Crítica: “Hackney Diamonds”, dos Stones, padece do mal do produtor hypado

texto de Marcelo Costa

Pra começo de conversa, toda vez que os Stones lançam um disco novo (importante lembrar que, com “Hackney Diamonds”, são apenas quatro álbuns de inéditas em 30 anos) surge aquela frase quase anedótica de que o referido é “o melhor disco dos Rolling Stones desde… a morte de Tutancâmon, em 1.324 a.C.”. Bobagem. Eles quase foram atropelados pelo furacão punk e pela disco music no final dos anos 1970, ainda que a segunda tenha lhes rendido um hit poderoso, “Miss You”, mas desde que a banda entrou na sua fase adulta, pós “limpeza” de Keith Richards, que no começo dos anos 1980 observou seu parceiro Mick Jagger fazendo umas bobagens no controle do legado até perder a paciência e quase sair no tapa com ele durante as gravações de “Dirty Work” (1986), um disco confuso de ruptura, que os Stones – agora com liderança dividida entre Mick e Keith – se concentram em fazer aquilo que sabem ao invés de entrar na onda das modinhas do momento (ok, houve uma rápida queda trip hop em “Bridges To Babylon” que quase ferrou a banda).

Assim, o primeiro disco de aceno de paz entre o redivivo Keith Richards e o megalomaníaco Mick Jagger depois do circo quase pegar fogo na metade dos anos 1980 seria “Steel Whells”, um disco sessentista para o começo dos anos noventa que serviu para colocar o grupo nos eixos. O brilhante “Voodoo Lounge” (1994), que veio na sequência, era muito mais amplo, grandioso e apaixonante, o que fez com que a banda subisse no salto alto e quase desmoronasse com “Bridges to Babylon” (1997), e diz muito o fato do hit do álbum ser um plágio de k.d. lang perpetrado por Mick que Keith só percebeu quando o disco já estava na fábrica, e acionou os advogados para evitar processos futuros admitindo a “parceria”. “A Bigger Bang” (2005), o subestimado primeiro disco dos caras no novo milênio, pecava por ser longo demais, mas era sacana, divertido, um back to basics com produção cuidadosa de Don Was, que deixou o som da cozinha gordo, rechonchudo, e das guitarras deliciosamente estridentes. Um discaço!

O equívoco com “Hackney Diamonds” começa, segundo algumas fontes, justamente quando Ron Wood reclama para Paul McCartney que o trabalho com Don Was – parceiro da banda desde “Voodoo Lounge” – no novo disco dos Stones está emperrado, não está funcionando, e de que eles precisam de “alguém para lhes dar um chute na bunda”. O ex-beatle recomenda testar Andrew Watt, um “jovem de 33 anos” que ganhou um Grammy de Produtor do Ano em 2021 após trabalhos com Ozzy Osbourne (“Ordinary Man”), Miley Cyrus (“Plastic Hearts”), Justin Bieber (“Justice”) e Eddie Vedder (“Earthling”), algo que o resenhista JR Moores, do The Quietus, sugere abertamente como sabotagem: Paul teria indicado um cara pros Stones visando ferrar a banda. Poderia soar plausível, mas é sempre importante lembrar que a última coisa que todo rockstar que se preze quer é alguém enchendo o saco no estúdio.

O último grande disco solo de Paul, “Chaos and Creation in the Backyard” (2005), foi produzido por Nigel Godrich, famoso por seus trabalhos com o Radiohead, e mesmo com os elogios ao álbum, Paul classificou as sessões como estafantes e não animou a trabalhar com ele novamente. O único disco absolutamente clássico do Foo Fighters, “The Colour and the Shape” (1997), foi produzido por Gil Norton (que tem outro disco clássico no currículo, “Doolittle”, do Pixies), que exigiu tanto da banda que Dave Grohl pegou um trauma do processo, e passou a autoproduzir os discos seguintes de seu grupo, mesmo caminho que Bob Dylan tomou após dois discos antológicos com Daniel Lanois: “Oh Mercy” (1989) e “Time Out of Mind” (1997). Ou seja, os caras até querem parir um grande disco, mas não estão necessariamente prontos para mergulhar num processo exigente e cansativo com alguém que exiga mais deles do que eles estão afim de dar.

