Três HQs: “Beco do Rosário”, “Buscavidas” e “Degenerado”

resenhas por Leonardo Tissot

“Beco do Rosário”, de Ana Luiza Koehler (Editora Veneta)
Os desavisados que hoje transitam pelas avenidas Borges de Medeiros, Alberto Bins, Otávio Rocha e Cristóvão Colombo, entre tantas outras da região central de Porto Alegre, talvez desconheçam a história por trás das construções. É parte dessas memórias que a HQ “Beco do Rosário” (editora Veneta), de Ana Luiza Koehler, resgata em cerca de 90 páginas incrivelmente bem desenhadas. Com uma nova versão lançada em setembro passado (a primeira parte saiu em 2015 em uma pequena tiragem e a história foi concluída neste ano, com páginas extras e apoio do projeto Rumos Itaú Cultural), a novela gráfica une dois universos que, entre tantos outros, ainda coabitam a capital gaúcha um século depois: o primeiro, formado pelos pobres, em sua maioria negros, que continuam a sofrer violências como a perda de sua moradia (isso quando não são assassinados em supermercados…). E o segundo, o dos endinheirados com plenas condições de enviar seus filhos para estudarem na Europa e voltarem ao Brasil cheios de ideias “inovadoras” — doa a quem doer.

É justamente esse choque entre dois mundos que, contraditoriamente, une Vitória (uma jovem negra que sonha em ser jornalista) e Teo (um rapaz branco “de boa família” que retorna ao Brasil após servir à Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial). Envolvidos na modernização promovida pelos políticos da época — que, não coincidentemente, dão nome a diversas avenidas porto-alegrenses até os dias de hoje — Vivi e Teo se reencontram após terem se conhecido na infância. Ela, do lado das famílias expulsas do Beco do Rosário para abrir espaço ao “progresso”. Ele, como parte da equipe responsável pelas obras de novas avenidas “higiênicas”. Mas “Beco do Rosário” é mais do que um mero registro histórico, e a HQ não esquece seu papel como entretenimento, dedicando um pouco para cada tipo de leitor: romance, humor e intrigas familiares costuram uma história que ainda ecoa no dia a dia dos gaúchos. Tudo isso a partir de um traço elegante e fortemente influenciado pelo quadrinho europeu — Koehler, inclusive, tem no currículo ilustrações para as HQs “Awrah” e “Carthage” (França) e “Vertigo Quarterly: CMYK”, da DC Comics (EUA). Em “Beco”, a autora foi responsável por nada menos que pesquisa, roteiro, ilustrações e cores deste que é um dos grandes quadrinhos nacionais de 2020.


“Buscavidas”, de Carlos Trillo e Alberto Breccia (Comix Zone)
“Buscavidas” é uma série de 14 histórias em quadrinhos publicadas entre 1981 e 1984 pelo roteirista argentino Carlos Trillo e pelo desenhista uruguaio (e radicado na Argentina desde a infância) Alberto Breccia. Inédita no país, a coleção chegou ao mercado brasileiro por meio da editora Comix Zone em novembro, o que só foi possível a partir da restauração de chapas de impressão das revistas em que foram lançadas na época, como a argentina “Superhumor”. As pranchas originais de Breccia se perderam após serem enviadas à Europa na tentativa de publicar o material no velho continente. Apesar de a fidelidade gráfica não ser de 100%, a publicação de “Buscavidas” no Brasil certamente tem qualidade suficiente para merecer a atenção dos leitores, que recentemente vêm sendo abastecidos com o melhor do quadrinho argentino do século XX — com a publicação de “Mort Cinder”, em 2019, sendo um dos principais destaques até o momento. Na série, compilada em sua totalidade nesta edição, os autores mostram uma personagem de formas pouco definidas, Buscavidas, um colecionador de histórias e causos. Seja em bares, trens, bancos de praça ou na TV, a figura se alimenta das revelações — a maior parte delas, amarguradas — das pessoas que dele se aproximam. A angústia se justifica se levarmos em conta as atrocidades vividas pelos argentinos naqueles anos, em uma ditadura que foi tão ou mais cruel que a brasileira.

