A magia e o mistério de Paul McCartney em show secreto em Brasília

texto especial por Alexandre Malvestio
imagens @paulmccartney

Descrever a experiência de ir a um show do Paul McCartney, qualquer show, é manter-se constantemente em alerta para não parecer sentimental demais nem ficar recorrendo a clichês tolos. Imagine então se estivermos falando de um show surpresa, realizado às seis da tarde de uma terça-feira, para cerca de 400 pessoas, em um clube de choro de Brasília.

A informação de que Paul faria essa apresentação surpresa foi publicada por um portal de notícias da cidade com apenas 24 horas de antecedência, na segunda-feira (27) à noite. A nota mencionava a movimentação de carretas e equipamentos do músico no local, mas sequer confirmava quando aconteceria o show. A coisa toda parecia tão inverossímil que o próprio texto fazia questão de alertar que se tratava de algo confirmado, que o show realmente aconteceria, que o leitor não leu errado —mas não dizia quando seria. Pouco mais de 12 horas depois da publicação da notícia, às nove da manhã de terça-feira (28), o próprio músico confirmou em suas redes sociais que o show seria naquele mesmo dia e que os ingressos eram limitadíssimos. Aos poucos, informações foram sendo conhecidas.

Alguns e-mails cadastrados que compraram convites para a apresentação principal do beatle na cidade, nesta quinta-feira (30), no Estádio Mané Garrincha, receberam uma mensagem com um link para comprar uma entrada para o show surpresa por R$ 200. Também houve alguns convidados, cujos critérios para escolha não ficaram claros, além de estudantes de música da escola do próprio Clube do Choro, que foram selecionados para assistir à apresentação. A verdade é que em poucos minutos a informação oficial era de que não havia mais ingressos disponíveis. Em qualquer grande cidade do Brasil e do mundo, essa notícia sobre a falta de convites disponíveis provavelmente não seria suficiente para afastar uma multidão de curiosos e beatlemaníacos. Mas Brasília tem lá suas peculiaridades.

Localizado no canteiro central do Eixo Monumental, correspondente ao que pode ser considerada a ‘cabine’ do avião do Plano Piloto de Brasília, o Clube do Choro é uma construção projetada por Oscar Niemeyer. O local é considerado um dos patrimônios da cidade e é um dos endereços mais tradicionais da cultura popular da capital federal. A pouco mais de duas horas do horário marcado para o início da apresentação, Paul McCartney chegou ao local de carro, acompanhado do inglês Barrie Marshall, produtor de sua turnê, e acenou para alguns fãs que já estavam ali.

As instruções para a retirada dos ingressos, enviadas por e-mail, diziam que os convidados e sorteados deveriam retirar uma pulseira que daria acesso à área do show. O horário limite para a retirada, que acontecia no prédio do Planetário de Brasília, em frente ao Clube do Choro, era 15h30.

Enquanto isso, logo após a hora do almoço começavam a chegar alguns poucos fãs sem convites na esperança de encontrarem entradas à venda ou mesmo cambistas. Não havia nem uma coisa nem outra. Então foi sendo formada uma pequena fila no Planetário, mas a organização não dava nenhum tipo de esperança. Muito pelo contrário. Deixava claro que todos os ingressos tinham sido vendidos ou endereçados e que não haveria novos lotes. Mas o pequeno grupo não só permanecia ali como pouco a pouco ia crescendo. E a esse grupo eu me somei.

Por volta de 16h45, eram cerca de 50 ‘esperançosos’ na fila. Foi quando começou a circular a informação não-oficial, dada por um funcionário da produtora local do show, de que mais de 100 pessoas não tinham aparecido para retirar suas pulseiras. Depois disso, um grupo da organização passou contando o número de pessoas na fila. Foi o suficiente para se criar uma comoção imensa e começar a circular o rumor de que aquelas pulseiras adjacentes seriam liberadas novamente para venda.

Depois de um tempo, um outro funcionário da produção local voltou para dizer que não seriam liberadas mais entradas. O entorno do Clube do Choro continuava incrivelmente calmo e silencioso, considerando que dali a uma hora um beatle tocaria ali em um show que já estava sendo divulgado na imprensa de todo o país há pelo menos dez horas.

