Paul Auster e “Achei Que Meu Pai Fosse Deus”

por Marcelo Costa

Quando o Scream & Yell começou a ser editado na Web, em 2000, havia uma seção chamada “Poemas e Contos”, cuja proposta era trazer obras de gente nova com algo a dizer. A seção continua no ar, mas deixou de ser atualizada porque buscamos dar um direcionamento mais jornalístico ao site, focando em textos sobre cultura pop. E principalmente porque todo mundo se acredita poeta e escritor… com razão: somos todos contadores de histórias.

“Achei Que Meu Pai Fosse Deus”, coletânea de contos da vida norte-americana compilada pelo escritor Paul Auster confirma essa visão, e vai além ao exibir 121 textos extraordinários de gente comum, que emocionam por seu lirismo, beleza e simplicidade. Auster, autor de dezenas de livros sensacionais (e ao menos um clássico: “A Invenção da Solidão”), retira o foco de luz de si mesmo e o joga sobre pequenas histórias recheadas de magia, mistério e pequenos milagres. “Achei Que Meu Pai Fosse Deus” é um livro imperdível.

Todos os contos são frutos de um programa que o escritor apresentava na rede National Public Radio (NPR), com 680 retransmissoras espalhadas pelos Estados Unidos. Primeiramente foi oferecido ao escritor um programa mensal em que ele apresentaria um texto próprio. Auster não gostou da ideia, mas sua mulher, a também escritora Siri Hustvedt, sugeriu que ele pedisse para que os ouvintes lhes mandassem as histórias. Auster foi ao rádio e explicou aos ouvintes o projeto estabelecendo três pré-requisitos para os textos: que eles fossem verdadeiros, curtos e que desafiassem nossas expectativas em relação ao mundo.

A ideia do escritor era de que o ouvinte não se devia se preocupar em nunca ter escrito uma história. “Todo mundo conhece boas histórias e, se um bom número de pessoas aceitasse o convite para participar, começaríamos inevitavelmente a aprender coisas surpreendentes sobre nós mesmos e os outros. O espírito do projeto era inteiramente democrático. Todos os ouvintes estavam convidados a colaborar e prometi que leria todas as histórias que chegassem”, conta o organizador no prefácio do livro.

Um ano depois, o projeto começou em dezembro de 1999, Auster tinha mais de 4 mil histórias nas mãos. “A maioria era suficientemente emocionante para prender a minha atenção até a última palavra”, diz o escritor. “Todos nós temos vida interior. Todos nós sentimos que fazemos parte do mundo e, contudo, nos sentimos exilados dele. Todos nós ardemos no fogo da nossa existência. As palavras são necessárias para expressar o que está dentro de nós”, acredita.

Dos 4 mil textos, 121 enriquecem a edição nacional, divididos em 10 seções: animais, objetos, famílias, situações cômicas, estranhos, guerra, amor, morte, sonhos e meditações. A idade dos autores varia dos 20 aos 90 anos. Já a edição norte-americana compila 179 histórias, pois 58 contos foram cortados pelo tradutor da edição brasileira, que os considerou ‘muito americanos’ para o leitor local, o que surge como único defeito da empreitada, já que a grande maioria das histórias é totalmente americana, mas permite o paralelo universal, assim como serve para justificar a crença de Auster nas “forças misteriosas que atuam em nossas vidas, em nossas histórias de família, em nossas mentes e corpos, em nossas almas”.

Um bom exemplo é a impressionante (e tocante, e bela) história de Rascal, um cachorrinho branco de manchas pretas que, sozinho e inocentemente, conseguiu eliminar a poderosa e temível Ku Klux Klan da cidade de Broken Bow, no estado de Nebraska. Não é só a candura de ver uma instituição racista cair pelo abanar de rabo de um dócil cachorrinho, mas também a prova inevitável que o mundo é feito de pequenos milagres, e de que eles vivem acontecendo ao nosso redor. O último conto do livro, “Uma Tristeza Mediana”, escrito por Ameni Rozsa, também está na categoria dos notáveis e traz a autora falando de seus fins de relacionamentos, de sua paixão pelo rádio, e dos novos apartamentos que aluga após um desastre amoroso:

