Entrevista: Autor de “Mil Placebos”, o escritor gaúcho Matheus Borges fala sobre tecnologia, literatura e capitalismo

entrevista por Marcela Güther

E se o ‘homem do subsolo’, de Fiódor Dostoiévski, tivesse acesso aos fóruns do 4chan? E se Edgar Allan Poe, na hora de conceber suas novelas policiais, tivesse acesso aos futuros psicopatológicos que povoavam a mente de J. G. Ballard? E se nada disso fosse necessário, pois o capitalismo alienante e o submundo tecnológico estivessem levando, agora mesmo, jovens a percorrerem o percurso trágico da solidão do espírito à desagregação mental, culminando em atos de violência impensável?

São questões como essas que surgem levantadas pelo escritor Daniel Galera na orelha do livro “Mil Placebos” (Uboro Lopes, 192 pág.), obra de estreia do gaúcho Matheus Borges. Mescla de neo-noir, ficção científica e ensaio acadêmico, a obra traça uma investigação psíquica do capitalismo tardio ao analisar os impactos da internet e da tecnologia nas relações afetivas. “Fala de solidão e atomização social, de como os processos que organizam o mundo também são capazes de afetar nossa cognição”, completa o autor, que ressalta como a estrutura da obra foi pensada de forma a ir e voltar no tempo, “quase que replicando a disposição que um algoritmo dá a uma timeline de rede social”, o que justifica a hibridez de gêneros adotada no livro.

Nascido em Porto Alegre em 1992, Matheus Borges é formado no curso de realização audiovisual da Unisinos e egresso da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, realizada na PUC/RS. Suas histórias já foram publicadas em revistas literárias brasileiras e no exterior, bem como em coletâneas e antologias. No cinema, atuou como roteirista em “A Colmeia”, longa-metragem vencedor de cinco prêmios na edição de 2021 do Festival de Cinema de Gramado. Abaixo, Matheus fala sobre processos de escrita, temas e motivações que o levaram a escrever “Mil Placebos”, um livro “de escrita elegante e instigante” (segundo Gabriel Pinheiro aqui no Scream & Yell). Leia abaixo.

Se você pudesse resumir os temas centrais de “Mil Placebos”, quais seriam?
“Mil Placebos” é uma investigação psíquica do capitalismo tardio. Trata de internet e de como nossas relações afetivas são tocadas pela interação com a tecnologia. Fala de solidão e atomização social, de como os processos que organizam o mundo também são capazes de afetar nossa cognição. Um aspecto importante da escrita de “Mil Placebos” foi essa preocupação com a estrutura da história, essas idas e vindas no tempo, quase que replicando a disposição que um algoritmo dá a uma timeline de rede social. Dessa maneira, pode-se dizer que a própria forma do romance (que, me parece, também é um tipo de cognição) é afetada por esses processos.

Por que escolher esses temas?
Porque me parecem temas importantes para se pensar o presente e o futuro. Tanto num âmbito político, pois me parece que a ascensão de uma extrema-direita organizada é algo que passa por esses processos descritos no livro, mas também em nível individual: não dá pra negar o quanto nossas vidas dependem hoje dessas tecnologias, desses dispositivos, de toda uma rede de ideias e costumes construída a partir dessa dependência. De que maneira isso afeta nossa cognição e a maneira como nos relacionamos com os outros?

O que motivou a escrita desse livro? Como foi o processo de escrita?
Comecei a escrever “Mil Placebos” em 2013. Àquela altura, minha intenção era escrever um thriller que tratasse desse aspecto obscuro, quase mítico, da deep web, em oposição à banalidade da internet superficial, onde existem as redes sociais e a maioria das ferramentas que usamos no dia a dia. Muito desse interesse inicial estava associado ao cyberpunk, ou à ideia de criar um romance dentro dos parâmetros de realismo literário tendo em mente determinados interesses do cyberpunk. A história foi crescendo a partir daí, mas também agregando certos imprevistos, bem como adquirindo outros níveis de interpretação – especialmente quando fóruns e chans ganharam alguma relevância no debate público após a ascensão da nova extrema-direita, bastante hábil em cooptar e manipular esses espaços de discussão.

Como você vê a literatura sendo afetada pelos avanços tecnológicos?
O que eu acho interessante é pensar como essas coisas alteram a matéria da ficção, que é a relação entre seres humanos. Ficção se faz com gente interagindo, se comunicando. Uma vez alterados nossos meios de interação e comunicação, então se abre um território novo a ser explorado na ficção. E o contrário também acontece. Boa parte desses avanços já existia anteriormente, em plano hipotético, quarenta, cinquenta anos atrás, em narrativas de ficção científica. No meio disso tudo tem um potencial muito grande de pensar na maneira como a literatura trata desses assuntos.

Que livros influenciaram diretamente a sua obra?
Normalmente, tento me isolar das influências, não gosto de pensar em outros autores quando estou sozinho escrevendo, mas imagino que muito do “Mil Placebos” passa pelas leituras de Ballard, William Gibson, Don DeLillo e, indo um pouco mais longe, as aventuras de Sherlock Holmes, que li na adolescência, mas foram muito importantes em minha formação de leitor. Outras leituras importantes foram de pensadores do capitalismo tardio, em especial Mark Fisher, Franco Berardi e McKenzie Wark.

Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Escrevo desde criança, quando tive um primeiro contato com a literatura. Em especial, lembro de tentar escrever histórias de detetive, muito influenciado pela leitura do Sherlock Holmes. Mais tarde, durante a faculdade, especializei-me em roteiro cinematográfico, então foi outro período de contato com a escrita, um tipo muito específico de escrita. Em 2013, comecei a escrever o “Mil Placebos” e logo em seguida frequentei a oficina de criação literária do professor Assis Brasil. Acho que foi aí que as coisas se encaixaram de fato.

Como você definiria seu estilo de escrita?
Normalmente, tento equilibrar uma disposição natural ao cinismo com um temperamento histriônico. Gosto de trabalhar atmosferas densas através de cenas longas, de alternar entre momentos de introspecção e espanto.

Como é o seu processo de escrita?
Gosto de pensar obsessivamente antes de escrever, em temas, imagens ou na estrutura da história. Às vezes, passo alguns meses sem escrever uma linha sequer, esperando as ideias amadurecerem. Quando sinto que as coisas começam a se encaixar, aí me sento e começo a dar forma ao texto.

Quais são os seus projetos atuais de escrita?
Por enquanto, venho desenvolvendo meu projeto de mestrado, que é um romance bem diferente do “Mil Placebos”, uma história que tem muito da minha formação na área de cinema. Tenho também uma compilação de contos e um outro romance, que trabalhei mais ou menos em simultâneo ao “Mil Placebos” e que foi concluído um pouco depois. Esse romance também tem suas distinções de estilo em relação ao “Mil Placebos”, mas compartilha do mesmo DNA.

– Marcela Güther é jornalista, produtora de conteúdo, assessora de imprensa e mediadora do Leia Mulheres.

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