A fila de gente sem convite querendo participar do show a essa altura não reunia mais que 70 pessoas. Qual seria a situação se estivéssemos em São Paulo? Ou em Londres, Paris, Buenos Aires? Mas Brasília tem suas peculiaridades… A fila então se desfez. Um grupo foi em direção à entrada do Clube do Choro, outro foi tirar foto com Samuel Rosa, ex-vocalista do Skank, que acabara de chegar para assistir à apresentação. Outras pessoas simplesmente desistiram e foram embora. Eu tinha ao menos a expectativa de ouvir do lado de fora o som que vazasse do show.

Mas então o responsável pela empresa da organização local saiu do Clube do Choro acompanhando de um grupo de estrangeiros, provavelmente da produção do artista, em direção ao Planetário. Foi o suficiente para fazer com que as pessoas que ainda estavam pelos arredores corressem todas em disparada e refizessem a fila —agora em ordem totalmente adversa. Novas contagens, novos minutos de espera. Uma nova informação oficial: a produção do Paul McCartney estava sensibilizada com quem estava ali e realmente queria liberar a entrada, só estavam verificando a quantidade de pessoas e a disponibilidade de pulseiras.

No final das contas, todos da fila conseguiram convites. Fomos encaminhados para uma nova fila, já no Clube do Choro, onde seria realizado o pagamento dos R$ 200. Eram muitas pessoas para realizar o pagamento e a hora do show se aproximava, então alguém da organização achou melhor desistir de continuar a cobrança. Pediram que os celulares fossem desligados, distribuíram sacos plásticos onde os aparelhos deveriam ser colocados e lacrados. Entramos. Com isso, eu e um número grande de pessoas não pagamos nada.

Faltavam poucos minutos para as seis da tarde quando alguns recados de Barrie Marshall, agora no palco, eram traduzidos para o público. Aqueles que tiveram que tirar os celulares dos sacos plásticos para comprar bebidas deveriam guardar novamente. “Paul gostaria que hoje a gente simplesmente aproveitasse o show”, ele explicou. E logo as luzes se apagaram.

A apresentação estava marcada para começar às seis da tarde, mas por meros três minutos Paul McCartney nos tirou a piada da pontualidade britânica. Ele entrou pela esquerda do pequeno palco do Clube do Choro de Brasília de repente, sem ser anunciado e sem um de seus indefectíveis paletós bem cortados. O nível de pressão sonora do lugar foi imediatamente levado para limites provavelmente nunca experimentados antes.

Ele estava vestindo uma camiseta vermelha com ‘Liverpool’, nome de sua cidade-natal, estampado na frente. Uma camisa de botões azul clara aberta com as mangas dobradas, calça jeans e tênis. Nitidamente, ele está de folga, e queria se divertir. O músico poderia estar na sacada de seu hotel, na beira do Lago Paranoá, fotografando o voo de quero-queros sobre a água, mas decidiu ir tocar algumas músicas com seus amigos em uma tarde de terça-feira.

Por que Brasília e por que o Clube do Choro? Circulam notícias dizendo que o músico teria se encantado pela arquitetura da cidade, quando esteve aqui em 2014 pela primeira vez. Também que a produção de Paul McCartney procurou o Clube do Choro há uma semana, dizendo que tomaram conhecimento da escola que existe ali e que gostariam de fazer um show lá.

Bem, e já que Paul teria uma plateia para cantar e se divertir com ele, aos 81 anos ele pode se dar ao luxo de não querer quatro centenas de telas de celulares se interpondo entre eles, certo?

Tudo no show pareceu especialmente mágico e ao mesmo tempo de alguma maneira brilhantemente fora de lugar, uma vez que nada ali parecia de fato à altura de uma lenda.

Seria resultado da proibição dos aparelhos? Ou seria fruto da imprevisibilidade de assistir Paul McCartney tocar para 400 pessoas no centro de Brasília, com o trânsito da cidade seguindo seu fluxo normalmente, a poucos passos de tudo aquilo, com uma improvável sensação de que talvez tudo devesse parar e se curvar ao encanto de um beatle?

