que leciona para futuros profissionais da polícia enquanto se gaba de conhecer as artes da tortura emocional em sessões de interrogatório.

Temos, então, quase todas as principais peças no tabuleiro para movimentarmos o roteiro impecável de “A Vida dos Outros” (escrito e dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck). A única peça que falta é Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), atriz e namorada do dramaturgo. Christa exala encanto e todas as outras peças, em momentos diferentes do filme, circulam ao seu redor, revelando – talvez – a única fragilidade ideológica da obra: as mulheres (com base neste personagem feminino) são mais vulneráveis, inseguras e maleáveis do que os homens, o que não deixa de ser uma meia verdade (machista, mas meia verdade), e permite indagações que, se não chegam a manchar o brilho poético da obra, abrem uma fresta que pode revelar uma premissa insustentável.

Porém, “A Vida dos Outros” exala muito mais luz e emoção por outras frestas desta casa vigiada 24 horas por dia por agentes da RDA. O capitão Wiesler dedica-se nas análises das escutas e, quando percebe, está completamente envolvido pela vida de Dreyman e Christa. Por outro lado, o ministro pressiona seus subordinados para que eles encontrem algo que possa incriminar o dramaturgo. Há, no personagem do capitão Wiesler, um senso de dever ao governo que se confronta com seu próprio senso de justiça, o mesmo que faz com que ele – friamente – arranque confissões em interrogatórios. É na visão delicada deste embate entre dever e justiça que “A Vida dos Outros” se transforma em poesia cinematográfica.

Seu ápice climático acontece, não à toa, no ano de 1984, e cria um paralelo com a famosa obra de George Orwell – que também discute vigilância estatal e o retorno a um regime parecido com o estalinismo. As citações são várias. Em uma delas, um escritor – simpatizante dos dissidentes – recebe uma máquina de escrever que contém as letras do alfabeto romano para que ele possa redigir um texto para ser publicado do outro lado do muro, pois na RDA era expressamente proibido o uso de uma máquina dessas, e quem as usasse seria tratado como traídor do regime político. Em “1984”, o livro, o estado controlava o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua.

O aprofundamento teórico, no entanto, é apenas um verniz que faz brilhar ainda mais uma história tocante, que é contada sem atropelo, exageros ou maniqueísmos. Por mais que a política esteja no pano de fundo de sua história, o filme se impõe como um tratado cuidadoso sobre a natureza do ser-humano e das próprias relações humanas. Em certo momento, o ministro diz ao dramaturgo, em tom de (falso) elogio: “Você acredita que as pessoas mudam… isso é bonito em peças de teatro… mas elas não mudam”. Von Donnersmarck, o diretor, discute essa certeza de seu personagem com muito lirismo.

Com um orçamento ridículo para os padrões hollywoodianos (US$ 2 milhões), “A Vida dos Outros” se vale de um roteiro impecável, atuações convincentes e uma direção tão delicada que nem se faz perceber durante os 137 minutos empolgantes da fita. Além de levar o Oscar de Filme Estrangeiro, o filme conquistou o Independent Spirit Awards e o Globo de Ouro na mesma categoria, levou três estatuetas no European Film Awards (Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Roteiro) e é o recordista de indicações (11 no total) na história da premiação anual da Alemanha.

Muita gente não leva o Oscar a sério, e com certa razão, já que a premiação comete erros históricos e omissões imperdoáveis. Porém, é importante lembrar que nem só de escorregadas vive a Academia de cinema mais famosa do mundo. E no quesito acertos, “A Vida dos Outros”, vencedor na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira do Oscar 2007, é um belíssimo exemplo para ilustrar o caso.

Mais: se houvesse justiça cinematográfica no mundo, “A Vida dos Outros” poderia ser apontado o Melhor Filme de 2006 numa final entre língua inglesa e não inglesa (algo como o Campeonato Interclubes de futebol – hehe). Não que Scorsese não merecesse um Oscar pela carreira (ele merecia, ele merece), mas enquanto “Os Infiltrados” é uma poderosa crônica sobre o submundo (e perda de valores), “A Vida dos Outros” é uma poesia sobre o início da verdadeira revolução: ela começa em nós mesmos. Ambos são filmes impecáveis e sensacionais, mas politicamente, perdoe a pieguice, fico com o segundo.

Ps. Ulrich Müher, falecido neste ano, merecia uma indicação como Melhor Ator, no mínimo.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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