Livro: ‘A Amiga Genial’, Elena Ferrante

por Renata Arruda

Considerado por muitos como um dos melhores livros lançados no Brasil em 2015, “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul) é o primeiro romance da chamada Série Napolitana, publicada pela escritora italiana que assina com o pseudônimo de Elena Ferrante – o segundo volume chega por aqui ainda em fevereiro. Nos Estados Unidos, o lançamento do quarto e último foi tão aguardado que conseguiu transformar a tetralogia em uma verdadeira febre, batizada pela imprensa de “Ferrante Fever”. Por aqui ainda é cedo para dizer se é para tanto, mas este primeiro romance já mostra o potencial da história que acompanha a relação entre duas amigas de infância, Lila Cerullo e Elena Greco, e a vida em um bairro pobre da periferia de Nápoles, Itália, após a Segunda Guerra.

A história, traduzida por Maurício Santana Dias, é narrada por Elena, então com 66 anos e estabelecida como escritora bem-sucedida, que ao se deparar com a notícia de que Lila sumira sem deixar nenhum vestígio? – ?inclusive ela recorta a si mesma de suas fotos de família –, resolve impedir que a história da amiga desapareça e decide escrever suas memórias. O que a princípio pode parecer um ato de amor na verdade esconde uma inofensiva competição que Elena passou a vida travando veladamente com Lila, a quem sempre se sentiu inferior. “Vamos ver quem ganha desta vez, disse a mim mesma”, escreve.

No livro, a amizade feminina e as relações entre mulheres em geral são contadas com uma honestidade desconcertante, e qualquer pessoa que viveu em uma periferia vai reconhecer o que ela diz em passagens como: “As mulheres brigavam entre si mais do que os homens, se pegavam pelos cabelos, se machucavam. Fazer mal era uma doença. Desde menina imaginei animaizinhos minúsculos, quase invisíveis, que vinham de noite ao bairro, saíam dos poços, dos vagões de trem abandonados para lá da plataforma, do mato malcheiroso chamado fedentina, (…) e entravam na água, na comida e no ar, deixando nossas mães e avós raivosas como cadelas sedentas. Estavam mais contaminadas que os homens, porque estes ficavam furiosos continuamente, mas no fim se acalmavam, ao passo que as mulheres, que eram aparentemente silenciosas, conciliadoras, quando se enfureciam iam até o fundo de sua raiva, sem jamais parar”.

Ainda que o ponto principal de “A Amiga Genial” seja tratar do período de formação e a dinâmica da relação entre Elena e Lila, o que mais chama a atenção é a violência que perpassa o romance, em especial a violência cotidiana contra a mulher. Vivendo em uma vizinhança empobrecida, de baixa escolaridade e com alto índice de criminalidade, a maioria das mulheres, assim como os homens, deixavam a escola cedo para ajudar na casa ou nas finanças da família e eram encorajadas a casar ainda adolescentes, com homens de situação financeira melhor? – e assim ficava bem claro quem mandava e quem deveria obedecer.

Lila é uma vítima contínua de várias versões de violência: dona de uma inteligência natural e sofisticada, sua infância é marcada pelos livros que devora (e que sonha escrever um dia), através dos quais aprende de matemática a política e filosofia. Porém, Fernando Cerullo, seu pai, acha que Lila deve estudar somente o básico e passa a se enfurecer toda vez que a vê com um livro na mão. Quando manter a menina na escola se torna uma despesa inviável, resolve impedir que ela continue a estudar.

“Estudar? Para quê? Por acaso eu estudei?”
“Não”
“E você? Estudou?”
“Não”
“Então por que sua irmã, que é mulher, precisa estudar?”

Nem mesmo a professora consegue convencê-lo do contrário, o que a leva a tratar Lila com o desprezo que acredita que deve dirigir à “plebe”. Quando começa a perceber que terá que abandonar a escola, Lila começa a se tornar nervosa, agressiva e começa a entrar lentamente em um processo de desânimo e conformismo. Apesar disso, ela nunca age como ou demonstra se sentir uma vítima de fato, chegando por diversas vezes a enfrentar Fernando (e, posteriormente, o irmão Rino), e ser continuamente agredida por eles? – ?incluindo um terrível episódio em que é arremessada pela janela pelo pai. Os pais simplesmente podiam fazer isso. Em sua dissertação, Elena reflete que aquele tipo de situação não era nada comparado ao cotidiano local:

“Suas violências de pai eram ninharias se comparadas à violência difusa no bairro. No bar Solara (…) se batia e se apanhava. Depois os homens voltavam para casa exasperados com as perdas no jogo, com o álcool, com as dívidas, com os prazos, com as sovas e, à primeira palavra atravessada, espancavam a família, numa cadeia de erros que geravam erros.”

Já Elena vive uma realidade familiar diferente. Seus pais, orgulhosos de seu rendimento escolar, permitem que ela continue na escola. Certinha e esforçada, o que secretamente a incentiva a se tornar uma excelente aluna é a vontade latente de impressionar e até ultrapassar Lila? – ?o que ela nunca sente que consegue. Lila está sempre um passo à frente, e enquanto Elena se envolve cada vez mais com seus estudos, Lila passa a aparentemente não se importar mais com teorias e abstrações, tomando decisões pragmáticas que fazem com que Elena se sinta sempre mais imatura e inexperiente que a amiga.

Apesar de seu comportamento quase impecável, que a protege de um determinado tipo de violência, Elena não está livre de sofrer assédios e aos 12 anos acaba sendo vítima de um abuso sexual que irá provocar nela um misto de horror e prazer, confusão e culpa. A ironia é que seu agressor não é nenhum dos seus vizinhos grosseiros, o que levaria a um estereótipo fácil, mas um homem sensível e letrado, marido atencioso e pai exemplar, que é muito bem definido nas palavras contundentes de um determinado personagem a quem este homem não consegue enganar: “Por vaidade [ele] faria mal a qualquer pessoa, e sem se sentir responsável por isso. Como está convencido de agradar a todos, acredita que tudo lhe é perdoado. (…) É um hipócrita, me dá nojo”. Como bem colocado por Ferrante em entrevista, a violência também se esconde sob a bondade.

Sucesso há mais de 20 anos na Itália, Elena Ferrante sempre se manteve longe dos holofotes: pouco se sabe sobre sua vida pessoal (ainda que sua Série Napolitana possua elementos autobiográficos), não revela seu nome verdadeiro, não mostra seu rosto e até pouco tempo concedia entrevistas somente por telefone? –? foi a revista Paris Review a primeira a conseguir que seus entrevistadores conversassem pessoalmente com a autora, no ano passado. Seu motivo é bem simples: para ela, os livros deveriam se sustentar sozinhos, sem a necessidade de se promover a figura do autor. “Se os livros têm algo a dizer, mais cedo ou mais tarde encontrarão leitores”, declarou ela. E talvez o que “A Amiga Genial” tem a dizer possa ser resumido na passagem em que Elena relembra uma frase dita por Lila:

“‘Se não há amor, não só a vida das pessoas se torna árida, mas também a das cidades’, associei às nossas ruas sujas, aos jardins descuidados, ao campo arrasado por prédios novos, à violência em cada casa, em cada família.”

– Renata Arruda (@renata_arruda) é jornalista e assina o blog Prosa Espontânea.

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