Entrevista: “Sou gaúcho, vivo no Rio Grande do Sul, mas não faço disso uma profissão”, diz Nei Lisboa

por Marcelo Costa

Com 30 anos de carreira, nove discos e dois livros, o cantor e compositor Nei Lisboa tem uma sólida história formada no Rio Grande do Sul, onde ingressos para seus shows são bastante disputados e discussões ferrenhas acerca do “ser ou não ser gaúcho” são travadas de forma séria. Fora do Estado, Nei é admirado, mas o reconhecimento não é proporcional ao seu enorme talento de compositor e de escritor de mão cheia, crítico e poético dependendo do momento (pessoal e do mundo).

“A minha vocação musical sempre foi meio vagabunda”, explica Nei Lisboa em conversa por Skype com o Scream & Yell. “Os anos 80 são discos mais conectados com o pop rock, mas se pegar o primeiro já tinha um frevo, um samba”, relembra, citando ainda o disco ao vivo “Amém”, de 1983 (“Um disco todo voltado para o candombe uruguaio”) e seu belo álbum de covers folk “Hi Fi”, de 1998, entre outros, que trazia versões bastante pessoais para canções de Elton John, Beatles, Stones e Paul Simon, entre outros.

Em “A Vida Inteira” , o primeiro disco em sete anos, Nei Lisboa volta a se posicionar como observador do mundo, algo que já havia ocorrido no álbum que o projetou nacionalmente, “Carecas da Jamaica” (1987), e em “Cena Beatnik” (2001), formando uma não planejada trilogia crítica repleta de significados.

“Gostaria de não ser tão rançoso a essas modernidades”, diz Nei, mostrando-se cauteloso com a ideia de que a tecnologia irá salvar o mundo. “Gosto desses brinquedos, mas sou cuidadoso com o que eles podem representar”, pondera enquanto comenta canções novas (as três presentes nesta entrevista estarão no álbum) e relembra uma longa discussão com o Movimento Tradicionalista Gaúcho (que o acompanha desde que surgiu, em 1983, e ganhou novos contornos após uma entrevista em 2010 ao Zero Hora). Com você, Nei Lisboa.

Como surgiu a ideia do financiamento coletivo? Em 2010 você chegou a pensar em liberar as canções na internet…
As coisas não se excluem, na verdade. Durante esse projeto já estamos liberando algumas canções do repertório na internet e até em rádios, gravações demo, claro, já que o disco não começou a ser gravado. Estou adotando quase que uma política de obra aberta, construindo o trabalho com ele em visibilidade para todo mundo. O disco está sendo vendido, de certa forma, já que as pessoas estão ali, apoiando e tendo o retorno do disco físico, e também o acesso digital está precificado numa categoria que inclui alguns privilégios como receber as canções em primeira mão e terem acesso aos vídeos e tal. Mas assim que o lançamento acontecer, com certeza o disco estará disponibilizado. Já a noção da coisa (de financiamento coletivo) em si vem de primórdios da minha carreira. O meu primeiro disco foi feito em um modelo antecessor ao crowdfunding, e muita gente em Porto Alegre fez isso, de vender o disco antecipadamente com bônus que as pessoas compravam e depois trocavam pelo disco. De anos para cá, apareceu o crowdfunding com uma estrutura bem mais complexa e moderna, com fã e cidadão consumidor tendo amparo de uma plataforma com facilidades digitais de pagamento e a segurança de receber o dinheiro de volta caso o projeto não se concretize. Fui conhecendo isso aos poucos e, conforme foi aparecendo na mídia, achei interessante e que se encaixava com o meu trabalho. É uma coisa muito certeira para o momento de agora. Meu perfil de trabalho continua sendo o de gravar em um estúdio maior, com músicos profissionais pagos, com um produtor de certa experiência, e isso faz o disco sair muito mais caro do que o de uma banda que está começando possa fazer. Esse crowdfunding do “A Vida Inteira” vai até os primeiros dias de julho…

E na sequencia você já entra em estúdio?
Se tudo der certo (risos). Estamos na expectativa porque esse negócio de crowdfunding é uma emoção só. Estamos fazendo um projeto dos maiores e não é uma meta muito fácil, mas se justifica pelas inúmeras recompensas para o fã. Pensamos na ideia da pessoa sair satisfeita dali e sair bem recompensada.

