Entrevista: Olívia de Amores fala de seu primeiro disco, “Não É Doce”

por Alexandre Lopes

Cantora, guitarrista e compositora amazonense de Manaus, Olívia de Moraes ficou quase 10 anos à frente do power trio de rock alternativo Anônimos Alhures. Depois de shows e participações em festivais locais, a promissora banda deixou registrado um único disco – “A Maquinaria Começou a Rodar”, lançado de forma independente em 2015.

No fim de 2016 e começo de 2017, com a morte da bisavó – também chamada Olívia –, o falecimento de uma amiga e o término de um longo relacionamento, a musicista resolveu remexer no baú de canções que criou desde a adolescência e não pretendia encaixar no repertório de sua banda. Para separar suas personas, Olívia de Moraes então tornou-se Olívia de Amores e passou a planejar um disco solo.

Autodidata nas seis cordas, ela foi aprendendo outros instrumentos, como baixo, percussão, sintetizadores e ainda produção musical. Motivada por experiências amargas mas que também trouxeram amadurecimento, Olívia lançou de forma independente em 2020 o resultado de seu extenso processo de luto pessoal: o álbum “Não É Doce”, produzido por Bruno Prestes e masterizado por Steve Fallone – vencedor de um Grammy que já trabalhou com grandes nomes como Strokes, Tame Impala e Kacey Musgraves.

Inspirada por referências díspares e ao mesmo tempo complementares como St. Vincent, PJ Harvey, Letrux, Cícero (em “Canções de Apartamento”), Carne Doce, Mademoiselle K e Land Of Talk, Olívia de Amores invoca durante as 10 faixas de “Não É Doce” linguagens do rock, mpb, citações ao brega nortista, electro-rock e arranjos shoegaze na guitarra.

Porém, assim como todas as pessoas ao longo de 2020, Olívia teve de enfrentar um obstáculo inesperado para a promoção de seu trabalho: o coronavírus. E especificamente de forma mais pessoal com a crise sanitária no estado do Amazonas, culminando com a perda de mais um parente: a avó Glória pelo Covid-19, em fevereiro deste ano.

Mesmo com todos os percalços, Olívia segue seu caminho como uma artista muito consciente de sua obra e de seus significados, despontando como um dos principais nomes da cena independente do Norte do Brasil. Em entrevista ao Scream & Yell, ela rememora os anos com a banda Anônimos Alhures e conta mais sobre o processo de criação de sua estreia solo e de seus excelentes videoclipes. Com vocês, Olívia de Amores.

Você ficou à frente do Anônimos Alhures por quase 10 anos. O que te levou a virar artista solo?
A introspecção me levou à carreira solo. Sempre vinculei o fato de ter banda à vivência de palco e a vida me colocou numa bifurcação ali em 2016: ou eu tentava reunir alguma energia pra manter a banda – e todo trabalho que isso envolve, tanto em marcar reuniões, ensaios, articular coisas coletivamente, quanto a energia de subir num palco mesmo – ou eu guardava o pouquinho de energia que eu tinha, combinava com o tanto de mágoa em que eu tava imersa e me dedicava a um trabalho mais íntimo. A segunda opção virou a única alternativa, no fim das contas. Pesou também uma vontade de me desvencilhar do compromisso de fazer algo bom e fazer dar certo. Em uma banda você simplesmente tem que assumir que investir em um potencial fracasso é submeter os teus companheiros à mesma bad.

“Não É Doce” traz duas músicas do Anônimos Alhures: “La Cancionera” e “Brado Apocalíptico”. Por que você resolveu regravar essas canções?
Durante os meus 10 anos de banda, tive meus melhores momentos de descoberta como musicista, mas também tive muita frustração de não poder gravar as coisas da melhor forma, como tinha composto na minha cabeça, com os arranjos e a intenção que eu tinha, por questões financeiras mesmo. No meio do processo de fazer o projeto solo, me deu vontade de tocá-las e me dei essa oportunidade de regravar com alguma intenção criativa mais original. Dei uma ressignificação para algumas delas em um momento de mais intimidade. E me contive para não refazer mais nenhuma pois seria apenas um ‘Anônimos Alhures chique’. Preferi diversificar depois.

O disco da Anônimos Alhures parece ter uma pegada mais guitarrística, enquanto que no seu as faixas seguem uma linguagem mais pop. Você concorda com isso?
Concordo em partes. Na Anônimos Alhures eu estava em um formato de trio. Eu era a única guitarrista e a única vocalista. Isso impunha na minha guitarra a função e responsabilidade de me desdobrar para fazer todos os arranjos possíveis, nos quais eu fazia solo e base. Talvez por isso pareça ser mais rock ou guitarreiro. Mas no meu projeto, pego essa ideia e não canalizo apenas na guitarra; eu consigo viver essa ideia em vários corpos. Um solo que eu pensei originalmente para a guitarra mas com um timbre diferente, eu simplesmente faço num sintetizador, não preciso fazer numa guitarra. Assim posso ser seis pessoas, sete, oito e tudo bem, o estúdio permitia isso. E no palco agora com uma nova formação também.

A capa do álbum traz você com uma espécie de monstro te abraçando. De onde saiu essa ideia e qual o significado dela?
Todos vão saber o que ele significa e seus motivos em breve, após o lançamento do curta-metragem do álbum, em que o monstro é um dos personagens. Ele simboliza alguns sentimentos densos, um pouco depressivos, que estão ali o tempo todo, pegando no teu pescoço e se alternando na vida e te substituindo em algumas coisas de uma forma metafórica, na forma de agir e reagir. Mas as pessoas vão ter uma noção mais contextualizada disso tudo quando sair o filme.

