Balanço: Festival Cineamazônia 2016

por Lui Machado

Encravado num dos estados menos conhecidos do resto do país, um festival de cinema tem se destacado nos últimos 14 anos como um dos principais – se não o principal – festivais cuja temática incorpora o meio ambiente como decisivo para sua existência. O festival se chama Cineamazônia, ocorre em Porto Velho, capital de Rondônia, e tem sido um bastião de resistência cultural, ativismo social e reflexões políticas em tempos de obscurantismos e guinadas à direita da sociedade brasileira.

Em 2016, a edição foi realizada entre os dias 22 e 26 de novembro. Logo na abertura, o ator Marcos Winter homenageou três mulheres ameaçadas de morte no estado por conta de uma luta protagonizada em prol da posse da terra. Também pediu um minuto de silêncio em nome de Nilce Magalhães, liderança comunitária que se opunha a barragens de hidrelétricas no estado. Nilce foi assassinada no início do ano.

“O ano ainda não terminou, mas 27 pessoas já foram assassinadas em Rondônia, lutando por um pedaço de chão e lutando pelo direito à agua. Nesse exato momento pelo menos 23 pessoas no estado estão ameaçadas de morte. E, no Brasil, ameaças de morte não ficam apenas na promessa”, disse Winter, arrancando fortes aplausos da plateia.

Winter destacou o cenário de intolerâncias político e religiosas espalhadas pelo mundo que está, segundo o ator, “cinzento, sem cores”. Winter citou ainda pensadores humanistas como o português Boaventura de Sousa Santos e o norte-americano Noam Chomsky para enfatizar os “tempos estranhos e sombrios que o mundo vive nos dias de hoje”.

A abertura do Cineamazônia 2016 ocorreu no Teatro Banzeiros, no centro de Porto Velho. Muita gente precisou ficar de pé, já que a lotação esgotou. A intensa participação do público chegou a surpreender a representante do BNDES, Renata Riski. “Há sete anos patrocinamos o Cineamazônia e percebemos cada vez mais a importância que o festival tem como disseminador da cultura. E isso tem tudo a ver com a nossa filosofia”, enfatizou.

O filme que iniciou a maratona de exibições foi “Rondon, o Desbravador do Brasil”, longa, protagonizado por Nelson Xavier que tem uma importância simbólica para o festival. É uma produção de Mato Grosso, ou seja, um filme que colocou o estado no mapa da produção audiovisual brasileira, graças às políticas de incentivo cultural abertas pela Agência Nacional do Cinema, a Ancine. Recentemente, Fernanda Kopanakis e Jurandir Costa, organizadores do festival, aprovaram um longa de ficção, o primeiro da produtora Espaço e o primeiro de Rondônia. O filme se chama “Perdidos” e tem roteiro de Ismael Machado.

No segundo dia foi exibido o documentário “Martírios”, de Vincent Carelli, que se tornaria o vencedor do Troféu Mapinguari, como melhor longa-documentário. O filme de Carelli é uma produção pernambucana que mostra a progressiva situação de genocídio vivida pelos índios kaiowá e guarani. Ao todo, o festival distribuiu, ao final da mostra competitiva, 15 prêmios entre 44 selecionados para concorrer ao Troféu Mapinguari. Este ano foram mais de 400 inscrições para o Cineamazônia.

Além da mostra competitiva, o Cineamazônia também se difere de outros festivais do gênero por suplantar a mera exibição de filmes. Duas oficinas foram ministradas: “Cinema na Escola: ver e fazer” e “Cinema de uma pessoa só”, que mesmo com intenções diferentes apontam o mesmo caminho, o do acesso, da democratização e da plena iniciativa de contar suas próprias histórias fazendo cinema. A primeira oficina foi dada pela fotógrafa Bete Bullara e a segunda pelo cineasta Gustavo Spolidoro.

A programação paralela ainda destacou o debate “É de poesia que o mundo precisa”, com escritores e cineastas debatendo o papel da literatura no mundo atual. Na edição 2016, os debatedores foram o poeta português José Luiz Peixoto, o escritor Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”, o cineasta Sergio Santeiro e o militante indígena Ailton Krenak.

Krenak, inclusive, foi um dos homenageados dessa edição do Cineamazônia. Um dos grandes momentos da homenagem feita à liderança indígena ocorreu quando foram exibidos trechos seu histórico discurso na Comissão Constituinte em 1987. Na ocasião, um ainda jovem Krenak falou emocionado que a Constituição de 1988 seria um retrocesso para os índios, enquanto pintava o rosto de negro, como luto. Logo depois das imagens exibidas no telão, o ator Marcos Winter repetiu o gesto de Krenak e pintou o rosto de branco, enquanto anunciava o homenageado.

Outro grande diferencial do Cineamazônia são eventos como o Cinema no Circo e o Cinema no Terreiro. No primeiro, além da exibição de filmes, há uma apresentação circense. Este ano o palhaço foi Xuxu, personagem criado pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos, e o espetáculo “Silêncio Total”.

Desde 2006 que o Cineamazônia abre espaço para filmes que contenham como pano de fundo a história de religiões afro e, principalmente, sem estereótipos, preconceitos e ideias superficiais. Uma atividade cada vez mais necessária na sociedade atual. Para a edição 2016, a programação incluiu duas produções recentes. “Icandomblé” é um documentário carioca de 16 minutos, dirigido por João Velho e que mostra a tensão entre tradição e inovação nas comunidades do candomblé brasileiro, em meio à crescente troca em âmbito global de saberes e ritos da religião dos orixás por sacerdotes de diferentes países. O filme tem como objeto central algumas das iniciativas recentes de recuperação do lendário culto do oráculo sagrado de Ifá, que havia se perdido no candomblé do Brasil, mas que havia sobrevivido principalmente na Nigéria e na santeria de Cuba.

O momento mais significativo, no entanto, foi o encerramento do festival, com a homenagem ao ator Milton Gonçalves. Do final dos anos 50 até hoje, Milton se tornou um dos mais respeitados atores nacionais, com passagens marcantes pelo cinema, teatro e televisão. Só no cinema são cerca de 70 filmes, de todos os gêneros. De clássicos como “Eles não usam Black tie” e “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, a produções infanto-juvenis, comedias, cults e participações em filmes internacionais. Com “Rainha Diaba”, filme da década de 70, ganhou os quatro principais prêmios de cinema existentes à época. E foi o primeiro brasileiro a apresentar o Emmy, em 2006. O Aplaudido de pé por todos os presentes, Milton fez um discurso emocionado, lembrando a mulher, morta há três anos, justamente no ano em que o casal completava 50 anos de casados.

O festival foi encerrado com um show de Arthur Maia, o contrabaixista que é uma referência do instrumento no Brasil. Maia alternou músicas instrumentais com outras cantadas, parcerias com nomes como Djavan, por exemplo. O show teve a participação especial do cantor rondoniense Bado. Em 2017 tem mais Cineamazônia.

– Lui Machado é jornalista e roteirista do documentário “Território Entre Fronteiras”. Já colaborou com Caros Amigos, Brasil de Fato e Amazônia Real.

Leia também:
– Diário: Cineamazônia Itinerante (aqui)
– Entrevista: Jurandir Costa, do Cineamazônia Itinerante (aqui)

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