Entre o “Translucidação” (2006) e esse disco novo são 7 anos de intervalo, o maior sem material inédito da sua carreira. Foi um intervalo natural ou, se pudesse, você lançaria disco todos os anos?
Eu não lançaria (discos) todos os anos porque meu processo de composição é bem lento. Sou um cara que canta e grava suas próprias músicas. Não produzo aos borbotões e gosto de lapidar bastante na origem. É um trabalho artesanal. Fico remoendo as palavras, uma a uma, em cada coisa que faço, e isso toma muito tempo. Mas uma série de coisas propiciou esse intervalo maior. O “Translucidação” não foi um disco de muito sucesso comercial. Pra ser bem sincero, acho o repertório do disco perfeito, mas a construção do disco como um todo deixou a desejar. Após um trabalho como esse há sempre uma ressaca em que a gente fica se perguntando “de onde vem” e “pra onde vai”. Foi um período em que mudei de produtor, mudei de casa, estava com uma filha pequena… então aproveitei para fazer um balanço. Junto com isso veio outro balanço, que foi o dos 30 anos de carreira. Construímos essa celebração em torno de um show, em que a ideia inicial era um projeto de um DVD, mas buscamos financiamento e captação e o que apareceu foi um apoio da Petrobras para uma turnê nacional. Nos voltamos para isso e em 2010 fizemos um CD de apoio a essa turnê, chamado “Vapor da Estação”, a partir de um registro ao vivo em São Paulo, e rodamos com essa ideia de show de 30 anos de carreira. No meio do caminho ainda teve um livro também, uma reunião de crônicas publicadas em jornal, para que não ficasse enrolando peixe…

Como se passaram estes 30 anos de carreira pra você? Foi rápido?
Não foi tão rápido assim não. É uma estrada, sabe. Muita água rolou na carreira e na vida. Não olho para essas coisas pensando “parece que foi ontem”, mas sim como uma longa estrada. E olho para frente como se estivesse dobrando o Cabo da Boa Esperança. Tem mais 50 ainda, mas tu começa a vislumbrar que a vida pode ter um final (risos). Começa a ter a noção de dizer “a vida inteira eu fiz isso daqui” de forma séria.

“A Vida Inteira” é o nome do novo disco. Você já mostrou algumas demos e chegou a tocar ele inteiro no ano passado em Porto Alegre…
Toquei o que seria todo o repertório dele, mas já está aparecendo uma nova. O repertório está girando entre 13, 14 ou 15 músicas…

Eu gostaria que você falasse um pouco sobre essas três músicas novas que você colocou no Youtube (e que estão aqui na entrevista): “A Vida Inteira”, “Dona do Seu Nariz” e “No Boleto ou No Cartão”.
Vou começar por “Dona do Seu Nariz”, que é uma música um pouco a parte do eixo do disco. Fiz para a minha filha de 10 anos, uma cançãozinha imaginando o que seria o futuro dela, com tantas coisas que ela quer ser e trabalhar e gosta de fazer. As outras duas – “A Vida Inteira” e “No Boleto ou No Cartão” – compõe junto com mais várias o eixo do disco, que é um olhar sócio crítico do momento atual, da nossa realidade de agora, dessas questões sobre relações virtuais, hipermodernidade e esse contraponto entre a virtualidade e a realidade crua das calçadas. Isso tudo na visão de um cara iletrado como eu. Gosto de me dedicar… de fazer um observatório crítico da realidade, mas é uma visão de um leigo, de um compositor popular.

Essa sua explicação me faz ter ideia de que “A Vida Inteira” pareça um pouco primo do “Carecas da Jamaica” (1987)…
Exatamente. Pontualmente fiz uns trabalhos assim: “Carecas da Jamaica”, o “Cena Beatnik” (2001), que também era um olhar sobre aquele momento de Fórum Social Mundial… era um disco conectado com o renascimento de um movimento de rua, de uma Esquerda, de um contraponto ao pensamento liberal dos anos 90. Depois veio “Relógios de Sol” (2003), que é um disco todo sobre mulheres, para mulheres, e agora de novo surge mais um movimento meu de olhar pra fora, olhar em volta.

