Entrevista: Mike IX Williams (Eyehategod)

entrevista por Homero Pivotto Jr.

O Eyehategod segue uma trajetória errática, ainda que constante, desde que colocou o pé no lodo da música extrema pela primeira vez, na segunda metade dos anos 80. Oriundo da prolífica cena do estado de Louisiana, mais precisamente da cidade de New Orleans — às margens do Rio Mississipi —, é cria pantanosa da mistura entre a força do metal, a impetuosidade do hardcore e a tradição blueseira da região. Nessas pouco mais de três décadas de estrada e lama, foram apenas cinco discos. Porém, extensivas e frequentes turnês. Algo que a banda achou por bem referenciar — e talvez reverenciar — no sexto trabalho de estúdio, chamado ”A History of Nomadic Behavior”. O lançamento está marcado para 12 de março.

O álbum traz 12 composições odiosas. Como de costume, com uma veia mais punk do que pares conterrâneos, como Down e Crowbar (para citar alguns dos mais conhecidos). Quatro faixas foram liberadas como aperitivo em formato single e estão listadas no decorrer deste texto. São elas: ‘High Risk Trigger’, ‘Fake What’s Yours’, ‘Circle of Nerves’ e ‘Built Beneath the Lies’.

Assim como representantes mais tradicionais daquilo que se convencionou chamar de sludge — sonoridade pesada, por vezes arrastada para o lado do doom, outras acelerada em pique hardcore —, o Eyehategod tem forte referências de Black Sabbath e de Black Flag da fase “My War”. Mas costura essas influências de uma maneira um pouco mais torta, por que não provocativa. E tanto o vocal agudo e rasgado, quanto o comportamento (hoje nem tão) niilista de Mike IX Williams tem contribuição forte para essa imagem/musicalidade rebelde.

“Eu não escuto as bandas de Nova Orleans. Mas acho que a única banda que faz som de um jeito mais punk é o Eyehategod”, avalia o cantor. A própria história do grupo, que ostenta um nome raivoso, uma postura cínica e uma saga que envolve mortes, crimes, tragédias e dramas pessoais, também ajuda a tornar o Eyehategod singular.

“O nome foi criado por outro cara que esteve na banda. Talvez tenha um significado mais profundo (Eyehategod tem grafia diferente, mas a pronúncia é igual a “I hate God”, que traduzido fica “eu odeio Deus”). Não estávamos nem aí, era pela diversão. Até houve protestos de crentes em alguns locais no começo”, recorda Mike IX Williams, nosso entrevistado, garantindo que nunca teve receio de ser prejudicado em razão da alcunha do conjunto.

Ao passo que a banda ascendia em uma carreira não proposital na indústria da música, o vocalista se afundava no vício em drogas, como heroína. Certa altura da vida teve sérias complicações de saúde. Em 2014, veio o diagnóstico de cirrose e a necessidade de um transplante de fígado, realizado em 2016. “Estou bem desde então. A moral da vida é passar por provações. Se a pessoa tem tudo, perde um pouco da graça”, conta, complementando: “A arte ajuda na superação. Mesmo músicas mais sombrias, como é nosso som. Isso até tem a ver com o título “In the Name of Suffering” (“Em nome do sofrimento”, primeiro álbum, de 1990)”.

Mike confirma que ”A History of Nomadic Behavior” é uma expressão que se relaciona com as incursões que fez para tocar mundo afora. Contudo, essa não é a temática do trampo mais recente.  “Adoramos estar em turnê! Mas não é um álbum conceitual. Nunca fizemos, possivelmente nem vamos fazer algo assim — sentencia o músico.

Mike é testemunha in loco de tempestuosidades da existência. Entre elas, a morte do colega Joey LaCaze (baterista do Eyehategod até 2013), o espiral de loucura das substâncias químicas, a casa destruída pelo furacão Katrina (2005) e a prisão dias depois do desastre natural, ao roubar uma farmácia.

No papo a seguir, feito via Zoom, ele fala sobre música e escrita. Em algumas questões, aborda ainda a relação dos tristes acontecimentos mencionados anteriormente. E também comenta o infame episódio em que o amigo Phil Anselmo fez uma saudação usada por supremacistas brancos.

