Entrevista: “Meu objetivo (com ‘As Orfãs da Rainha’) sempre foi de tocar nas pessoas de uma forma mais ampla”, diz Elza Cataldo

entrevista de João Paulo Barreto

Existe um elemento imprescindível no cinema que é a sua capacidade de transportar sua audiência para o universo no qual a trama de um filme se passa. Uma vez que a união de elementos como roteiro, direção, direção de arte, figurino, música e atuações entrem em uníssono, o modo como se torna perceptível esse elemento, essa citada capacidade da obra de locomover seu público para seu espaço fílmico, é recebida pelo espectador atento com regozijo. Conseguir tal intento não é fácil, porém. Requer paciência, treino, dedicação e um olhar apurado de pessoas que são chave em uma produção cinematográfica. “As Órfãs da Rainha” (2023), novo filme da cineasta Elza Cataldo, que conta com a direção de arte de Moacyr Gramacho, é um exemplo dessa conjunção feliz de fatores.

Situado no Recôncavo Baiano do século XVI, o longa capta de modo extremamente orgânico essa capacidade do cinema de nos colocar junto aos seus personagens. Seja por texturas palpáveis de elementos de cena, bem como pelo uso consciente de silêncios de maneira a criar uma atmosfera mais intimista, ou pela carga dramática envolvendo os arcos e traumas de suas figuras centrais, “As Órfãs da Rainha” concebe essa sensação para o público em uma identificação natural com os dramas e dores de suas três protagonistas, nos envolvendo nos pungentes aspectos femininos de sua trama.

Escrito pela própria diretora Elza Cataldo, em parceria com Pilar Fazito e Newton Cannito, o filme apresenta em sua abertura as irmãs Leonor (Letícia Persiles), Brites (Rita Batata) e Mécia (Camila Botelho), que são enviadas pela rainha de Portugal para o Brasil colônia no intuito de se casarem. O duro choque de realidades, juntamente ao ambiente machista e patriarcal, repleto de violência sexual oriunda de uma masculinidade tóxica, torna aquela jornada um calvário para as três jovens. E isso é algo que se amplia exponencialmente com a chegada da inquisição religiosa e suas perseguições.

Em sua pesquisa sobre a inquisição no Brasil, Elza, que além de diretora e roteirista, foi professora da UFMG e defendeu sua tese de doutorado em Sorbonne, na França, mergulhou em um longo período de estudos. O resultado é de uma precisão e cuidado perceptíveis na abordagem religiosa tanto dos aspectos católicos quando judaicos. “Há quase dez anos, eu me deparei com um verbete em um livro, o Dicionário do Brasil Colonial, do Ronaldo Vainfas”, relembra Elza. “O verbete era sobre as órfãs da rainha. Achei um título instigante. Com isso, comecei uma longa pesquisa sobre a inquisição. Tive que ir à Espanha, a Portugal, e morei na Bahia por quase dois anos para me inteirar, porque a inquisição, factualmente, chega a Salvador e, depois, vai para o Recôncavo. É um tema muito complexo, com três protagonistas e várias camadas de história, de narrativa. Com isso, eu tive que realmente mergulhar naquele contexto histórico para que pudesse retirar dele um drama histórico ficcional”, pontua a cineasta.

Na história, o trio de roteiristas aborda aspectos denunciatórios de um período no qual a mulher era vista como mercadoria, como algo pertencente ao homem em vários aspectos. E nesse sentido, o filme traz de maneira densa a questão das violências pelas quais passam aquelas personagens. E é em uma cena densa e dolorosa que um estupro é colocado em destaque. Como diretora, Elza Cataldo destaca seu cuidado em abordar aquele momento. “Eu me aproximei daquelas mulheres em um sentido muito visceral. Queria muito entender o que elas sentiram com essa relação com o homem, com a questão feminina, com a questão da violência contra a mulher, o que elas sentiram ao passar aquilo. Procurei através de cada uma delas, em situações bem diferentes, o que elas poderiam ter vivido”, destaca Elza.