Sob o comando da produção de “Hackney Diamonds”, Andrew Watt dispensou o grande baixista Darryl Jones (colaborador dos Stones desde 1993!) para assumir a função, o que por si só já é bizarro, e deixou o som da bateria seco, espaçoso, vazio e absolutamente sem graça, tudo aquilo que não era quando o falecido Charlie Watts (que deixou dois sons póstumos para o álbum, “Mess It Up” and “Live by the Sword”) era o responsável pelas baquetas – e que fez Bob Dylan, certa vez, classificar o hino “Honky Tonk Women” como a condução mais tesuda do rock. Para uma banda cujo sexo é um ingrediente essencial, falta tesão e desejo a “Hackney Diamonds”. É possível vislumbrar que as canções são boas, mas sua força ficou na mesa de mixagem em prol de um som mais na cara, mas confuso. Nenhuma faixa aqui arranha o status de arrasa quarteirão de, por exemplo, “Rain Fall Down”, de “A Bigger Bang”, com seu riff que “une INXS com Franz Ferdinand e que metade das novas bandas dariam a vida para ter escrito”. Veja bem: a comparação aqui não é com nenhum clássico inconteste dos Glimmer Twins, mas com uma música que os Stones tocaram 40 vezes na turnê de 2005/2006 – no Rio, inclusive.

“Angry”, single que abre o disco, uma colaboração de Jagger e Richards com Watt (sempre desconfie quando compositores de alto calibre recrutam serviços de hitmakers da modinha em momentos de insegurança criativa) – o produtor assina mais duas participações no álbum – é retrato da falta de tesão do disquinho. Os riffs de guitarra são fortes, a voz de Mick está no ponto, mas a bateria de Steve Jordan é fraquinha e não representa a letra que conta a história de um homem que está puto porque está sem sexo em casa há mais de mês e ainda tem que tomar comprimidos e, contrariado, ir ao Brasil lidar com Luciana Gimenez. É daquelas canções que deveriam pegar o ouvinte pelo pescoço e balançá-lo, mas a mix não colabora. “Get Close”, outra com Watt, tem um riffzão de Keith, um refrão óbvio e uma bateria confusa. O country “Depending on You” (terceira e última parceria com Watt: sim, as três dele abrem o disco – haja ego) é muito mais interessante pela letra confessional de Mick, que lamenta que seu par o tenha trocado por alguém mais novo, e crava, genial: “Eu inventei o jogo, mas perdi como um idiota / Agora sou jovem demais para morrer e velho demais para perder”. Palmas.

O rockinho “Bite My Head Off” traz o amigo (da onça?) Paul McCartney numa levada atipicamente sujona de baixo enquanto a boa “Whole Wide World” busca memorias do passado e o blues “Dreamy Skies” soa um rascunhozinho de uma verdadeira canção: assim como em outras, é possivelmente ver o potencial dela, mas a sensação é de uma demo tape gravada com o descaso típico de algo que não é um produto final. “Mess It Up” traz Charlie Watts para o rolê, e dá certa pista do que pode ter dado tão errado no álbum: Charlie tem uma condição clássica, limpa, direta, enquanto Jordan sempre faz umas viradinhas que embolam o som. Ainda assim, “Mess It Up” carece de força, como todo álbum, algo que também acomete a boa “Live by the Sword”, a outra com Watts na bateria, e, aqui, Elton John no piano (ele também toca em “Get Close”), Bill Wyman no baixo e produção adicional de Don Was (questão: será ela uma sobra retrabalhada de “Steel Wheels”?). “Driving Me Too Hard” é aquela balada não balada em que os riffs parecem flutuar, e aqui Jordan conduz de maneira mais limpa, a lá Charlie. É outra  que poderia crescer nas mãos certas.

O trecho final do álbum traz o momento Keith Richards cantando “Tell Me Straight”, mais uma nítida canção que parece ir de nenhum lugar para lugar nenhum – coloque-a antes de “Thru and Thru”, de “Voodoo Lounge”, numa audição que ficará bastante perceptível o tamanho do buraco. Um dos singles do álbum, o blues “Sweet Sounds of Heaven”, que traz Lady Gaga aos berros e Stevie Wonder no piano e nos teclados, e mais uma canção com potencial presa a uma mixagem que parece impedir que o som circule livremente: a sensação nela assim como em todo o álbum é de que as canções, tal qual um prisioneiro antigo numa penitenciaria, estão amarradas a uma grande bola de ferro que as impede de soar livre. “Rolling Stone Blues”, que se conecta diretamente ao último álbum de estúdio da banda, o ótimo “Blue & Lonesome”, feito só de covers, é mais uma canção que carece de emoção, e blues sem emoção é o fim do mundo, não dá.