Considerando que você não é tão jovem (tem 52 anos), quais diferenças de excursionar hoje em dia comparando com antigamente?
Não entendo o que a idade tem a ver com isso. Mas, enfim, temos feito turnês por um longo tempo. O óbvio é que não havia computadores quando começamos com as giras. Ninguém marcava tour pelo computador, ninguém tinha celular para acionar as pessoas 24h por dia, sete dias por semana. Você precisava de uma parada para usar um telefone pago. Fora isso, tudo é a mesma coisa. Você marca o show, vai para cidade, toca, conhece gente e se diverte.

Mas você sente-se da mesma maneira? Não fica mais cansado, seu corpo não cobra o preço de algum excesso?
Não, isso seria para os fracos. Nós fazemos turnês tanto quanto qualquer um, talvez mais que muitas bandas jovens. Amamos estar na estrada. É ótimo para nós, é onde brilhamos: como banda ao vivo. O melhor que podemos ser é tocando no palco. Idade não tem nada a ver com isso. Estamos nos nossos 50 e poucos, não temos 80 anos como parece quando você fala. Não somos idosos.

Não era essa a intenção, malz.
Saímos dos 40 há pouco tempo.

Se você tivesse que ranquear o novo disco entre suas produções favoritas na discografia do Eyehategod, em que posição o álbum estaria?
Todos os nossos trabalhos são meus favoritos. Cada gravação é o retrato do período em que foi feito no tempo. É assim que funciona para qualquer álbum de qualquer banda. Na verdade, é o mesmo com todo som, escultura, dança ou seja lá o que for. É uma representação de determinado momento. No nosso caso, o álbum novo é uma fotografia entre 2017 e 2021. Não tenho um trampo favorito que fizemos. São todas obras do Eyehategod. Quem tem de decidir qual álbum é o favorito são os fãs. Não é algo que eu deva fazer.

Você já disse que o Eyehategod não é uma banda política. Mas, dessa vez, eventos como eleições, polarização e brutalidade policial afetaram você de algum jeito? É possível notar alguns versos que, se não políticos, ao menos demonstram insatisfação com o momento nos dois singles lançados até então: “Fake What’s Yours” e “High Risk Trigger”.
Essas questões aparecem subliminarmente. Nós não sentamos e escrevemos sobre isso diretamente. Não compomos nada proposital sobre algum assunto. Fazemos sons com letras que soam bem juntas e então colocamos um nome na música. Nada mais que isso. Não há significado mais profundo nessas letras. Escrevi algumas dessas letras há cinco ou seis anos. Elas não foram colocadas no papel apenas sobre 2020. Essas coincidências acontecem, não compomos intencionalmente. Se há alguns chavões, como “destroy USA” (trecho de “High Risk Trigger”), trata-se de um sentimento que tenho desde criança. Não sou patriota, não me importo com esse país. Eu poderia viver em qualquer lugar, desde que as pessoas sejam bacanas e haja alguma liberdade. Contanto que exista um bom ambiente, eu ficaria bem em qualquer país. Dizer “destrua os USA” é apenas um jeito de irritar as pessoas.

Seria correto dizer que existe uma espécie de humor ácido ou intenção provocativa em certas de suas letras? Caso sim, seria apenas a forma de você expressar sua maneira de ver o mundo ou algo com propósito? Chocar as pessoas, talvez.
Nós amamos chocar as pessoas. Não acho que tantas pessoas ficam impactadas como quando começamos, por volta de 1986 — apesar de finalmente termos colocado a banda no palco só em 1988. Claro que nos agrada chocar as pessoas. Eu venho da cena punk que remonta por volta de 1978. E gosto da forma como esse pessoal abalava as pessoas e as fazia pensarem diferente. Certas ações podiam ser ofensivas, mas eles mudaram a percepção de alguns. Não havia nada que fosse para machucar alguém nem nada assim. Mas a real é que sempre curtimos ofender e chocar. Hoje em dia não fazemos muito isso. Apenas juntamos palavras que nos soam bem.

Você é um leitor ávido? Qual a importância que vê no hábito de ler e o quanto isso se reflete na sua lírica musical?
Eu acho que todo mundo deve ler. Eu leio bastante, tanto quanto eu posso. Seja no computador ou nos livros. Ler é educação. Não entendo essa gente que se gaba de dizer “foda-se os livros, eu não leio”. Acho que é um jeito ignorante de pensar. Ler e viajar são meios para se educar, e todos deveriam fazer isso.