“E agora, agora que esqueci, as coisas se preparam para dissolver de novo. Um outro amor irá embora; vou pegar um apartamento sozinha”, diz ela. “Trêmula, nervosa, ligo o rádio, pela primeira vez em meses. Paul Auster está lendo uma história sobre uma garota que perdeu o pai e que arrastou uma árvore de Natal pelas ruas de uma meia-noite no Brooklin. Ele pede que enviemos histórias. Há condições de que sejam curtas e verdadeiras. Mas eu não tenho mortes, viagens dignas de serem relatadas. Não tenho golpes de sorte súbita ou tragédias incríveis. Tenho apenas uma tristeza mediana”, e finaliza: “O rádio está me convidando a voltar. Reconheci o convite quando escrevi estas linhas. Esta é minha história, que se completa com o clímax que é agora. Às vezes, é boa fortuna ser abandonado. Enquanto estamos procurando por nossas perdas, o nosso eu talvez se insinue de volta, para dentro de nós”.

Entre os destaques ainda dá para incluir a comovente história “Sem-teto em Prescott”, Arizona, que traz o relato de B.C., que aos 57 anos decidiu pedir demissão de seu emprego de secretária de um advogado, depositar todo o dinheiro da rescisão na poupança e viver dos juros, como uma sem-teto (“Sou anônima. Não estou inscrita em nenhum programa do governo”, diz ela); o delicioso relato “Martini com um Toque”, em que Dave Ryan poetisa sobre o prazer da bebida (“O Martini é Mahler, a cerveja é Bartok”, define a certa altura); e o conto que dá título ao livro, em que um menino achava que o pai fosse Deus, pois sua mera presença causou a morte do vizinho malvado (“O vizinho parou de gritar, olhou para meu pai, ficou vermelho, depois púrpura, pôs as mãos no peito, ficou cinza, dobrou-se e caiu lentamente no chão”, conta). E muitos outros.

“Achei Que Meu Pai Fosse Deus” é um dos mais belos livros já escritos e sua força reside em lidar com a emoção bruta de pessoas com histórias para contar, e que só estavam esperando uma pequena chance de dividir com o mundo seus pequenos milagres, suas grandes coincidências, o charme de um mundo que insiste em nos surpreender com pequenas demonstrações de imprevisibilidade, coincidências e acasos. Ao dar voz aos comuns, Auster engrandece a literatura mundial com um livro essencial para se entender que “nunca fomos perfeitos, mas somos reais”. Todos nós.

Trechos do livro “Achei Que Meu Pai Fosse Deus”, coletânea organizada por Paul Auster

Rascal, de Yale Huffman, Denver, Colorado

O ressurgimento da Ku Klux Klan na década de 1920 foi um fenômeno que ninguém explicou completamente. De repente, as cidades do Meio-Oeste se viram nas garras dessa ordem secreta cujo objetivo era eliminar os negros e os judeus de nossa sociedade. Em cidades como Broken Bow, no Nebraska, que tinha apenas duas famílias de negros e uma de judeus, o alvo eram os católicos. Os membros da Klan espalhavam que o papa estava preparando a tomada da América, que os porões das igrejas eram arsenais e que padres e freiras faziam orgias depois da missa. Já que a Primeira Guerra Mundial acabara e que os hunos haviam sido derrotados, havia um novo foco para os homens que precisavam odiar alguém. O espantoso era a quantidade dessa gente.

Em Broken Bow e Custer County, dezenas deles foram atraídos pela mística da sociedade secreta masculina que apelava para o anseio do “Nós contra Eles”, que parece ser universal entre os homens. Duas das pessoas que se opuseram a isso foram os banqueiros locais: John Richardson e meu pai, Y. B. Huffman. Quando um telefonema da Klan avisou que deveriam boicotar os católicos, eles desafiaram a ordem. Uma vez que ambos os bancos locais resistiram, a tentativa da Klan foi frustrada, mas minha mãe, Martha, pagou por isso na eleição do conselho da escola: foi derrotada pelo boato difamador de que estava tendo um caso com o farmacêutico.

Chegou a época do desfile anual da Ku Klux Klan em torno da praça principal. Eles sempre escolhiam um sábado de verão, quando a cidade estava cheia de fazendeiros e pecuaristas. Vestidos com túnicas brancas, chapéus cônicos e máscaras com buracos para os olhos, eles desfilavam para lembrar os cidadãos de sua dignidade e poder, liderados pela possante, mas anônima, figura do Grande Kleage. A calçada ficava cheia de gente que especulava sobre a identidade dos desfilantes e cochichava sobre seus poderes misteriosos.

