Cinema: A beleza gráfica de “Pearl”, dentro de sua proposta slasher, faz valer ao fã sua visita ao cinema

texto por João Paulo Barreto

Apreciadores do cinema de horror têm uma missão diferenciada em relação a outros grupos de cinéfilos. Para eles, o garimpo na busca de jóias raras é mais difícil e definido por aquela máxima: “filme ruim, vejo todos”. Mas, claro, seria nivelar por baixo e de modo pessimista classificar a média de visitas ao cinema desse modo tão raso. Isso, obviamente, evidenciado pelo fato de que a busca por algo surpreendentemente positivo traz, na maioria das vezes, apenas decepções e risadas irônicas centradas em sarcasmo e veneno.

2022, porém, foi exemplar no aspecto positivo para fãs do cinema slasher e de horror. Ao menos duas vezes, a ida às salas causou certo regozijo. A constar, “Sorria”, filme de Paker Finn, e a parte um do objeto de estudo desse texto, “X- A Marca da Morte”, filme de Ti West, representaram dois dos melhores momentos de catarse cinematográfica nos doze meses passados.

“Pearl”, também dirigido por Ti West (sim, ele lançou os dois filmes em 2022), apresenta uma história prévia, meio século antes dos acontecimentos vistos em “X – A Marca da Morte”, o brilhante slasher analítico do universo da pornografia localizado junto a uma dicotomia precisa relacionada a aspectos religiosos.

Enquanto “X”, o primeiro, centrou sua ação na libertária década de 1970, quando o cinema sensual X-RATED aquecia um mercado evidenciado pelo grupo de profissionais de cinema, aqui, vitimado por “seus pecados” (como pontua um pastor na TV), “Pearl”, o segundo filme, retorna ao começo do século, quando conhecemos a ainda jovem personagem título, uma mente já problemática e anos antes de se tornar a decrépita, sanguinária e atormentada idosa de “X”.

Vivida pela mesma Mia Goth que interpretou Maxine, a atriz pornô que almeja se tornar uma estrela em “X”, “Pearl” a traz confortável no papel da personagem título a emular toda a ambição frustrada por tentar se destacar em um mundo no qual estará fadada à decepção do ostracismo e do mundano. Mescle essas duas fatalidades a uma cabeça frágil, maltratada pela solidão (seu marido está lutando na Primeira Guerra Mundial) e hostilizada pelos abusos do bullying materno, e a receita para uma potencial tragédia oriunda da psicopatia assassina está posta.

Separados por meio século na ambientação de suas tramas, “X” e “Pearl” se aproximam em suas análises da evolução do cinema pornográfico como forma de arte libertária, mas que, invariavelmente, tem seus praticantes e/ou admiradores punidos. Neste retorno ao passado, as rimas temáticas e visuais entre os dois filmes se valorizam.

O cinema pornô é o ponto de partida temático para ambos, sendo que, no começo do século XX, as imagens de uma película muda e sensual, preto e branco, e em 35mm, são exibidas a uma quase reprimida Pearl durante uma sessão privada que lhe é concedida por um atraente e gentil projecionista na cidade próxima à pequena fazenda onde vive. O “quase reprimida” vem do fato de que as fantasias da garota com o rapaz que conheceu no dia anterior se tornam evidentes ao envolver um espantalho em um milharal, em uma cena cujo simbolismo se mescla a uma ideia puritana à qual se prende Pearl ao lembrar a si mesma de modo escandaloso e auto recriminatório do seu matrimônio.

Mas, ao conhecer o jovem cinéfilo que trabalha no cinema, a filha do fazendeiro (em uma alusão irônica ao título do pornô no qual atua Maxine nos anos 1970) acaba tendo naquela presença a paixão que lhe serve de catalisador à loucura. E sendo o galã alguém que, eventualmente, vai rejeitá-la, aquele ponto de virada passa a lhe simbolizar a fagulha incendiária para algo que, até então, ainda conseguia ser contido pela jovem.

Assim, tal elo através da pornografia entre os dois períodos distintos dos filmes, em paralelo à evolução libertária tanto do tema sexual no cinema quanto do comportamento de seus personagens, trazem a essa dualogia (que, em breve, se tornará uma trilogia) um convincente estudo desse fator sociológico.

Além disso, logo, a raiva direcionada às figuras masculinas do filme surge como exemplos claros do quanto Pearl precisava apenas de afeto e companhia. Quando um ovo de crocodilo é despedaçado junto à imagem fantasiosa da explosão de seu marido ao retornar da guerra, tanto a metáfora da socialmente obrigatória maternidade é descartada por Pearl quanto o ato de direcionar sua inerte frustração à ausência do cônjuge se tornam evidentes como pontos de virada na deterioração de sua saúde mental.

Construindo as duas personagens como pessoas cujas ambições se igualam, mesmo que separadas por meio século em suas vidas, Mia Goth, tanto no papel de Pearl quanto no de Maxine, desenvolve os dramas de suas protagonistas de maneira a criar para o espectador essa análise sobre a necessidade de atrelar o desejo da almejada fama a um frágil conceito de felicidade. Conceito este que, caso não seja alcançado, as consequências psicológicas se tornam pesadas. Impossível não ir mais além, chegando ao período atual, com a deprimente obsessão em se tornar alguém digitalmente conhecido, de influenciar opiniões e de angariar seguidores em redes sociais. Perceber como essa necessidade percorre gerações com a mesma capacidade danosa torna a reflexão acerca das duas obras assinadas por Ti West ainda mais profunda.

E se “Pearl”, mesmo se passando no começo do século XX, também traz um mundo conturbado por uma epidemia na qual máscaras no rosto são vistas pontualmente em alguns personagens, a maneira como West utiliza isso em favor do necessário espetáculo visual em sua proposta de horror alcança seu público com um sobressalto no momento em que uma dessas máscaras cai.

E este é o ponto no qual a beleza gráfica de “Pearl” dentro de sua proposta slasher faz valer ao fã desse tipo de cinema sua visita. A perseguição perpetrada por Pearl a uma inocente, saindo pela varanda, recém abraçada pela psicopatia assassina, de machado em punho e passando pelo recusado porco assado a se deteriorar em vermes a devorá-lo (em uma exata comparação à mente destruída da jovem), entregam àquele momento de um plano sequência a catarse tão esperada. Que venham mais.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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