Falando nisso: você continua escrevendo para revistas (Mike foi colaborador da revista Metal Maniacs) ou exercitando sua veia literária fora da música? Quem sabe um novo livro a caminho (em 2005, ele publicou a obra “Cancer as a Social Activity” [Câncer como atividade social])?
Sim, tenho toneladas de letras, histórias curtas e material abstrato. Tenho escrito durante minha vida inteira, textos diferentes, seja no computador ou em livro de anotações ou mesmo no telefone. Seria o suficiente para algumas publicações. Só tenho de me organizar e editar isso tudo, bem como fazer a arte gráfica. Planejo lançar mais livros sim. “Cancer as a Social Activity” foi o primeiro que lancei.

Li que você costuma ter letras prontas e, quando a banda cria novos sons, apenas precisa escolher entre seus escritos aquilo que se encaixa melhor no som. É assim mesmo? Acho interessante porque, geralmente, vocalistas costumam escrever após ouvirem a parte instrumental.
Talvez isso que você diz seja uma generalização. Sei que muitos cantores fazem do mesmo jeito que eu. Vocalistas são pessoas ímpares. Se você escreve, faz isso em qualquer situação na qual esteja inspirado… Não há regras estabelecidas. Detesto normas, especialmente ao escrever música. Você pode fazer o que quiser. Pode escrever ali mesmo no local de gravação ou meses antes. Algumas das letras do novo disco foram concebidas no estúdio, outros anos atrás, ou em qualquer situação em que você sinta que tem de fazer, como indivíduo.

E como andam seus outros projetos musicais, como Arson Anthem e Corrections House? E sobre o Dead End America?
Dead End America é um projeto que fiz com o baixista Nick Olivieri (ex-Queens of the Stone Age, Mondo Generator, Kyuss) e o baterista Steve “Thee Slayer Hippy” Hanford (ex-Poison Idea), um grande amigo que morreu (a morte ocorreu em maio de 2020, em decorrência de ataque cardíaco). Até onde sei a banda já era. Não posso continuar sem o Steve. Se o Nick quiser fazer outro projeto, possivelmente eu tenha como colaborar. O nome Dead End America fui eu quem deu, e o título do EP “Crush the Machine” também é meu. Não sei cara, é muito ruim o Steve não estar mais conosco para continuar. Com o Corrections House, temos conversado sobre fazer algo mais. Sanford Parker (Nachtmystium, Minsk), que toca comigo no Corrections House e também é produtor, foi quem gravou meus vocais para o “A History of Nomadic Behavior”. Então, falamos sobre algo novo para o futuro. Arson Anthem está morto, até onde sei. Pessoalmente, tenho pensado em juntar a banda novamente com outros membros algum dia. Já sobre o Outlaw Order (projeto com o colega de Eyehategod, Jimmy Bower), queremos realizar alguns shows quando a situação melhorar um pouco.

Além de tocar com você no Arson Anthem, Phil Anselmo o ajudou após sua casa ser devastada pelo furação Katrina. Você até morou com ele, certo? Como alguém que conhece o cara por tanto tempo, o que achou do episódio em que ele fez uma saudação white power?
Penso que foi bem estúpido. Achei bem burro da parte do Phil fazer isso. Fazer isso em público foi ridículo. Eu fui para a escola com Phil, quando ele tinha cabelo gigante estilo Mötley Crüe. Aquele corte de cabelo glam. Foi assim que conheci o cara. Nunca pensei nada diferente dele, exceto que é um amigo antigo. Porém, ele ficou famoso e tal. Eu sempre considerei ele outra pessoa, nunca nem prestei atenção no Pantera sem que tivesse de fazer isso. Não foi nada esperto da parte dele gritar algo racista, fosse onde fosse. E ele estava sendo filmado. Ele se desculpou, acho que as pessoas podem mudar. E espero que ele tenha passado por algumas mudanças. Foi algo bem idiota.

E o que achou da repercussão disso no meio musical e entre fãs de música?
Não prestei atenção nisso. Vi que ele fez, e foi isso. Não me prestei a ler mensagens em redes sociais. Vi alguns comentários acidentalmente de pessoas falando merda. Essa é a era em que vivemos agora, com pessoas dizendo o que querem diante de seus computadores. Concordo que não foi algo esperto a se fazer em frente a um monte de câmeras, ou em qualquer outro momento. Ele não deveria ter feito o que fez. Não li sobre as repercussões, não me interessei.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.

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