O período de publicação de “Buscavidas” ainda coincide com a guerra travada por nossos hermanos com os ingleses pela posse das Ilhas Malvinas (também retratada recentemente na quarta temporada da série “The Crown”, da Netflix). Nem sempre satisfeito com as histórias que coleta (o que não deixa de ser uma curiosa e hilária autocrítica de Trillo com o próprio trabalho), Buscavidas cataloga cada uma delas em pastas separadas por gênero — há o fichário das histórias de amor, o dos suicídios e tantos outros. Enquanto Trillo descreve nos diálogos o desespero das personagens — na primeira história, um homem mutila a mulher amada para que ela não seja desejada por outros pretendentes, por exemplo — os desenhos de Breccia mostram figuras deformadas, fiapos de gente, com um traço fortemente influenciado pelo expressionismo. Por vezes, torna-se até difícil compreender onde estão os olhos, narizes e bocas de cada um. O cartunista ainda abusa do alto contraste, mostrando seu domínio do preto e branco e de como tornar uma narrativa fluida e, ao mesmo tempo, incômoda e atraente, sem permitir que o leitor tire os olhos das páginas. Não é à toa que Breccia é endeusado por caras como Frank Miller — o que fica óbvio em trabalhos do autor norte-americano, especialmente em “Sin City”. Que mais obras de Trillo, falecido em 2011, e Breccia, que nos deixou em 1993, cheguem ao mercado nacional! A tradução de “Buscavidas” é de Jana Bianchi.


“Degenerado”, de Chloé Cruchaudet (Editora Nemo)
Publicado na França em 2013, “Degenerado” (Mauvais Genre, no original), é uma adaptação do livro “La Garçonne et l’assassin”, e se baseia em uma história real de um casal apaixonado nos tempos da Primeira Guerra Mundial. Ela, a costureira Louise, e ele, o desertor Paul, lutam para viver juntos na Paris dos anos 1920. O problema era, justamente, o fato de Paul ter fugido do hospital onde era tratado após um ferimento de guerra — a pena para os desertores franceses, na época, era o fuzilamento. Com traços delicados e uma narrativa cristalina, a quadrinista Chloé Cruchaudet revela, pouco a pouco, a intimidade do casal. Sem poder trabalhar, Paul se frustra com a falta de dinheiro e de liberdade, e a paixão entre os dois sofre turbulências provocadas pelo isolamento forçado do marido. Isso até o dia em que ele resolve usar o vestido vermelho de Louise para ir às ruas e comprar uma garrafa de vinho. A ideia acaba vingando e, com a preparação adequada — unhas bem feitas, barba eliminada de forma definitiva, cabelo com um corte da moda e sobrancelha aparada —, Paul consegue se passar por uma mulher típica dos anos 20 na capital francesa.

Após o fim da guerra, ainda sofrendo com as sequelas psicológicas das batalhas e sem o perdão do governo, o marido continua sua vida como Suzanne (nome escolhido para sua persona feminina). É aí que “Degenerado” ganha uma camada extra: as dificuldades financeiras e de relacionamento do casal não deixam de existir, e a elas se acrescentam as novas experiências sexuais de Paul/Suzanne, seu conflito entre as personalidades masculina e feminina e as consequências brutais que a situação traz para a vida de ambos. Brilhantemente escrita e desenhada, “Degenerado” é uma obra essencial para compreender o quadrinho europeu contemporâneo. A graphic novel levou o Grande Prêmio da Associação de Críticos e Jornalistas de Quadrinhos da França em 2013, e também foi a vencedora na categoria “Melhor Álbum” do Festival de Angoulême, em 2014. Lançada em novembro deste ano no Brasil pela editora Nemo, a HQ tem tradução de Renata Silveira. A autora francesa é uma das presenças confirmadas na CCXP Worlds, evento que ocorre em formato virtual entre os dias 4 e 6 de dezembro, direto de São Paulo. Parte da programação é totalmente gratuita.

– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo

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