A cena em questão traz uma opção crucial de ângulo de câmera, com um plongée (quando a imagem é captada de cima para baixo) que lhe concede uma aspereza ainda mais brutal, mas nem um pouco gratuita. “A Brites com um marido violento que retrata os homens com essa masculinidade tóxica, com a questão do patriarcado, com a questão da posse sobre o corpo da mulher. Ela se submete àquilo por acreditar que aquela era a sua missão, que era o papel, o trabalho dela. Aquilo que a igreja católica queria e que ela se imbuiu e foi com aquilo até o final, por mais sofrido que tenha sido. A cena do estupro, o plongée, era uma tentativa de mostrar ela. Não me interessava ver a crueza, a violência especificamente daquele homem. Eu queria entender sobre ela, a partir do seu olhar, o que estava acontecendo ali no corpo dela. Por isso eu fiz um plongée”, detalha Elza.

A citada precisão na reconstituição de época, a partir da direção de arte de Moacyr Gramacho, também é um destaque de “As Órfãs da Rainha”, algo que, nesse uníssono de ideias, conseguiu captar essa necessária organicidade e rimar a Arte com os silêncios perceptíveis de modo natural, como um elemento fílmico diegético. Elza explica: “A organicidade é o essencial da nossa arte, de toda a reconstituição nossa. E a direção de arte está entendendo não só a questão d acenografia, como a questão do figurino e tudo que indica, ali, uma reconstituição histórica. Você usou a palavra que eu mais gosto. Uma palavra que eu uso, eu tendo usar, mas você usou antes de mim, e eu fico feliz que isso tenha acontecido: organicidade. A gente a buscou o tempo todo”.

Para o espectador atento, é bem recompensador perceber a conjunção exata que o resultado dessa união de mentes traz. Em um filme cujo ritmo destoa tanto de um acelerado cinema atual, de cortes rápidos e hermético, é ótimo adentrar em um trabalho que te convida a outro meio de reflexão e que prima por essa capacidade de te deslocar no tempo por duas horas. Nesse papo com o Scream & Yell, Elza detalha mais como se deu todo o processo que, agora, se concretiza com o filme. Confira!

Leia também entrevista com o diretor de arte Moacyr Gramacho, e o seu assistente Erick Saboya

“As Órfãs da Rainha” finalmente estreia após um longo período no qual você realizou uma extensa pesquisa. Poderia falar um pouco sobre como se deu processo e como foi seu embrião?
O projeto de fazer um filme, em geral, é longo. Principalmente um filme histórico. Há quase dez anos (ou até mesmo há mais de dez anos), eu me deparei com um verbete em um livro, o Dicionário do Brasil Colonial, do Ronaldo Vainfas, sobre as órfãs da rainha. Naquele momento ali, eu entendi que seria um bom título de um filme. Um título instigante, como acho até hoje. Com isso, comecei uma longa pesquisa sobre a inquisição. Tive que ir à Espanha, a Portugal, e morei na Bahia por quase dois anos para me inteirar, porque a inquisição, factualmente, chega a Salvador e, depois, vai para o Recôncavo. É um tema muito complexo, com três protagonistas e várias camadas de história, de narrativa. Com isso, eu tive que realmente mergulhar naquele contexto histórico para que pudesse retirar dele um drama histórico ficcional. Porque, afinal, é ficção. Mas, embora seja ficção, ele está totalmente inspirado e embasado nessa pesquisa factual e histórica. A questão dos anos de pré produção tem a ver com a viabilização do filme. Estou falando em termos de viabilização financeira, porque eu sou produtora, também. Tive que fazer uma estratégia de forma que pudesse caminhar etapa por etapa. E foi assim que eu consegui fazer. Comecei com a lei estadual de Incentivo à Cultura, em 2017. Quando entra o primeiro orçamento do filme, a primeira viabilização financeira, é que a gente começa a contar de uma forma mais concreta. Anteriormente, foi pesquisa. Foram vários tratamentos do roteiro até chegar em 2017, quando consegui o primeiro aporte de patrocínio, que foi via lei estadual de Incentivo à Cultura com a empresa Energisa. Com esse aporte, começamos realmente em termos de equipe.