Provável último disco da carreira dos Stones – Mick está com 80, Keith fará 80 em dezembro e Ron Wood está com 76), “Hackney Diamonds” exibe um monte de ideias boas que se perderam na mesa de produção. Woody Allen disse, certa vez, que ele ama quando tem a ideia, mas sabe que pouco dela estará no produto final, pois o processo de se fazer um filme (e, também, um disco) envolve tanta gente que muito daquele brilho inicial se perderá nas fases do projeto. “Hackney Diamonds” carece de brilho. É mais um daqueles discos em que um produtor badaladinho usa uma banda de sucesso a seu bel prazer para realizar desejos pessoais (aconteceu até com o Titãs em “Sacos Plásticos”). Não chega a soar inferior a “Bridges to Babylon”, mas está a quilômetros de “A Bigger Bang” e “Voodoo Lounge” – que dirá de “Tatoo You” (1981), “Exile on Main St.” (1972) e “Sticky Fingers” (1971). É só mais um disco para levá-los para a estrada, e esse, sim, é o grande mérito de “Hackney Diamonds”, o de ser um álbum para uma turnê. Daqui três meses, ninguém vai se lembrar desse disco.

Leia também: “Hackney Diamonds”, dos Stones, não é uma obra-prima, mas é respeitável, por Davi Caro

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

]

33 thoughts on “Crítica: “Hackney Diamonds”, dos Stones, padece do mal do produtor hypado

  1. Engraçado como as coisas são. Eu ouvi o disco e curti pra caramba. Recomendei a alguns amigos da velha guarda roqueira. Acho McCartney III um disco bem foda. E o velho Dylan fez um disco absurdo de bom há poucos anos (dois, três ?) . Então…sei lá…

    1. Bom texto. Mas não concordo com nenhuma vírgula . Músicas como Live by the Sword, Depending on you e Bite meu Head off são extremamente bem feitas. Pode realmente não se igualar aos 4 Grandes álbuns, mas creio que mais devido ao contexto atual do que propriamente incompetência musical.

      1. Felipe, há várias músicas ótimas no disco, só não gostei de como a produção do Andrew Watt trabalhou elas. Pra mim, elas poderiam soar muito melhores nas mãos de outro produtor.

    2. O disco é cansativo logo no começo. Desde o último grande disco de 1994 que eu não curto mais os discos lançados pela banda.

  2. parabéns pelo texto, Marcelo.

    desde que comecei a ouvir o disco, alguma coisa me incomodava, e percebi que era realmente o som que parece estar dentro de uma caixa de sapato. treiste demais!

  3. Não acredito que eles tiraram o Daryl do baixo! O que será que aconteceu? Não achei o som do disco tão ruim qaunto você fala, mas tirando a música com a Lady Gaga, que não paro de ouvir, as outras não me pegaram tanto.

    1. Oi Italo, Darryl continua tocando com a banda! Fez todos os shows da Sixty tour, em 2022, e tocou no set em que eles apresentaram três músicas novas em Nova York na semana passada. Ou seja, só tiraram o cara do disco. Vá entender! Aliás, fizeram uma baita versão de “Sweet Sounds Of Heaven” nesse pocket show. Já viu? Tá no Youtube deles, mas vou incluir no texto 🙂

  4. Eu curti muito mesmo o disco mas consegui entender perfeitamente o ponto que pegou pra você. De toda forma, “Get Close” é um puta musicão que me cativou de jeito!

  5. Entrei aqui para sacanear o cara do texto e encontrei mais um fã do Bigger Bang kkkkkk Rolling Stones é bom até com mixagem ruim! kkkkkk

    1. Baita questão, Rogerio! Eu peguei uma versão flac, de alta qualidade, antes do disco sair, mas ouvi muito mais a versão do Spotify – pela facilidade de caminhar ouvindo nos fones. Com certeza não é a melhor versão, mas é a que mais está sendo ouvida, pelo força do player. Com a diminuição das midias fisicas, escrever sobre um disco tem sido sempre um desafio, porque o encarte faz uma falta danada – consegui fuçar o booklet do “Hackney Diamonds” no Discogs, mas ainda não descobri quando o Byll Wyman gravou o baixo dele e em que estúdio, curiosidade pra saber se a canção é nova ou uma sobra dos anos oitenta – e, principalmente, a qualidade do áudio numa mídia fisica é superior, sem dúvida. Atualmente, muitos assessores de artistas (principalmente independentes) enviam o disco em WAV pra imprensa, ou seja, para ouvirmos na melhor qualidade possível, mas as majors não estão se preocupando muito com isso, então a gente ouve da forma que a gente consegue. No caso desse novo dos Stones, aqui em casa foi FLAC e Spotify.

