Bob Dylan na sombra cantando Sinatra

por Gabriel Innocentini

Ele está de volta. Mas qual Bob Dylan? Há um Bob Dylan para mudar a cultura pop, há um Bob Dylan que lê a Bíblia e recria a mitologia norte-americana num porão em Woodstock, há tantos Bob Dylans quanto você quiser. O mais novo é o mais antigo: um pré-Dylan.

Robert sempre soube se apoderar muito bem de canções alheias (e de livros memorialistas da Yakuza, mas ninguém pode dizer que estava sendo enganado, o título do disco era “Love and Theft”, com aspas mesmo). Começa com Woody Guthrie e termina… bem, no caso dele jamais podemos dizer que algo está terminado (aí estão os bootleg$, uma narrativa subterrânea de uma carreira acidentadíssima). Dylan sabe muito bem sua canção antes de cantá-la (Allen Ginsberg, o poeta mais popular da América em nossa era, diz ter ficado tranquilo ao ouvir esse verso, pois sabia que sua tradição iria continuar) e “Shadows in the night” é o mais recente exemplo de que ele é um dos artistas mais autoconscientes a surgir no universo popular.

Competir com The Voice? Pra quem foi chamado de “Voice of Generation”, cortar o qualificativo não deveria espantar ninguém. Os indies britânicos perguntam: Bob Dylan está nos trollando? Parece que desde o grito de “Judas” no Royal Albert Hall em 1966 os ingleses tentam entender Mr. Zimmerman sem sucesso…

“Shadows in the Night” é um projeto antigo, e Dylan declarou que a intenção era tirar essas canções da cova e trazê-las à luz do dia. Uma afirmação tipicamente dylaniana: então Frank Sinatra não fez jus a elas? “Fools give you reasons, wise men never try”. Bob parece sempre ver algo que não estamos vendo. Ou ouvindo.

O velhinho inicia os trabalhos com “I’m a Fool To Want You”, que remete à desolação inicial do magnífico e mortífero “Time Out of Mind” (1997). Aqui não há o enjoo de “Love Sick”, antes um pedido calmo: volte, preciso de você. Ouça com o Superbonder na mão pra ir colando os caquinhos do coração. “The Night We Called It a Day”, que ganhou um belo clipe noir (e, claro, solitário), segue a mesma linha (pera lá, Dylan já havia pronunciado a palavra “dark” de modo tão vacilante e frágil antes?) e “Stay With Me” não melhora em nada o clima solitário.

Quase dez minutos de um discurso monomaníaco e o tom está estabelecido: as sombras noturnas estão aqui pra ficar. Apelos, memórias, tristeza e solidão. “Autumn Leaves” se arrasta, como se a conhecidíssima melodia não precisasse ser reforçada, apenas espalhada como as folhas mortas que caem, notas esparsas apontando de um lugar distante. Versão espectral é isso aí.

A quinta canção não oferece novidades: por que mudar agora? A contenção se mantém, o ritmo nunca sai do trilho paciente, as escovinhas marcam a percussão, o baixo acústico enfatiza algumas notas, e Donny Herron vai tornando o mundo mais belo a cada canção com seu feeling perfeito na steel guitar. O som de “Shadows In The Night” é impensável sem seu slide mágico sobrevoando os acordes, elegante como a capa do álbum.

O Dylan “crooner” é outra conversa (busque “Tomorrow Night”, “Pretty Saro” ou “Lay Lady Lay”), esta é uma antiga voz soando firme e bem posta (Dylan disse ao produtor Al Schmitt que nunca ouviu a própria voz soar tão bem), arranhando quando necessário (porque no fim das contas ele jamais vai soar doce o tempo todo, nem as musas Sara e Suze provocaram tal feito), porém estranhamente suave. Como quando canta o verso “where is my happy ending?”. A autoridade dos arranjos não concede nenhuma ironia a essas regravações. 73 anos nas costas e letras sentimentais não conseguem torná-lo um velho babão. É admirável.

“That Lucky Old Sun”, que já era tocada ao vivo desde 1985, encerra o disco com chave de ouro. 10 canções para ninar cotovelos, ideais para as pequeninas horas, as horas solitárias e minúsculas em que a verdade vem, sem desespero, irremediável.

Irremediável? Mentira. A música nunca abandona aqueles que sabem escutá-la. Uns dizem que amor é luz. Bob Dylan vem cantar as sombras na noite. Está certo: é o velho Dylan de sempre, aquele que conhecemos de cor e salteado, ainda capaz de dizer, como nos turbulentos anos 60: eu faço música norte-americana.

Quem quiser que cante outra.

– Gabriel Innocentini (@eduardomarciano) é jornalista e dissecou a discografia completa de Dylan: Confira aqui.

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