Então veio saltitando de uma viela um pequeno cão branco com manchas pretas. Ora, assim como conhecia todo mundo na cidade, o pessoal de Broken Bow também conhecia os cachorros, pelo menos os mais proeminentes. Nosso pastor alemão Hidda e o retriever de Art Melville eram personagens famosos.
O cão manchado correu alegremente para o Grande Kleage e saltou nas suas pernas, clamando por uma festinha na cabeça daquela mão amada. “É o Rascal”, começou o rumor, “aquele é o Rascal, o cachorro de Doc Jensen”. Enquanto isso, o majestoso Grande Kleage tentava afastar com as pernas, enredadas na túnica longa, aquele que era obviamente seu cão: “Pra casa, Rascal, pra casa!”.

O rumor avançou mais rápido pela calçado do que a procissão. As pessoas não cochichavam, elas falavam alto para deixar claro que sabiam. Cotovelos cutucavam os vizinhos, um riso abafado corria pela calçada como folhas que farfalham com uma rajada de vento. Então, o filho de Doc Jensen apareceu e chamou o cachorro: “Aqui, Rascal! Aqui, Rascal”.

Isso rompeu a tensão. Alguém rompeu o chamado. “Aqui, Rascal!”. Foi quando o riso reprimido se transformou em gargalhada e uma grande ventania de riso varreu a praça. Doc Jensen parou de chutar seu cão e retomou sua marcha solene, mas os espectadores não deram bola: “Aqui, Rascal! Aqui, Rascal!”.

Esse foi o fim da Ku Kulx Klan em Broken Bow. Doc Jensen era um veterinário passável de animais grandes, e manteve sua clientela de fazendeiros. Talvez gostassem de chama-lo para depois ter o que conversar com os vizinhos, mas poucos o provocavam. De vez em quando um garoto espertinho via Doc Jensen passar e gritava “Aqui, Rascal”. E, desde então, o cachorrinho branco de manchas pretas ficou preso em casa.

Um Natal em família, de Don Graves, Anchorage, Alasca

Meu pai contou-me esta história. Ela aconteceu no começo dos anos 20, em Seattle, antes de meu nascimento. Ele era o mais velho de seis irmãos e uma irmã, alguns dos quais haviam saído de casa.

As finanças da família estavam péssimas. O negócio de meu pai fora à falência, quase não havia empregos e o país estava perto de uma depressão. Naquele ano, tínhamos uma árvore de Natal, mas nada de presentes. Simplesmente não podíamos comprá-los. Na véspera do Natal, fomos dormir deprimidos.

Entretanto, quando acordamos na manhã do Natal, havia um monte inacreditável de presentes sob a árvore. Tentamos nos controlar no café-da-manhã, mas foi a refeição mais rápida de nossas vidas.

Então a diversão começou. Minha mãe foi a primeira. Ficamos em volta dela, na expectativa, e quando ela abriu seu pacote vimos que ganhara um velho xale que ela havia ‘posto em lugar errado’ vários meses antes. Meu pai ganhou um machado velho com o cabo quebrado. Minha irmã ganhou seus velhos chinelos. Um dos meninos ganhou uma calça remendada e amassada. Eu ganhei um chapéu, o mesmo que achava que havia deixado num restaurante, um mês antes.

Cada coisa velha trouxe uma nova surpresa. Não demorou para que todos estivéssemos rindo tanto que mal conseguíamos abrir os pacotes. Mas de onde viera toda aquela generosidade? De meu irmão Morris. Durante meses, ele escondera coisas velhas, das quais sabia que não daríamos falta. Então, na véspera do Natal, depois que todos foram para a cama, ele embrulhara em silêncio os presentes e os pusera sob a árvore.

Foi um dos melhores Natais que tivemos.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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– Em “Invisível”, Paul Auster trata de temas polêmicos e reviravoltas inesperadas (aqui)
– Em “Sunset Park”, Paul Auster cutuca o governo com poucas, mas ótimas frases (aqui)
– “Viagens no Scriptorium”, uma celebração auto-indulgente de Paul Auster (aqui)
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