Bem humorado e galhofeiro, “Truque”, novo disco de Clarice Falcão, também mostra uma vulnerabilidade interessante

texto por Renan Guerra

Clarice Falcão fez uma curva bastante interessante e ousada quando lançou o disco “Tem Conserto” (2019), deixando de lado o formato voz-e-violão e embarcando de vez nos beats eletrônicos. Depois de uma pandemia, de lives e shows on-line e de um tempo focada em suas outras áreas de atuação (com destaque para a série “Eleita”, da Amazon Prime Video, projeto do qual Clarice é protagonista e que foi criado por ela ao lado de Celio Porto), agora a artista retorna ao seu trabalho musical com o lançamento de “Truque” (2023), o quarto disco de sua carreira e que segue navegando pelo universo da música eletrônica.

Mas não espere de “Truque” um “Tem Conserto 2”, nada disso, pois aindaQ que Clarice se una novamente ao produtor Lucas de Paiva, seu parceiro no disco anterior, aqui eles parecem já em outra vibe. O trabalho anterior tinha uma divisão muito clara entre um lado A mais introspectivo, mais dark, e um lado B mais dançante, mais voltado para a pista de dança. Em “Truque” os caminhos parecem mais entrelaçados em que a melancolia se casa com a pista de dança, em um passeio que, surpreendentemente, soa bem mais pop do que o esperado. Talvez até se pode classificar esse como o disco mais pop da artista, aquele que poderia ser facilmente um hit radiofônico ou mesmo aparecer em trilha de novela. E isso talvez venha da delicadeza da produção, mas tem também relação com o seu universo temático: o amor e suas desilusões – ou os seus truques, para aproveitar o título do álbum.

O amor aparece aqui mais leve, sem tanta ironia ou acidez como já vimos na obra de Clarice. Em “Truque” há uma leveza, o humor está ali, mas ele é mais galhofeiro e menos virulento, tipo na divertidíssima “Podre”, em que ela narra uma paixão surgida em um cenário inesperado: “Me apaixonei no banheiro químico / Era palácio de garrafa pet / Qualquer buraco com um cheiro fétido / Com você é nota dez”. Outro exemplo desse humor é “Fundo do Poço”, quando ela canta “Eu que decorei meu fundo do poço” e nos traz detalhes dessa decoração. Há um aceno para aquela Clarice lá do “Monomania” (2013) e do “Problema Meu” (2016), mas é interessante como soa algo novo, fresco, com um novo olhar que podemos chamar de mais maduro.

Maturidade aqui pode ser dita em diferentes pontos: as composições de Clarice nos apresentam uma persona mais leve, mais solta de qualquer tipo de amarra ou demanda; já sonoramente, esse disco se apresenta mais coeso em sua produção e é interessante como a parceria de Clarice e Lucas se mostra mais sólida. Em “Truque” é possível ouvir ecos de diferentes universos da música eletrônica, desde aqueles arroubos tecnológicos da MPB dos anos 80 até conexões mais modernas como a PC Music e outros movimentos pop, de todo modo, tudo isso bem amarrado e com uma unicidade interessante.

Em uma imagem a energia desse disco seria aquela coisa meio “Sex and The City”, você com uma tacinha, um drink chique na mão, mas tendo que ir ao banheiro retocar a maquiagem que borrou, pois você deu uma choradinha pensando em algum problema da vida ou mesmo porque viu seu último amor entrando no ambiente. Esse era o mote, inclusive, do primeiro single do disco, “Chorar na Boate”, uma ode ao choro no escurinho da pista de dança. A faixa veio acompanhada de um belo clipe com Clarice numa vibe disco girl dançando e chorando glitter, porém esse era só o prelúdio, já que “Truque” é também um álbum visual e cada faixa irá ganhar seu vídeo, com uma identidade própria.

Para além do bom humor e das galhofas, “Truque” também mostra uma vulnerabilidade interessante que pode cativar os ouvintes pela sua entrega romântica, como na bela “Ar da sua graça” com seu refrão melancólico que diz “Você não me dá mais o ar da sua graça / E nada tem graça, e nada tem jeito / E ninguém tem rosto, e esse aperto no peito / Não me dá mais gosto nem de respirar”. É interessante quando essa sinceridade se casa com o humor, como na narrativa construída em “Ideia Merda”, que é cantada sob uma base de beats que criam uma espécie de ambiência para essa história que nos está sendo contada.

De todo modo, talvez o mais claro exemplo dessa maturidade narrativa e de produção do álbum esteja lá em seu final, em “Quero Acreditar”, com sua sonoridade pop e leve ao trazer logo de cara os versos debochados “Os terraplanistas acreditam na parada deles pra caralho / Eu tenho tanta inveja / De acreditar em algo”, o que se segue com uma narrativa ampla sobre crença e descrença, bem como sobre crer em si mesma – tudo isso com um coro de vozes ao fundo que transforma essa faixa em uma perolazinha pop pronta pra gente performar e coreografar na pista de dança.

A liberdade e a independência de Clarice Falcão se provam cada vez mais como uma escolha acertada: ela faz as coisas no seu tempo, com a sua verdade e da maneira que ela acredita. Com isso ela consegue fazer essas pequenas polaroides de seu tempo, de suas experiências e, por conseguinte, de seus ouvintes. Por exemplo, “Tem Conserto” captava alguma angústia ampla que estava na gente e que se tornaria maior – tudo aquilo que já sabemos bem, governo Bolsonaro, violência de todos os lados, pandemia, recessão e tudo mais. Agora “Truque” nos traz alguma leveza de que, apesar do caos do mundo, ainda tem algumas coisinhas que nos fazem bem, que nos alegram, que nos aquecem o coração e que temos que nos agarrar nelas, seja um amor de verão, uma paixão intensa que durará só até o amanhecer ou mesmo uma bela canção pop que irá nos fazer dançar, chorar & sorrir.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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