Mas talvez a magia toda fosse simplesmente pelo fato de aquela ser a experiência mais próxima de tanta gente ali se sentir por uma noite no Cavern Club, na presença de um beatle de verdade. Nesse sentido, a ausência de telas e celulares colaborou bastante e deu um gosto especial para a sensação de viagem no tempo.

A história toda dos convites, seja da venda por e-mail ou da fila da esperança, acabou ainda fazendo um aceno para uma curiosa tradição brasiliense, algo que pode ser descrito como um certo distanciamento intrínseco. Reza a lenda que o povo da capital federal não é dos mais simpáticos ou suscetíveis a novas amizades. O que posso dizer é que Paul McCartney me levou a fazer em uma única tarde mais amigos do que venho ganhando a cada ano de vida nesta cidade.

Explico: em sua imensa maioria, as pessoas nesse show não puderem ir acompanhadas, tanto as que conseguiram comprar pelo link quanto aquelas que conseguiram ingressos ficando na fila. Com isso, foram obrigadas a entrarem sozinhas e permanecerem assim por horas e, portanto, tiveram que falar com as pessoas ao seu redor, caso não quisessem ficar em silêncio absoluto durante esses longos momentos de espera. Foram obrigadas a interagir. Bem, o resultado disso foi que eu nunca vi tanto brasiliense se comunicando, se conhecendo.

Foi assim que depois de mais de 60 anos de carreira, tendo já recebido inúmeros prêmios e sido nomeado “sir” pela rainha Elizabeth II, Paul McCartney foi também capaz de fazer os brasilienses se falarem.

Até finalmente soar o primeiro acorde de ‘A Hard Day’s Night’, continuava difícil de acreditar que haveria um show de Paul McCartney no Clube do Choro. As expressões de quem entrava na casa, esvaziada de mesas e cadeiras, eram todas de surpresa, até mesmo daqueles que não estavam entrando ali pela primeira vez. O painel colorido do artista mineiro Nemm Soares na parede, o palco baixo, muito próximo do público, o letreiro com o símbolo da casa no fundo do palco. Tudo estava devidamente no seu mesmo lugar, aparentemente sem qualquer adaptação, à espera do cavaleiro da coroa britânica.

O show durou uma hora e meia e contou com 24 músicas. Para um país acostumado a ver Paul McCartney em grandes estádios, com dezenas de milhares de pessoas ao redor, a dezenas de metros de distância, foi estranho pensar que o artista era capaz de interagir com qualquer pessoa ali dentro, por conta do tamanho reduzido do lugar —e assim ele fazia. O músico respondia diretamente aos gritos de ‘eu te amo’, para ficar em um único exemplo. Em uma das vezes, fez isso gesticulando e olhando nos olhos da pessoa, que sequer estava grudada no palco: ‘eu nem te conheço, mas eu também te amo’, respondeu para alguém no meio da plateia.

Também pareceu querer entender por que um grupo insistia em gritar ‘Samuel, Samuel’ a cada intervalo entre as canções. Referiam-se a Samuel Rosa, presente ali. A ideia de um grupo na plateia parecia ser provocar algum tipo de interação entre Paul e o ex-Skank e alguém até tentou explicar para o beatle que se tratava de um cantor famoso por aqui. ‘Brasileiro?’, perguntou o beatle sobe o tal Samuel. João Barone, baterista dos Paralamas, e o rapper Criolo também estavam no ambiente. Mais nenhum outro rosto famoso ou político conhecido foi identificado.

Paul McCartney entrou no palco acompanhado de sua inseparável banda, que o acompanha há mais de 20 anos: Rusty Anderson na guitarra, Brian Ray se revezando entre baixo e guitarra, Wix Wickens nos teclados e Abe Laboriel Jr., provavelmente o cara mais feliz do planeta, na bateria. Na terceira música, ‘Letting Go’, dos Wings, os cinco ganharam o reforço de um trio de metais, que passou a entrar e sair do palco dependendo da música.