“Não É Doce” foi produzido pelo Bruno Prestes. Como acha que ele influenciou no som do álbum?
O Bruno me conheceu na minha pior forma: mixando o áudio de um dos piores (se não o pior) shows que já fiz. Era um festival em outro município, o baterista não tinha chegado a tempo, tive que brigar pelo direito de tocar sozinha e ele apareceu, já depois dos meus primeiros acordes. Por causa do estresse, bebi muito, fiquei com raiva e cantei do jeito que dava. Bruno ainda assim gostou de mim, mesmo depois do trabalho que dei pra ele na edição. Pra mim isso era apostar mesmo no meu trabalho, acabou me incentivando muito. E ele é uma referência aqui em Manaus, cantor, guitarrista e compositor de uma banda que inspirou muito amazonense roqueiro, a Several. Desse acaso, ficamos conhecidos e depois firmamos essa amizade com as gravações.

O disco foi masterizado por Steve Fallone, um grande nome estrangeiro. Como aconteceu isso?
O Fallone veio pela pesquisa e pelo momento em que o dólar ainda era possível. Apesar de um contato bem raro, de conversar mesmo com ele, acabou que no final também ficou mais pessoal a relação, e ele falou que gosta muito das minhas músicas. Fiquei muito feliz, valeu demais.

O álbum tem até o momento sete clipes, um jogo para celular e também tem o filme que vai sair em breve. Você sempre pensa nas suas criações desta forma multimídia?
Eu acho que já componho bem “multimídia”. Ou melhor, de uma forma meio sinestésica. Por exemplo, “Abisso” compus a partir de imagens mentais sobre o que seria viver numa fossa abissal; “Janela Remota” fiz como se ela fosse um filme e a música um roteiro; “Só Vamo” compus de uma forma 8bit, como se fosse um game (já imaginando que seria um game).

Eu até ia comentar sobre o clipe de “Só Vamo” e o jogo relacionado “Super Maria Sis” (disponível na Play Store). Durante a coisa toda você passa por umas paredes com umas frases homofóbicas, uns bolsominions, mas ao mesmo tempo tem alguma leveza ali.
Essa é justamente a minha música 100% feliz e bem curta. Não sei falar muito sobre coisa alegre. Eu sou uma pessoa alegre, mas quando se trata de música, não é um sentimento muito rico ou motivador. Eu acho que a alegria é autoexplicativa, mas as coisas que a gente vive de perda, de luto, elas requerem mais análise, mais reflexão e mais notas, tons e palavras para materializar e entender. Mas nessa foram dois feitos em uma música só: sempre quis fazer uma música curta e nunca consegui, pois sou muito prolixa falando e até na guitarra. Quando fiz “Só Vamo”, com essa objetividade, todo aquele rush de amor gay, quis metaforicamente pular por cima de bolsominion mesmo, dizendo “eles não vão nos atingir”. E foi uma coisa muito legal de fazer. É gay pra caramba, é bem sapatão!

Então todas essas obras se complementam ou isso foi feito meio que por acidente?
Não existem acidentes (risos). Tenho uma lógica (que nunca vou compartilhar com ninguém) do encadeamento de todas essas músicas nas minhas obras visuais que vão se aperfeiçoar com o lançamento do curta-metragem. Existem pequenos easter eggs que eu coloquei de uma forma consciente em cada vídeo (que prefiro chamar de “faixas-vídeo”). Então fazer “Não É Doce” foi um exercício de tudo isso junto. Gosto de pensar os vídeos desse álbum, junto com o curta, como uma parte inerente à composição, não como uma consequência, uma divulgação ou uma estratégia de marketing.

Pode-se dizer que muitas faixas do álbum são baseadas no sentimento de perda e infelizmente estamos passando por um momento de muitas perdas no país, com Manaus sendo o centro disso. Sendo uma artista manauara, como isso tem influenciado nas suas criações ou na forma como você está tocando a divulgação do seu trabalho?
Tem influenciado minhas ‘crianças’ da forma radical: não tenho criado. É quase como uma penitência, abstinência natural, falta de vontade criativa. E é estranho, porque as circunstâncias que me levaram a “Não É Doce” eram as piores, na minha vida íntima. É uma dor diferente da que experimentamos sendo brasileiros e testemunhando um apocalipse sem data pra terminar. Me vi em uma posição de culpa toda vez que algo de bom ou interessante acontecia na carreira, então me calei. Eu sei que arte ajudou muita gente nesse período, e meu álbum tava lá pra dar essa força pra quem pudesse aproveitar. Mas falar de carreira me parecia um tanto egoísta, vaidoso ou superficial. Até hoje é difícil sair disso, mas já há mais esperança. Sinto que tem uma energia maior que eu, me puxando externamente pra arte. E é bom, são pequenos resgates. A participação no Labsônica foi isso pra mim, me instigou a um desafio no meio do desespero. Agora, a live do Itaú Cultural me tira da zona de conforto. Aos poucos me sinto mais forte enquanto artista e enquanto sobrevivente do caos.

E quais são os próximos passos e novidades para essa live do Palco Virtual no Itaú Cultural no dia 17/06? Dá pra esperar algo como o vídeo feito todo em loops com você tocando todos os instrumentos que rolou no Festival Labsônica?
No Festival Labsônica estávamos em um momento sanitário mais crítico que agora. Então para o Itaú Cultural decidi fazer um showzinho mais tradicional, mesmo, com três amigos, poucos ensaios e zero contato físico. Isso significa menos loops e solidão, mas mais experiência compartilhada.

– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br

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