É bem perceptível na história a importância do conceito visual daquele lugar que, no filme, representa o Recôncavo Baiano do século XVI. Na direção de arte, você contou com o experiente cenógrafo e arquiteto, Moacyr Gramacho. Como foi essa parceria?
Quando convidei o Moacyr Gramacho, que, por sua vez, convidou a equipe dele, trazendo o Erick Saboya, o Luiz Parras e a Renata Marques, eles começaram a se inserir dentro do processo. Foi quando tomamos uma decisão muito pertinente para a história que queríamos contar: nós decidimos construir uma cidade cenográfica, processo que levou dois anos para ser concluído. A partir daí é que vieram os editais da Ancine, do FSA, do BRDE. Em 2017, começamos a construção da cidade cenográfica, que foi uma construção bastante complexa. Para isso, eu contei com o talento e a competência do Moacyr e dessa equipe da Bahia. O Mooca, além de toda a competência conceitual, de pesquisa, de mergulho, a profundidade que ele tem enquanto profissional, ele era, também, muito importante porque ele trazia a Bahia para o filme. A gente acabou fazendo o filme em uma pequena cidade no interior de Minas Gerais chamada Tocantins. Uma localidade bem pequena e, não por acaso, a minha cidade natal. Então, eu falo que eu peregrinei muito com esse filme. Eu fui para o Rio, fui para a Bahia, até que fui fazer um filme não só em Minas Gerais, que é o meu estado, como na minha cidade natal, a cidade de meu pai. Lá, eu tive a oportunidade de ter uma fazenda à nossa disposição através de uma atitude generosa de um proprietário. Acabou que foi lá que a gente construiu essa cidade cenográfica. E tivemos o tempo para fazer isso. Porque o tempo, apesar de ser um tempo cruel para quem está ali, principalmente para mim que estou há anos e anos, ele tem benefícios, também. O tempo, para a nossa cidade cenográfica, trouxe a verdade. Tem musgo, tem planta que desce pelo telhado. A região é muito úmida e, com isso, floresceu muita coisa naquele período. Acabou que nos dois anos de construção da cidade cenográfica, a capela ficou muito mais orgânica. Isso trouxe uma verdade, também. E pouca gente entende que é uma cidade cenográfica. Muita gente, quando eu falo, se espanta um pouco. Mas é porque a gente optou, também, por uma metodologia que unia a construção civil e a cenografia. Tanto é que, até hoje, grande parte dela está lá de pé. Ficou firme. Ficou verdadeira. Era isso que a gente queria.

Fisicamente, é bem perceptível o equilíbrio de seu trabalho e o de Moacyr com sua equipe. É algo que me fez penetrar naquele período de um modo muito orgânico, muito espontâneo. É difícil conseguir esse resultado na recriação de época com tamanha organicidade, principalmente por existir poucas imagens. Como foi esse processo de pesquisa?
Eu acho que você captou o essencial da nossa arte, de toda a reconstituição nossa. E a direção de arte está entendendo não só a questão da cenografia, como a questão do figurino e tudo que indica, ali, uma reconstituição histórica. Você usou a palavra que eu mais gosto. Uma palavra que uso, eu tendo usar, mas você usou antes de mim, e fico feliz que isso tenha acontecido: organicidade. A gente buscou essa organicidade o tempo todo. Aquelas paredes foram todas feita à mão. O filme tem uma coisa artesanal muito forte. Elas foram todas construídas com a mão humana, como era na época. Trouxemos os materiais que, também, eram usados na época. Trouxemos para os telhados o sapê, que também era usado na época. O trançado do sapê era exatamente dessa forma que a gente fez? Possivelmente não, porque não temos dado histórico mais detalhado. Mas o resultado era aquele. Para a pesquisa iconográfica, foi bem complicado porque não tínhamos uma iconografia brasileira sobre o período. É um período no qual não tínhamos representação pictórica. A gente vai ter com Hans Staden no livro dele alguns desenhos na questão indígena, de tribos e que, também, serviu de referência para alguns momentos do filme. Mas a gente não tinha, por exemplo, o que começamos a ter no início do século XVII com Frans Post. Quando ele chegou, no período de Nassau, em Pernambuco, ele retratou de uma forma bem detalhada o Brasil da época, do século XVII. A gente estabeleceu a hipótese de que, no final do século XVI para o XVII, não teriam ocorrido tantas mudanças significativas na forma de construir, na forma de usar os materiais. Então, o Frans Post foi uma grande referência para nós. Era a única referência iconográfica possível que a gente tinha. E fizemos algumas adaptações para ficar mais rústico, para ficar mais tosco, para ficar mais “selvagem”, do jeito que deveria ser no século XVI. Tivemos muito cuidado com essa pesquisa de como construir, do que construir, qual material usar. Mas, é um filme. Então, o que nos interessava é o resultado estético disso. A ambiência, a sensação que a pessoa vai ter ao ver aquela imagem. A sensação de pertencimento naquela imagem. De entender, de entrar. E, ao mesmo tempo, uma sensação de estranhamento. A palavra estranhamento é uma palavra da qual eu gosto muito, também. De causar na pessoa o estranhamento que causaria àquelas órfãs da rainha ao chegar ao Brasil no século XVI. Tanto é que, quando o filme começa depois dos créditos e que começa com elas chegando a Vila Morena, tem um desamparo ali nelas por estar naquele lugar tão inóspito, tão selvagem. Elas eram criadas na corte. Então, o meu desejo era que, como elas, o espectador chegasse, também, naquele lugar.

