Entrevista: Artista em ascendência no cenário português, Ana Lua Caiano fala sobre seu novo EP, “Se Dançar É Só Depois”

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa

O trajeto de Ana Lua Caiano na nova cena musical portuguesa tem sido exemplar. A participação, em julho de 2021, nas SDB Sessions (uma iniciativa que consistia na criação e exibição de uma performance em estúdio), que lhe valeu a gravação ao vivo e a edição em vinil de três canções originais, o impacto do single “Nem Mal Me Queres” (10 meses mais tarde) e, principalmente, a edição e apresentação do seu EP de estreia “Cheguei Tarde a Ontem” (2022), centraram as atenções na sua arte. O frescor das seis canções que compunham o disco, alusivas a relações de poder entre pessoas (como a memorável “Olha Maria”) ou referentes à busca incessante do tempo passado (na faixa-título), eram o resultado de uma fusão criativa da música tradicional portuguesa com a eletrônica, suportadas por letras fortes, relativamente encriptadas, denotando inquietação e que lhe conferiam uma certa aura de mistério.

Quando nos encontramos numa esplanada do Jardim da Estrela, em Lisboa, Ana Lua Caiano está a poucos dias de lançar o seu novo EP, “Se Dançar É Só Depois” (2023), e a aparente timidez inicial com que me encara cede lugar a uma figura simpática, que discorre animadamente sobre a sua música e não cessa de cativar. A forma como compõe é me revelada depois: “As melodias aparecem primeiro, porque são mais espontâneas. À noite, quando estou a passear ou não consigo dormir, gravo as minhas ideias e no dia seguinte pego nelas e exploro-as. Depois, faço uma batida inicial e canto parte dessas melodias, que normalmente são curtas, e procuro associá-las a outras possibilidades. Só depois é que entram os sintetizadores e as letras”, explica.

A forma como desafia a imaginação das pessoas no seu ‘one-woman band’ de lírica peculiar é outro ponto que lhe proponho aflorar e ao qual Ana não hesita em explanar: “Gosto muito de escrever e quando o faço sinto que cada frase terá um significado. Acredito que a explicação possa não ser clara para quem escuta as músicas e já tive interpretações muito variadas para as minhas letras. É bom manter o espírito aberto, porque também encontro sentido no que as pessoas dizem e pode não ter sido exatamente isso que pensei quando escrevi a canção”.

A capa dos dois EPs de Ana Lua Caiano

De seguida abordamos o novo EP, o qual apresenta um pendor dançável e uma audácia superior a “Cheguei Tarde a Ontem”, onde o pop e o experimentalismo se encontram. Acima de tudo evidencia-se uma cantautora que surge mais enfática do que no primeiro disco, refletindo sobre temáticas da sociedade portuguesa, como o excesso de trabalho, os medos, a ansiedade e a crise na habitação. “Este EP tem músicas escritas em 2020 como tem canções muito recentes, compostas em 2022. Sinto que estou mais madura e comecei a explorar coisas diferentes. Embora ache que os dois discos são irmãos, também me parece que existem diferenças na parte rítmica e esses contrastes talvez se sintam um pouco nas letras”.

Relativamente às músicas novas, exprimo um interesse particular por “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou” devido ao fato de exibir um conceito musical arrojado e por Ana Lua Caiano assinar um excelente desempenho vocal. “Quando gravei as canções do EP anterior, ainda não tinha tocado a maior parte dessas músicas, mas essa faixa já tinha sido apresentada há algum tempo. Sinto que o fato de ter cantado antes de gravar me ajudou a saber como interpretá-la. Ela sai um pouco do formato tradicional, porque não existe um refrão bem definido e tem um aspeto esquisito. O meu novo trabalho tem músicas assim, com partes mais experimentais. Sou perfeccionista, gosto de produzir e criar momentos inesperados e introduzir elementos modernos nas canções”, conta.