Dentro desse olhar, o mundo moderno é mais ou menos isso: o que a gente quiser pode ter, no boleto ou no cartão?
É um sintoma forte da última década esse deslocamento das pessoas para um individualismo calcado em desejos por tecnologia, por ter coisas e se identificar com isso: “Eu sou o que eu tenho e responde rapidamente ao toque do meu dedo”. Então a relação entre as pessoas começa a ser mediada desta mesma forma… Eu gostaria de não ser tão rançoso a essas modernidades, já tenho cara de velho, e qualquer ideia velha que eu apresente acabe sendo redundante. Mas sou realmente um pouco reticente com essa ideia de que a tecnologia vai nos salvar. Sou cuidadoso com isso. Gosto desses brinquedos, gosto de lidar com eles, mas sou cuidadoso com o que eles podem representar.

Gostaria de relembrar dois projetos de versões de canções suas: o “Baladas do Bom Fim” e o disco da Simone Capeto. Como você recebeu estes projetos?
Muito bem! Não sou nem um pouco ciumento com o que fazem com o meu trabalho e o “Baladas do Bom Fim” é sensacional, um disco super bem produzido. São versões radicalmente diferentes das originais e adorei todas elas. Adorei ter me visto lido por uma garotada mais nova. Foi muito legal. Fiz show de lançamento com eles, curtimos um monte. Já o trabalho da Simone (Capeto) foi uma gentileza dela, que ao gravar o seu primeiro disco tenha feito ele inteiro com músicas minhas. Eu sugeri a ela que fizesse com músicas do Tom Jobim (risos), mas ela seguiu em frente e decidiu gravar canções do Nei Lisboa, praticamente um desconhecido no Rio de Janeiro na época em que ela estava lançando, e ficou lindaço.

Você também gosta de fazer versões. Desde “Toda Forma de Poder”, que apareceu no “Carecas da Jamaica” passando pelo álbum “Hi-Fi” (1998) até Caetano e Oasis no “Transfiguração”. Esse disco novo terá algum cover?
Até o momento é um disco inteiro de Nei. Todas as canções minhas, letra e música. Não está aparecendo nenhuma releitura. Eu estava sedento de tantos anos sem compor, e tenho ficado, e isso já faz um tempo, mais chato com relação a ter parceiros. No início de carreira eu tinha um grande parceiro, que era o Augusto Licks, que depois foi pros Engenheiros do Hawaii, e dai pra frente foram raras parcerias.

Falando sobre o debate que rolou após a sua entrevista para o Zero Hora em 2010, eu sei que é muito local quando você fala dos “patrões da cultura”, mas eu gostaria de saber se você consegue identificar patrões da cultura em São Paulo, no Rio…
Primeiro é importante dizer que esse título “Patrões da Cultura” foi um título dado pelo jornal. Escrevi aquele artigo e enviei sem título, mas nada contra, é um título que cabe ali. A questão que é mais peculiar aqui, não sei se é fácil de traduzir (pra quem é de fora do Rio Grande do Sul), é que ela não envolve apenas o Movimento Tradicionalista Gaúcho em si, que é uma coisa muito forte não só no interior do Estado, mas também nas grandes cidades, com os CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), com incentivo do Estado e uma entrada no educandário. Daqui a pouco começa a surgir nos currículos escolares uma versão da história que é contada na forma que o MTG acha que aconteceu, mas (ainda assim) não se resume a isso, e sim há em todo imaginário do Rio Grande do Sul, com um fomento midiático em torno dessa ideia do Super Gaúcho, do Gaúcho Heroico, do Gaúcho Mítico. E isso cria, com muita facilidade, uma movimentação perigosa no coletivo de pessoas muito simples. Me arrepio quando vejo as pessoas cantando o Hino do Rio Grande do Sul em um estádio de futebol antes da partida. A ideia de que a geográfica fechada te diferencia dos outros seres humanos – pra melhor e pra pior – seria uma coisa fora do tempo em qualquer situação. É contra isso que brigo. Isso na música se reflete com muita intensidade porque ela é o veículo primeiro dessa ideologia gauchista. A cultura popular, mais espontânea, que tem a ver com a tradição do Teixerinha, por exemplo, isso tudo foi abduzido por um formalismo e um rigor que faz com que pessoas que queiram tocar no CTG não possam tocar de tênis ou as mulheres não poderem dançar mais coladinhas (risos). Coisas do arco da velha. Me bato com isso e não é de agora. Na época do lançamento do meu primeiro disco (“Pra viajar no Cosmos não precisa gasolina”, 1983) comprei um briga do mesmo tamanho, mas com mais ironia. Há coisas ali no primeiro disco que pegam no pé disso… como uma música que misturava chimarrão com maconha. Tem muita gente que sabe levar essa história toda com muito humor. Tem um site chamado O Bairrista que faz uma coisa muito interessante, muito legal, só que hoje não tenho mais paciência. São eles (do MTG) lá e eu aqui porque se é pra falar sobre esse assunto eu falo sério. E com muita pena de que as coisas sejam assim.