Seu filme aborda de maneira forte a questão feminina. A ideia de trazer de modo tão pungente a questão do abuso, a questão da masculinidade tóxica, daquela sociedade patriarcal, na qual as mulheres eram consideradas mercadorias pertencentes àqueles homens. A cena do estupro, quando você opta por captá-la naquele ângulo plongée, é uma cena bem forte nesse sentido, para mostrar como o asco daquele momento era perceptível. Foi doloroso para você como diretora e co-roteirista abordar esses aspectos relacionados à violência?
Embora eu estivesse já há alguns anos pesquisando de uma forma mais objetiva, como te falei, em outros países como Espanha e Portugal, e também nos mais de trezentos livros que li para escrever o roteiro junto com Pilar (Fazito) e com o Newton (Cannito), o que sinto para te dizer é o seguinte: o roteiro vem de um sentimento. E estou usando o verbo não por acaso. Uma tentativa, e acredito que em alguns momentos de uma forma bem-sucedida, de me aproximar daquelas mulheres. E eu me aproximei daquelas mulheres em um sentido muito visceral, também. Eu queria muito entender o que elas sentiram. O que elas sentiam com essa relação com o homem, com a questão feminina, com a questão da violência contra a mulher, o que elas sentiram ao passar aquilo. Procurei através de cada uma delas, em situações bem diferentes, o que elas poderiam ter vivido. A Brites com um marido violento, muito violento. E que retrata os homens com essa masculinidade tóxica, com a questão do patriarcado, com a questão da posse sobre o corpo da mulher. E se apresenta essa mulher, que se submete àquilo por acreditar que aquela era sua missão dela, o trabalho dela, o papel dela. Aquilo que a igreja católica queria e que ela se imbuiu e foi com aquilo até o final, por mais sofrido que tenha sido. Então, a cena do estupro, o plongée que você observou muito bem, era uma tentativa de mostrar ela. Não me interessava ver a crueza, a violência especificamente daquele homem. Eu queria entender sobre ela, a partir do olhar dela, o que estava acontecendo ali no corpo dela. E por isso eu fiz um plongée. É muito interessante que quando você escreve e dirige ao mesmo tempo, você escreve e já vai pensando na direção. Então, aquele ângulo da câmera ali, a colocação daquela câmera ali, desde o início, eu falei com a diretora de fotografia, a Fernanda Tanaka, também uma mulher, que eu queria um plongée ali. Acho que é isso que vai mostrar o corpo dela por inteiro e a sua reação visceral àquela violência que estava sofrendo. Depois, mesmo no caso da Brites, quando ele bate nela, eu não mostrei. A câmera ficou do lado de fora da casa. A gente só escuta os ruídos. A violência vem pelo som. E posso te dizer que, enquanto diretora ali, mesmo captando somente o áudio, eu, Rita Batata, Alexandre Cioletti, que eram os atores, e mais o Gustavo, que era o técnico de áudio, só nós dentro da casa, e eu trazendo para eles a situação daquela cena. E vou te falar: ficamos muito emocionados de captar o áudio. Somente o áudio. Era uma coisa muito forte para nós. Para nós, enquanto mulheres ali, Rita e eu, e para o Alexandre, que é um homem contemporâneo, um homem que tem toda uma visão crítica, também, a essa questão da violência, foi difícil para ele fazer o Thales. Tanto é que tem uma coisa muito bonita que aconteceu no processo que o Alexandre e a Rita estabeleceram, uma relação muito próxima entre eles: antes de começar a cena, eles se abraçaram. Porque sabiam que a cena ia ser muito violenta. Eles se abraçavam, estabeleciam uma conexão entre eles e faziam a cena violenta. Principalmente a cena do estupro que foi bem difícil de ser filmada. Eles faziam aquelas cenas violentas, quando cortava pela última vez, eles se abraçavam de novo. Eles se reconhecem ali como seres humanos sensíveis àquela situação.