Estamos a poucos dias dos shows de apresentação de “Se Dançar É Só Depois”, onde Ana irá tocar os seus dois EPs na íntegra e uma canção do futuro álbum. Será um tour de cinco cidades portuguesas que começará a 5 de Maio na Casa da Cultura (Setúbal) e que incluirá uma passagem no dia seguinte pela Galeria Zé dos Bois (Lisboa), pelo Salão Brazil (Coimbra), Maus Hábitos (Porto), Sala Radar, em Vigo (Espanha) e terminará a 27 de Maio no Bang Venue (Torres Vedras). “Gosto muito de pensar na viagem do concerto e misturar elementos calmos com fases de maior agitação. Quero me focar em transformar várias músicas em versões ao vivo. É um processo diferente e tenho de pensar como é que converto uma determinada faixa para esse efeito. Eu trabalho muito as músicas até à sua apresentação e estou muito ansiosa por poder apresentar bastantes canções novas”, conclui.

De Lisboa para o Brasil, Ana Lua Caiano conversou com o Scream & Yell. Confira:

Gostaria que me falasse do seu percurso e que me explicasse se seguiu a via da fusão entre a música tradicional portuguesa e a eletrônica para explorar novas possibilidades sonoras ou por gosto pessoal.
Eu comecei a tocar piano aos seis anos e completei o 5º grau de piano clássico. Aos 15 anos fiz experiências e compus em pautas, que tocava no piano. Depois, não continuei nessa base e concluí o curso regular de quatro anos de jazz no Hot Clube de Portugal. No momento em que tinha algumas canções, reuni-me com pessoas de lá e formei os Vertigem em finais de 2017. Também passei por uma banda de rock, os Planet Kepler, e fiz várias composições em conjunto com os membros do grupo. Quando vim estudar para o Hot Clube, que apesar de ser mais livre do que a música clássica, continuava ligado à teoria musical e as composições tinham um conjunto de regras e uma harmonia própria. Nessa altura, senti vontade de sair dessa zona e explorar aspectos diferentes. Comecei a ir a cursos de música concreta, de sintetizadores e microfones esquisitos e interessei-me mais por coisas alternativas e aventurei-me nesse mundo. Escutei Björk, Portishead e a eletrônica do duo americano Silver Apples de que gosto muito. Para além de músicos populares que eu ouvia como Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto, Chico Buarque ou ligados à música tradicional portuguesa e à world music. Assim que comecei a fazer a minha própria música não o fiz para procurar algo novo. Sempre gostei de compor e experimentar e quando percebi que podia fazer as minhas experiências em programas de gravação com possibilidades que nunca tinha tido, abriram-se novos caminhos. Em banda é muito diferente levar uma composição e tocá-la em conjunto, porque existe um baixo, uma bateria ou guitarras que geram bastantes possibilidades e impossibilidades, e o facto de ter começado a trabalhar em programas de música e poder transformar instrumentos ficcionais em instrumentos reais levou-me a este encontro entre a música tradicional portuguesa e a eletrônica. Foi a minha vontade de explorar elementos alternativos que levou a essa junção.

Você apresenta-se ao vivo no formato “one-woman band” para vincar mais o seu estilo musical ou por se sentir mais à vontade nesse plano?
Eu nunca toquei sozinha. No início, e até quando me candidatei a apoios, não tinha tido em mente fazer algo solo. Depois candidatei-me a um concurso, as SDB Sessions, que tinha vários formatos: solo, três pessoas ou mais de cinco pessoas. Na época (julho de 2021), eu tinha algumas canções, mas não havia ninguém para tocá-las comigo nem sabia como transformar algo tão abstrato numa banda. Então apostei num projeto individual e aquilo era só um conceito, porque era novo para mim. De repente, tinha mês e meio para preparar algumas músicas nesse estilo e foi aí que começou a ideia de me apresentar como ´one-woman band´. Eu já tinha tentado fazer algo sozinha para o recital do Hot Clube. A ideia inicial era tocar com banda e estava tudo planejado, mas depois eclodiu a pandemia. O recital acabou por ser cada um por si e a minha versão revelou-se minimalista. Nas SDB Sessions acabei por apresentar ao vivo as músicas “Mão na Mão”, “Olha Maria” e “Os Meus Sapatos Não Tocam Nos Teus” e comecei a colocar a possibilidade de atuar dessa forma e agora sinto-me bastante à vontade a solo.