Na hora de apresentar a quinta canção, Paul diz, em português, que vai cantar uma música nova. A plateia reage excessivamente e ele parece imaginar que entendemos que seria ‘Now and Then’, a recém-lançada nova canção dos Beatles, jamais tocada ao vivo por ele. Paul então já trata de despistar, em tom de sacanagem e novamente em português, agora explicando um pouco melhor, dizendo que a música é apenas ‘um pouquinho nova’. Trata-se de ‘Come On to Me’, de 2018, mas ninguém ali parece minimamente frustrado.

Seguem as frases e brincadeiras e declarações de amor em português. O calor dentro do Clube do Choro é enorme, mas não se vê Paul tomar água uma única vez. Ele toca piano em um instrumento portátil coberto com uma bandeira do Brasil. Ninguém na banda economiza nos acenos e sorrisos para o público. Em “Blackbird”, onde há uma única luz em Paul, sozinho ao violão, as luzes do bar, a poucos metros do palco, concorrem com o canhão iluminando o músico.

Andando pelo salão, é possível cruzar com membros da equipe de Paul McCartney. Gente que há pouco estava correndo para resolver problemas com os convites ou cuidando de alguma questão no palco, antes de o show começar. Alguns deles param no bar e se esforçam para se fazerem entender por um funcionário e conseguirem comprar cerveja. Credenciais AAA no pescoço e copos de cerveja de plástico ruim na mão.

Na parte final do show, Paul McCartney começa ‘Let It Be’ no piano e depois de algumas estrofes decide que algo deu errado, interrompe e pede para a banda começar de novo. Afinal, estamos entre amigos e ninguém está gravando nada, certo? Na sequência veio ‘Hey Jude’ em clima de mãozinha para cima, com os tradicionais pedidos de cantos divididos entre meninos e meninas e depois com todo mundo cantando junto, conduzidos pelo próprio cantor. O tipo da coisa que pareceria ridícula em qualquer show de artista voltado para uma plateia com mais de 14 anos de idade, mas que vinda de Paul McCartney parece a coisa mais legal do planeta e faz com que qualquer um que não entre na brincadeira pareça uma pessoa sem graça e mal-humorada.

Paul McCartney se despede e sai do palco, mas volta poucos segundos depois para o bis. Emenda ‘Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise)’ e ‘Helter Skelter’ para então dizer que está chegando a hora de se despedir. Toca a já conhecida sequência de ‘Golden Slumbers’, ‘Carry That Weight’ e ‘The End’ para encerrar. Lê em silêncio alguns pedidos de abraços e autógrafos em papeis nas mãos de fãs na grade, mas não chega a atender. Une-se à banda para o cumprimento final. Nessa hora, pela primeira vez em 90 minutos, é possível ver três telas de celulares levantados na plateia registrando o momento. Paul parece notar.

Não tem como negar que a ausência de eletrônicos no ambiente tornou a experiência toda ainda mais peculiar, para dizer o mínimo. Não consigo pensar em muitos shows onde eu tenha estado cujo envolvimento do público tenha chegado a um nível desses, ainda que Paul McCartney nos leve à essa conexão de diversas formas, quando está em cima do palco.

Em sua autobiografia ‘Born to Run’, lançada em 2016, Bruce Springsteen diz que ninguém vai a shows de rock para aprender algo. ‘As pessoas vão para se lembrarem de algo que elas já sabem e sentem no fundo de suas almas’, diz. Paul McCartney segue fazendo sua mágica para que a gente não se esqueça do que sente, mesmo quando não consegue sequer explicar. E isso não é pouca coisa.

Paul vai embora deixando 400 pessoas sorrindo para trás. Da quinta-feira em diante ele estará à frente de cerca de 40 mil pessoas por noite tocando em estádios em Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro. A vida na capital federal retoma sua rotina – agora com novos amigos.

Obrigado, Paul. Por tudo e também por esse dia. Será inesquecível.

Alexandre Malvestio é jornalista e ilustrador.

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