A personagem da Mécia possui aquela deformação no pé e você cria uma rima visual muito eficiente com aquela imagem da fruta-do-conde, que aqui na Bahia é conhecida como pinha. Fiquei com impressão daquilo ser resultado de um enfaixamento, por exemplo. E a situação física da personagem acaba por delinear muito bem sua personalidade.
O caso do pé da Mécia é, também, muito interessante. A Mécia tinha uma deficiência no pé, que não fica muito claro na história se seria ali uma questão, como você falou, de enfaixamento, de alguma coisa ligada a alguma ação que ela teria feito. Mas eu acho, na minha concepção, mesmo não sendo algo que apareça no filme, acho que era uma coisa de nascença. Ela teria nascido daquele jeito. E o fato dela ter nascido daquele jeito, coloca uma força maior porque as mulheres com um tipo de deficiência física eram consideradas amaldiçoadas. E essas mulheres não se casavam. Eles falavam que esse tipo de mulher trazia maldição para dentro de casa. Então, a Mécia acaba não se casando por isso. E por isso também a relação dela com um indígena, que via aquilo de uma outra forma. Você fez uma rima visual muito interessante, que era a minha intenção também na questão da fruta do conde, que é áspera, enrugada, quase como uma coisa deformada. E o pé da Mécia era deformado. E tinha uma dor também naquilo quando ela andava. Então, a Mécia, com a relação dela com o indígena, eu quis retratar um outro tipo de homem. Eu quis colocar também uma relação do judeu. Busquei uma relação com conhecimento. Tem uma parte que eu gosto muito que é a hora em que ele fala com ela: “Aqui, nessa casa, a senhora não precisa esconder vossas leituras.” Isso é uma coisa muito próxima à comunidade judaica, que é a questão do conhecimento. Eles têm um respeito muito grande para com a questão da cultura, do conhecimento, da informação. Então, a Leonor, a gente poderia dizer que ela teve uma sorte muito melhor. Como Dona Ana falou para Brites, quando disse que ela não teve sorte no casamento. A Brites, realmente, não teve.

 