A sua componente visual é bastante sugestiva e os clipes de “Nem Mal Me Queres”, “Mão Na Mão” e o mais recente “Se Dançar É Só Depois” são bons exemplos disso. Que tipo de mensagem procura transmitir nos seus vídeos?
Eu gosto que os clipes sejam uma espécie de complemento e não reflitam exatamente o que estou a dizer ou que mostrem um lado da música que as pessoas não tenham pensado. Como as minhas letras não são muito diretas, agrada-me que os vídeos mostrem uma interpretação das mesmas. Mas, também gosto que hajam situações estranhas e cores fortes. No clipe de “Se Dançar É Só Depois” a ideia era diferente e estava mais ligada a uma certa uniformidade associada ao conceito de fábrica e de série. Na minha música, apesar dela apresentar temáticas normais, procuro dizer as coisas por outras palavras para que a mensagem não seja demasiado óbvia. Embora sejam situações palpáveis que me podiam ter acontecido, gosto de criar ambientes diferentes e dizer frases estranhas e ambíguas.

Como encara o hype que se vive à volta de si e da sua música?
As coisas aconteceram naturalmente e nunca tive a sensação de ter feito shows com mais tempo ou em sítios maiores do que deveria. Embora tenha sido de uma forma rápida (fez a sua primeira atuação em 2022), sinto que foi uma progressão normal. Sei que há pessoas que me escutam e gosto que se interessem pelas minhas letras, mas é difícil para mim perceber que há gente de outro lado (risos). Quando alguém conhece uma música durante o concerto acho isso engraçado. No show do Musicbox (a 23 de Janeiro de 2023) fiquei espantada que estivessem a cantar as minhas canções e não compreendo como é que isso acontece. Para mim, após o processo de composição e o lançamento do disco não ligo muito ao que vem a seguir. É bom haver críticas positivas ao meu trabalho e haver pessoas a falar bem de mim. Mas, só tenho esse entendimento durante o concerto e, nesse momento, penso que alguém ouviu a música e gostou. Fico muito contente com isso (risos).

O que podemos esperar do seu álbum de estreia? Uma continuidade ou rutura com aquilo que fez nos EPs?
Já está tudo pronto e as músicas são de 2020. Eu componho por épocas e sou capaz de ficar alguns meses sem o fazer mas, depois, há sempre um mês em que estou mais inspirada ou tenho mais tempo e acabo por compor muitas coisas. Ainda há bastante material antigo para lançar. Portanto, as maquetes estão feitas e estou simplesmente a melhorá-las e a adaptá-las ao que sinto agora. Durante o confinamento fiz bastantes canções, algumas delas estão no meu primeiro EP e uma ou outra no disco mais recente. O álbum vai ter músicas que foram feitas no contexto da pandemia e em que reflito sobre o surto, apesar de não serem óbvias. Será um trabalho muito ligado aos meus sentimentos e ao que vi acontecer nesse momento. Há uma faixa em que isso é evidente, mas não pretendo que assim seja. Podem ser situações atuais, mas abordadas durante a pandemia e a pensar nesse ambiente. Em termos sonoros o álbum estará em linha com o que já fiz, mas será mais experimental. Sinto que estou a explorar cada vez mais e isso vai ter efeito no meu trabalho.

Qual é a sua maior ambição e que mensagem gostaria de deixar aos leitores do Scream & Yell?
A minha maior ambição é continuar a fazer música, a gravar álbuns e a ter apoios para isso. Mas, o que eu gosto mais é de compor e também me agrada bastante tocar ao vivo. Se eu conseguir ter o tempo para dar seguimento ao meu trabalho e ter pessoas que me queiram escutar, será ótimo. Eu tenho muita ligação com o Brasil, porque a minha mãe nasceu lá. Ela não é brasileira, mas os meus avós foram viver para o Brasil e a minha tia é brasileira. Por isso, sempre tive um laço forte com a música e a cultura brasileira. Chico Buarque tem melodias super inesperadas. Se calhar não é isso que acontece nas músicas que faço, mas certamente peguei algumas ideias dele. Acredito que seja difícil escutar música portuguesa no Brasil, porque é muito diferente. Mas, ficarei bastante satisfeita se gostarem das minhas canções. Se quiserem conhecer os meus discos, eles estão disponíveis nas plataformas digitais e eu convido-os a ouvirem-nos.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Joana Caiano / Divulgação. 

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