Ao vivo em Lisboa: Em 80 minutos triunfais, Jards Macalé desafia o público a voltar à 1972 com maestria e jovialidade

texto de Pedro Salgado, especial de Lisboa
fotos de Frances Rocha

Na Rua Nova do Carvalho, também conhecida como Rua Cor-De-Rosa, a noite era de agitação. Enquanto os turistas se amontoavam em esplanadas, aproveitando uma noite amena de domingo, consumindo bebidas espirituosas e gargalhando, uma fila não menos animada começava a formar-se na porta da Musicbox. O entusiasmo era patente no numeroso grupo de pessoas que aguardavam o momento de presenciar o show lisboeta da tour europeia de Jards Macalé e o ambiente na zona do Cais do Sodré estendeu-se gradualmente ao interior da sala.

Acompanhado dos seus jovens músicos, Macalé entrou no palco, agradeceu os aplausos, sentou-se, segurou no violão e desafiou o público: “Vamos a 1972?”. Sem demoras, a banda começou logo em seguida a carburar “Farinha do Desprezo”, do cultuado álbum homônimo de estreia do artista, num encontro jazzístico, roqueiro e sambístico que se renovou pela voz rouca do velho bardo carioca. Ao mesmo tempo, os versos “Já comi muito da farinha do desprezo, Não, não me diga mais que é cedo…” assumiram um significado duradouro e grudaram definitivamente na assistência.

Após tirar o seu chapéu e beber um gole de água, o artista serenou um pouco o andamento, mantendo o encanto, ocasião para comprovar a condução segura no baixo de Paulo Emmery, aliada às variações rítmicas do versátil baterista Thomas Harres e à dinâmica do guitarrista Guilherme Held, discípulo de Lanny Gordin, que marcaram todo o show, e no final da interpretação de “78 Rotações” a banda acelerou o passo provocando o entusiasmo geral. De seguida, Jards solicitou a participação do público: “Agora mais do que nunca preciso de vocês” e com o apelo veio “Mal Secreto” prolongando a cantoria num blues entusiasmante à qual juntou “Garota de Ipanema” e abriu caminho para o samba rock “Revendo Amigos” com direito a batida frenética de Thomas Harres.

O show estava ainda no começo, mas pairava no ar uma enorme saciedade por parte dos imensos fãs brasileiros e portugueses de Jards (que lotavam a Musicbox e aplaudiam ruidosamente). Além da celebração de cada canção, de uma letra particular ou de um solo bem executado, eles desejavam que aqueles momentos se prolongassem cada vez mais, deixando escapar, frequentemente, incentivos ou elogios como “Maravilhoso!”.

Um dos momentos mais interessantes da atuação resultou da sequência composta pelo single “Só Morto”, de 1970, no qual Jards Macalé guiou sabiamente o grupo para uma execução experimentalista e orgiástica e pelo clássico “Hotel das Estrelas”, que partiu da voz rouca e do dedilhado do músico carioca, quase suspendendo o tempo, e evoluiu para uma toada roqueira contagiante. A série foi concluída com “Vapor Barato” (apenas com Macalé e o guitarrista Guilherme Held em palco), numa abordagem simples e cativante que foi interrompida para deixar a audiência cantar em coro.

Sozinho no palco, Jards dirigiu-se ao público relembrando que se esqueceu do seu violão no hotel de uma cidade anterior, agradecendo a Antônio Vileroá por lhe ter emprestado dois violões e apresentou “Um Abraço do João”, uma canção que fez para homenagear João Gilberto (que, fora importãncia musical fenomenal, “salvou lhe a vida”, como contou ao jornalista André Barcinski no brilhante livro “Pavões Misteriosos”). Nela, Jards mostrou um empenho vocal e instrumental assinalável abrindo caminho para a emotividade poética de “Anjo Exterminador”. O set acústico encerrou com “Movimento dos Barcos”, já com a presença do baterista Thomas Harres, a qual foi transformada, gradualmente, numa cadência mais leve do que o átomo, mantendo a validade e o lirismo original.

Com o agrupamento reunido de novo, Jards Macalé investiu na música “Trevas”, uma boa recordação do álbum “Besta Fera” (2019), onde a doce cadência do samba rock, pontuada por breaks, doses leves de experimentalismo e um desfecho alucinante, representou outro dos grandes momentos da noite. Voltando ao álbum homônimo de 1972, na romântica “Meu Amor Me Agarra e Geme e Treme”, antecedida por um divertido grito de Tarzan, Jards rubricou uma interpretação plena de sentimento e na rendição de “Soluços” o mestre brasileiro reentrou no território roqueiro mostrando que ainda domina a arte de Hendrix, brilhando com os seus arrebatamentos e acalmias em simbiose perfeita com o trio que o acompanhou.

A atuação caminhava a passos largos para o fim, mas ainda houve tempo para manter a fruição no palco e na assistência em alta com a guturalidade e elegância instrumental de “Let’s Play That” e acelerar decididamente através do exercício libertador de “Farrapo Humano” (precedido de uma citação a Luiz Melodia), com direito a gritos repetidos de “Rock!”, um solo empolgado de bateria e uma saudação derradeira por parte do homem da noite aos seus músicos. Após o abraço coletivo, Jards Macalé agradeceu à assistência e o elenco retirou-se, ecoando na sala os pedidos insistentes para mais uma canção.

O regresso foi quase instantâneo e com ele escutou-se novamente “Farinha do Desprezo” transformando a Musicbox numa pista de dança e multiplicando os flashes de luz vindo dos celulares, na direção do palco. A festa continuava e o conjunto enveredava numa jam session demonstrativa do seu potencial, enquanto Jards Macalé encostava a boca junto do microfone cantando e deliciando o público até ao aplauso entusiástico que se propagou na sala e selou o show. No fundo, aquilo que se assistiu em Lisboa foram 80 minutos triunfais de um compositor carioca que, aos 81 anos, revisitou seu repertório com maestria e jovialidade, comprovando a relevância da sua visão musical.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.

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