É sempre um caminho delicado o de abordar a religião, seja ela qual for. E é bem notável como você traz os aspectos judaicos ao roteiro e ao filme. Do mesmo modo, mesmo havendo necessário o olhar crítico contra a inquisição e suas perseguições, a religião católica não é colocada contra a judaica aqui. Como você criou essa estrutura de abordagens de temas tão delicados?
Eu tive muito cuidado na pesquisa da questão judaica. Exatamente porque eu não sou judia, eu sou católica. E até falei isso quando apresentei o filme para a comunidade judaica em uma sessão que foi muito linda, muito emocionante. É até meio misterioso esse meu interesse por essa questão, porque eu venho de uma família católica. Mas não é porque eu venho de uma família católica, não é porque eu seja católica, que eu não seja crítica em relação ao que aconteceu com a crueldade da inquisição. O meu olhar sobre a inquisição é um olhar crítico, obviamente. Eu não poderia mostrar aquilo de outra forma. Embora seja sempre bom lembrar que o inquisidor, aqueles que trabalhavam na inquisição, eles acreditavam naquilo. Eles tinham aquilo ali como dogma, mesmo, e acreditavam que estavam fazendo o certo. Mas houve um processo muito cruel de perseguição, de ruptura muito grande por onde a inquisição passou. Uma ruptura dos laços familiares, dos laços amorosos, dos laços comerciais. Onde passava a inquisição, rompia-se o tecido social. Isso aí é uma coisa que eu entendi muito bem estudando a obra do Ronaldo Vainfas, que é um dos grandes especialistas da inquisição no Brasil. Ele é, também, consultor do filme, e me trouxe essa obra super profunda, principalmente no livro chamado “Confissões da Bahia”. Ele traz essa análise e, também, traz aquilo que foi falado diante do inquisidor. Porque a inquisição passou e por onde passou ela perseguiu e registrou. No Brasil, ela registrou nove livros de confissões e denunciações. Desses nove, ficaram quatro. O Ronaldo trabalhou especialmente no chamado “Confissões da Bahia”, que era um desses livros. E ele fez uma coisa muito importante para mim, claro, para o contexto todo de conhecimento histórico do Brasil. Porque ele adaptou a linguagem do século XVI a uma linguagem compreensível hoje. E essa foi uma opção que eu fiz de linguagem. Eu queria uma linguagem que fosse compreendida atualmente. Então, o filme é falado em um português praticamente atual. Só tem algumas palavras, como “cousa”, que é algo que de vez em quando aparece para trazer um pequeno estranhamento. Mas é uma linguagem atual. Porque o meu objetivo sempre foi de tocar nas pessoas de uma forma mais ampla. Que não precisasse a pessoa conhecer a história da inquisição para que entendesse o filme. Porque o que precisa ser entendido da inquisição para aquela trama, para aquele arco dramático, estaria contido no próprio filme. Então, eu procurei trazer, por exemplo, o monitório. O que era considerado heresia? A gente lista isso. A carta de monitório é lida. Ela mostra o quanto que é quase surrealista e incompreensível você perseguir uma pessoa porque ela coloca roupas limpas aos sábados. Isso era um indício do judaísmo, de atos judaizantes. O que é bom também a gente lembrar que a questão não era ser cristão novo. Ser cristão novo era uma coisa que foi, de uma certa forma, legalizado. Porque eles foram batizados à força. Então, estavam ali na condição que Portugal os colocou. Acontece que o problema eram os atos judaizantes. Era você ser cristão novo e continuar a professar a religião judaica em segredo. Esta que era a grande questão. E na carta do monitório vem os indícios da religião judaica, como, por exemplo, matar o frango daquela forma. E eu mostro isso. O legal do cinema, também, é que a gente conta visualmente. Então, na primeira parte do filme acontecem coisas que a gente vai inserindo ali na vida delas, nessa difícil adaptação delas ao novo mundo. Depois, nós vamos perceber que aquele ali é o objeto da inquisição. Agora, eu me cerquei muito de consultores. Tive consultoria de Ronado Vainfas sobre a inquisição, tive consultoria da Mary Del Priori sobre a história das mulheres, consultoria da língua latina, da questão indígena, e uma consultoria muito importante foi a do rabino Uri Lam, que é um rabino que nos orientou com relação às rezas judaicas e aos ritos judaicos.