Nessa mesma entrevista você diz que a música gaúcha não te representava. Que música te representa?
Não sei se a frase era exatamente essa (que você citou). Eu disse que a música gaúcha estava se tornando intragável, uma frase até um pouco mais forte, mas me referindo exatamente a essa música popular gauchesca e não o que ela é em sua origem, ao potencial que ela tem e aos músicos que as criam. É o que reveste a coisa toda. Sabe-se muito bem como as coisas se transformam dentro da mídia. Por exemplo, o sertanejo e o que ele se tornou hoje em dia. Aqui (no Sul) também temos essa coisa maciça e isso não me representa, claro. Sou gaúcho, vivo no Rio Grande do Sul, mas não faço disso uma profissão. Quero crer que faço da minha música uma coisa muito mais aberta a todas as influencias que vierem mundo afora. A minha vocação musical sempre foi meio vagabunda, basta dar uma piscadinha para o meu coração… Já fiz um pouco de tudo. Os anos 80 são discos mais conectados com o pop rock, mas se pegar o primeiro já tinha um frevo, um samba.

O álbum “Amém”(1993) representa bem isso…
Isso. Um disco todo voltado para o candombe uruguaio. Em seguida fiz o “Hi-Fi”, que é um remember do folk dos anos 70. Depois vem umas coisas que são mais MPB… Enfim, (sou) um compositor sem estilo, eu diria (risos).

Pra fechar, eu estava procurando algumas coisas pra pauta dessa entrevista com você, e encontrei um texto de 1989 do jornal O Estado do Paraná, assinado por Aramis Millarch, cujo título é: “Nei Lisboa, o marginal assumido do som gaúcho”.
Eu lembro disso…

Você se considera, ainda hoje, um marginal, um maldito?
Não. Acho até que quem responde sim de imediato a isso está passando simplesmente a ser pretensioso. Não sei exatamente como o jornalista chegou nesse título, mas não é impossível que eu tenha colaborado. Esse período foi um momento muito ruim pra mim. 1989. Fazia um ano que eu tinha passado por um acidente de carro, em que minha namorada morreu… 1989 foi um ano de chutar muito o balde. Eu não estava muito conectado não e, provavelmente, eu estava me sentindo mesmo muito marginal.

Ainda hoje, relembrando a letra de “Hein?”: a vida é uma gangorra funcionando mal?
(risos) A vida é sempre um pouco de montanha russa, um sobe e desce, uma corrida, não tem muito descanso, trabalhando direto, ganhando meu pão, e tudo isso pra viver com um pequeno conforto. Não me faltam dentes (risos), mas é muito suado. Bom, peguei pelo lado a profissão, mas em todos esses sentidos a vida é (com voz de locutor) “uma caixinha de surpresas”.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

7 thoughts on “Entrevista: “Sou gaúcho, vivo no Rio Grande do Sul, mas não faço disso uma profissão”, diz Nei Lisboa

  1. Marcelo, muito provavelmente Nei Lisboa estava querendo se referir ao ‘candombe’ gênero musical afro-uruguaio, e não a ‘candomblé’, que é um culto religioso afro-brasileiro. Abraço.

  2. Bah! Valeu pela entrevista, Marcelo! Nei Lisboa é um baita artista!!! Tá certo, sou do Rio Grande do Sul – /o/… Tô só esperando pelo “A Vida Inteira”!

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