Entrevista: Rúbia Divino fala sobre a música ser uma retomada de sua história ancestral

texto de Bruno Moraes
fotos de Ivana Cassuli

Projetos musicais como a obra de Rúbia Divino têm algumas camadas que fazem um sentido visceral para quem nasceu e vive a cultura multifacetada do Brasil. Muito além de seu canto de potência avassaladora, a compositora traz em seu trabalho elementos de maracatu, samba, baião e forró, que se equilibram com algumas pitadas de jazz e eventual presença de blues e rock. O foco, porém, é em ritmos brasileiros.

Essa mescla do contemporâneo com o tradicional, do estrangeiro com o nacional, embalam letras que também exacerbam brasilidade a cada sílaba, cada história, cada grito, metafórico ou real, que clama por um mundo melhor enquanto denuncia o mundo de agora. “Transborda”, seu primeiro álbum, foi lançado em 2021. Depois vieram os singles “Zona” (2023) e feats com Amanda Magalhães (“Mais Cedo, Mais Tarde”) e Castel (“O Alvo”).

O Scream & Yell teve a oportunidade de conversar com a artista após seu show no Festival Psicodália, onde ela contou sobre sua trajetória musical, espiritual e geográfica, e sobre como descobriu que a música e a religiosidade afrobrasileira estão costuradas no âmago da história de sua família.

Você participou então do segundo dia do Psicodália. Foi um show incrível, potente. Voz maravilhosa, mas não apenas. E a gente queria saber como se deu essa chegada ao Dália. É o seu primeiro, certo?
É o meu primeiro e foi uma experiência muito de abertura de caminhos mesmo. Não posso deixar de saudar Exu. Laroyê, Exu! Por abrir esses caminhos e me colocar nesse lugar, tocar com todas as pessoas que estão aqui dispostas a receber a mensagem que a gente tem pra trazer. Estou muito feliz.

Como foi bolar o repertório para esse show? Você trouxe alguns clássicos…
A gente está num processo de turnê do “Transborda” (o primeiro disco). Então, a gente fez toda uma construção de repertório. Tem músicas que, dependendo do lugar, a gente coloca no repertório e tem alguns lugares em que elas não tocam. Mas, assim, eu trago muito as minhas músicas autorais, que estão em discos e, inclusive, disponíveis no Spotify e nas demais plataformas de Streaming. Mas a gente também saúda outros artistas como Theodoro Nagô com “Preta Yayá”, que ficou muito conhecida na voz de Xênia França. Salve Xênia! E a gente trouxe, por exemplo, Douglas Germano com “Maria da Vila Matilde”, que é um manifesto. Costumo dizer que essa música é um manifesto, porque a gente está falando da guerrilha! A gente está falando da nossa afirmação como mulher, como humanidade. É legitimar as nossas humanidades, legitimar a luta que a gente tem diária como mulheres e pessoas periféricas, para conseguir dignidade. Que é o mínimo, né?

E que, infelizmente, é uma luta de séculos que continua sempre.
Exatamente, é isso. As pessoas às vezes têm até uma certa dificuldade, tipo “Ai, o som da Rúbia é muito político!”, mas eu não tenho como fugir muito disso. Eu não tenho como falar que eu sou uma mulher preta com pele clara… Com certeza eu tenho pra falar muitas camadas. Muitas coisas para além do racismo, para além das pautas raciais, com toda certeza. Porque as minhas subjetividades, elas existem. Mas eu vejo que o palco e um microfone na minha mão é uma oportunidade que eu tenho para trazer essa missão, da palavra. Então a missão é disseminar a palavra de forma muito consciente. Não é só entretenimento, tem todo um trabalho que é feito por trás disso para que a gente consiga chegar nesse resultado que, por exemplo, foi o show do Psicodália. E foi incrível!

Sim. Não é porque a gente está num clima de carnaval que questionamentos e pensamentos reais, dolorosamente reais, não possam vir também à tona. E te perguntar: como a música chegou na sua vida?
A música chegou na minha vida desde muito nova. Primeiro que venho de uma linhagem de sacerdotes que vieram do Congo, se instalaram no interior de Minas [Gerais] e vieram construindo. Isso é uma história muito velada dentro da família porque vem dessas religiões de matriz africana e a minha família foi pra uma outra questão de religiosidade. Mas é algo que me encontrou. Bateu em mim e não teve como: eu preciso resolver isso, eu preciso tratar isso como uma missão também. E não só! Viver com dignidade, como uma mulher preta fazendo esse corre. E ela chegou. Eu tinha nove anos de idade quando a música chegou pra mim. Cantando muito essa coisa da música dentro da Igreja, e aí depois ela foi pra um lugar de questionamento… Conservatório, estudando. E quando eu saí do Rio de Janeiro, com dezoito anos – sou carioca da gema, nascida e criada, cria de Irajá –, eu vim para o Paraná, onde estou, e vim descendo: Paranavaí, Maringá, Londrina, e agora atualmente estou em Curitiba. Muitos no Psicodália são pessoas que me conhecem há dez, onze anos. De trajetória, que vieram acompanhando desde lá.

A música é uma forma de você se manter viva e manter viva toda essa história de pessoas da sua família.
Sim! A música pra mim é uma questão de vitalidade. Essa coisa da energia criativa, de ser uma artista, compositora. Não só compositora, mas também abarcando essa posição de intérprete, que também é muito necessária, muito importante. Porque essas músicas acabam fazendo… Eu tomo elas para comigo. Elas acabam me pertencendo de alguma forma. Porque elas trazem aquilo: a música tem o poder de falar o que a gente não consegue dar nome. E ela também tem um poder muito grande de tensionar. Eu sou uma pessoa que as pessoas falam: “Ah, Rúbia… Qual a sua caixa? Qual a caixa na qual você está dentro das vertentes musicais?” Isso é muito louco, porque eu não consigo me encaixar. Porque eu preciso tensionar. A música, quando você a tensiona pra um lugar de tirar as pessoas da zona de conforto, isso é necessário. E eu acho que a música tem esse papel. A gente está aqui no Psicodália, mas assim… A gente tem músicas de diversos lugares no mundo, com diversas referências e fundamentos. Eu trago muita coisa da contemporaneidade e do jazz, mas eu trago muito da regionalidade, como o maracatu. Tanto que saúdo a Mestra Joana Cavalcante, porque fui batuqueira de maracatu durante muitos anos (em Maringá), e é dessa fonte que bebo muito também para a minha composição. Pras claves da minha música. Mas também tenho a Érica Silva [da banda curitibana Mulamba] fazendo todos os arranjos, para trazer também toda essa regionalidade e também um pouco do jazz. Que também faz parte da minha formação. Eu cresci muito escutando música instrumental. Meu pai me apresentou muito isso. De um lado contraposto com minha avó paterna, mãe de meu pai, me trazia muito samba. Então cresci muito nesse fundamento do samba-jazz. E levei ele até um tempo e depois eu fui agregando outras coisas pra dentro do balaio, sabe? Que foram extremamente necessárias, e que agradeço muito, porque deixou muito mais rico o mosaico musical.

– Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical.

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