O filme usa os silêncios como um dos elementos narrativos, bem como você opta por não usar uma trilha sonora incidental para demarcar cenas de maneira manipuladora do espectador. E isso ajuda muito na criação do ritmo que falamos anteriormente.
Mais uma vez você pegou em um ponto muito importante. Quando pensei na concepção da trilha sonora, quando eu fui conversar com o David Tygel, que é o nosso diretor musical, sobre o conceito musical do filme, eu falei que não queria uma trilha ilustrativa. Não quero uma trilha… você falou a palavra manipuladora, ou condutora do espectador. Não quero que a trilha conduza. Eu gostaria que a própria ação dramática trouxesse esse sentimento. Com isso, você tem um ritmo. Não vamos esquecer, também, que esse é um filme, embora seja com um tema cruel, complexo o bastante, e até visceral em alguns momentos, mas ele pretende, também, ter um olhar mais delicado sobre isso. E essa delicadeza vem através de algo que… (pausa) A gente poderia chamar ou não assim, pois é uma coisa polêmica, mas poderíamos dizer ou não que ela vem com a direção feminina, que é sempre uma coisa um pouco polêmica. Mas vamos dizer que seria uma tentativa de fazer uma direção mais delicada, se você me permitir esse termo, e uma direção que desse a chance ao espectador de ver, de contemplar a imagem. E não de ser atropelado por um ritmo muito forte e que uma cena passasse muito rápido para a outra. Então, o silêncio foi, também, um elemento de dramaturgia do filme. Naquele momento em que a Mécia vai para a floresta, quando ela fica contemplativa, pois a Mécia tem um pouco essa função de contemplação, aquilo ali eu deixo o espectador ir junto com ela. Sentir junto àquela floresta. Para que depois, aos poucos, venha uma trilha, mas sempre uma coisa muito delicada, para poder trazer essa sensação. E sempre, também, tentando não ficar pegando o espectador pela mão, não ficar puxando o espectador. Deixa-lo entrar naquele ritmo e entender. Porque nós estamos falando do século XVI. O espectador tem que ter o tempo dele ali, também, para entrar naquele tempo tão remoto. Então, a nossa reconstituição foi toda pensada nisso e a direção, também. Está tudo junto. Porque a direção de arte vem à serviço de uma determinada concepção mais geral. A trilha, também. O figurino, também. Tudo tem que conversar. E eu sempre procuro conversar com os vários departamentos e, também, não perder – e isso é uma coisa importante – o foco que eu tinha imaginado desde o início. Porque se perdemos o foco no momento da captação da imagem, do áudio, a gente, depois, não tem o filme que queremos fazer. Então, ali, tem que ficar bastante firme naquele propósito de deixar a coisa vir e ter esse tempo.

É bem perceptível essa questão que você fala de alcançar o tempo exato do filme em cenas como a que você consegue captar emoções genuínas, como a da criança nativa que chora.
Sim, a criança curumim. Aquela cena em que a Brites o coloca ali naquele lugar e que depois vem o porco e ele é levado. Aquela é uma criança indígena que nem falava português. Todas aquelas crianças são de tribos que não falam português. Foi necessária uma pessoa que me ajudou na tradução com aquelas crianças. E quando a Brites o colocou ali, por sorte ele não correu. E ele chora. Aquele choro permanece um tempo. Até foi difícil para mim como diretora deixar uma criança chorando na minha frente. Mas como não tinha ninguém batendo nele, não tinha nada acontecendo de cruel, ele só estava assustado, eu decidi manter um pouquinho. Depois que cortou a cena, a mãe veio, acolheu a criança e em um instante ela parou de chorar. Mas aquele choro dele ali é muito impactante. E aí você tem que ter o tempo do choro. Então, realmente, o filme foi pensando para dar esse tempo para a pessoa entrar naquele universo.

E a escolha dos efeitos digitais a representar o imaginário do estrangeiro sobre o Brasil? Como você chegou àquele resultado de inserções digitais sobre as cenas?
O que ajudou nesse processo que foi complexo, como você pode imaginar, foi que eu trabalhei com os técnicos de efeitos digitais muito antes. Nós começamos a trabalhar aquela concepção de efeitos no roteiro. E em alguns momentos eles me acompanharam nas filmagens, também. O conceito, que você captou muito bem, era o imaginário do século XVI sobre o Brasil. Leonor era uma mulher que sabia ler e escrever. Ela foi criada na corte. Então, ela teve esse tipo de situação, de privilégio, pois ela foi criada tendo à sua disposição a biblioteca da corte. E ela lia muito, algo que já era excepcional para uma mulher da época. Ela lia e escrevia. Aquele texto foi inspirado de cronistas da época que viam o Brasil daquele jeito. Então, esses efeitos foram feitos sempre com a voz em off da Leonor. A Leonor é quem traz aquele imaginário, que é o do europeu sobre o novo mundo. Eles achavam que era o que estava ali. E a gente criou aquelas figuras com uma liberdade, porque aí, sim, é uma criação. Queríamos que fosse como Leonor conseguiria até desenhar ou visse desenhado. Porque esse livro do Hans Staden, do século XVI, chegou a Portugal. Foi, inclusive, um livro muito lido e muito visto. E os desenhos eram muito toscos. Então, eu procurei incorporar àqueles efeitos as referências estéticas que eles tinham sobre o Brasil.

Leia também entrevista com o diretor de arte Moacyr Gramacho, e o seu assistente Erick Saboya

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.