    1. Pura verdade. Esses autointitulaveis críticos não conhecem a fundo e na maioria das vezes , nada, o conteúdo que disponibilizam, como é nesse caso.
      Esse disco dos stones é sim uma obra prima , tão bom como todos os demais lançados.
      Nós é que perdemos tempo em ler uma baboseira dessas. É o mal da Internet, vem um mane desses pública e ainda falha seguidores. Brincadeira

      1. Ah, velho, você não precisa desmerecer um cara que tá há anos na estrada por não concordar com um texto. Eu não concordo com o que o marcelo escreveu, mas nem por isso vou ficar atacando a pessoa, chamando de mané. E assim, considerar o disco uma obra-prima mostra um pouco o quanto é importante ter críticos como o Marcelo Costa nessa seara.

      2. Verdade. Peço desculpas a todos aqui e principalmente a ele. Me excedi. Calor do momento. Me perdoe Marcelo. Mas continuo discordando, o disco é muuuuito bom. Escute mais algumas vezes que tenho certeza que você vai gostar mais. Palavras de um stones que não fica uma semana sem escuta-los e isso a mais de 40 anos.

  6. Compreendo, mas temos que ver que atualmente o que consegue fazer sucesso é esse tipo de sonoridade. Não achei ruim, é um
    Bom Disco e gosto muito da Angry , da música com Lady Gaga, Mess it up e a que vem logo em seguida com Elton John (agora me foge os nomes da cabeça ) . Quem não gostou de início, de mais uma chance para o disco. Ele é bom e é o melhor que surgiu nesse meio tempo em se tratando de rock mais ou menos pop ..

    1. Eu concordo com o artigo, não gostei para nada da mixagem, o som não tem força, senti ele sobre saturado e sem dinâmica.

    2. E eu já estou gostando mais do disco hoje do que quando escrevi, Renato (hehe). E super entendo essa questão do mercado atual, mas os Stones tem uma carreira longeva, eles não precisam se curvar ao mercado, podem fazer o que eles quiserem, do jeito que eles quiserem.

  7. Gostei demais do disco.
    Não gostei de Angry e mais um ou 2 musicas mas no geral é um baita disco.
    Mess it up é um pop que vai fazer muito jovem gostar de Stones.

  8. Também estranhei a produção, assim como o sabor exageradamente pop de alguns refrãos do disco.

    Mas as músicas são muito boas! Esses caras devem ter um pacto com Deus ou com o diabo, não é possível.

    Com certeza tudo ficaria melhor com uma produção um pouco mais suja e com mais peso na bateria, como no “A Bigger Bang”, mas ainda acho um discão.

    E não chega nem perto do nível de modernice gratuita do “Bridges”, que foi o meu medo quando fiquei sabendo do produtor.

  9. Acho que o Andrew Watt cuida bem das composições, mas nem tanto assim do som. Achei as 4 primeiras canções matadoras, curtas, “to the point”, diretas e divertidas. As duas com o Charlie são sensacionais e a Sweet Sound of Heaven já nasceu clássica e, só por ela, acho que o pessoal não vai esquecer do disco tão cedo, não. Concordo com a questão da produção, o som da cozinha meio pasteurizado acaba tirando também o brilho da trama de guitarras, tão característica dos Stones. Mas acho que mesmo assim o saldo é positivo, especialmente pra uma turma que já poderia estar aposentada ou gagá. Se for o último disco deles, um final digno para a maior instituição do rock britânico.

    1. Hoje, naturalmente, o álbum cresceu um pouco mais pra mim, mas ainda tô na dificuldade de achar “a” música. Gosto muito da “Sweet Sounds of Heaven” (mais hoje do que quando ela saiu), mas acho que as quatro primeiras formam um trecho coeso e empolgante do disco.

  10. Tua crítica é tão boa quanto esse álbum!
    Nunca tinha te lido, vc escreve muito bem.
    Tô curtindo muito o álbum, pq as músicas são chiclete e dão vontade de cantar junto. E convenhamos que inéditas dos Stones em 2023 é algo pra se celebrar.
    E curti muito ler teu texto até o fim, só deixou tudo melhor! Vou te acompanhar e ler mais
    Obrigadão

  11. O álbum é todo absurdamente bom. O som do álbum é excelente! A produção primorosa. A mixagem espetacular. A masterização idem. É Stones até o talo e com pegada sonora contemporânea. A compressão é pesada mas não amassa o som, só dá o punch que precisa.
    O álbum é espetacular! Som na caixa!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.