Entrevista: Antonio Adolfo

entrevista por Bruno Capelas

Vencedor de festivais. Autor de canções gravadas por nomes como Stevie Wonder, Elis Regina, Ivete Sangalo e Sérgio Mendes. Compositor do primeiro tema de amor especialmente feito para uma novela no Brasil. Arranjador e pianista por trás de discos como “Angela Ro Ro”, “Sinal Fechado”, “Joia” e “Elis: Como e Porquê?”. Um dos poucos brasileiros a dividir uma sessão de gravação com Mick Jagger. E pioneiro do disco autoproduzido neste Pindorama – há quem diga que, antes dele, só mesmo Tim Maia para se jogar na aventura de lançar um disco sem a ajuda de uma gravadora neste País em plena década de 1970.

Aos 72 anos e com mais de cinco décadas de carreira, Antonio Adolfo é talvez um nome que passe desavisado até mesmo para muita gente que é fã de música. Não deveria: responsável por sucessos de primeiro quilate como “Sá Marina”, “BR-3” e “Teletema”, ele tem uma longa história para contar. E põe longa nisso: “As minhas primeiras experiências com música já foram dentro do útero da minha mãe”, brinca o músico, que hoje vive na Ponte Aérea Rio-EUA e segue gravando. Desde 2010, solta um disco por ano, em projetos que passeiam entre o jazz, a música erudita e o melhor da canção brasileira, homenageando Wayne Shorter (“Hybrido”, de 2017), ao lado de big bands (“Encontros”, com a Orquestra Atlântica, do ano passado).

Esta entrevista, concedida por Adolfo ao Scream & Yell em maio de 2019, é uma forma de não deixar seu legado de lado: nela, ele conta como começou sua carreira no Beco das Garrafas, ainda menor de idade, acompanhando Vinicius de Moraes e Carlos Lyra com o Trio 3D. De lá, fez parte da banda de apoio de Elis e Wilson Simonal – que fez sua parceria com o letrista Tibério Gaspar decolar ao gravar “Sá Marina”.

Com o sucesso, sentiu confiança para formar uma das mais interessantes bandas de proto-rock brasileiras, A Brazuca, que contava em suas fileiras com virtuoses como Paulinho Braga (bateria), Luizão Maia (baixo) e Luiz Cláudio Ramos (guitarra), além do próprio bandleader. Seus dois discos, gravados em 1969 e 1970, são disputados a tapa por colecionadores de vinil – o mesmo vale para “Feito em Casa” e “Viralata”, álbuns que gravou por conta própria no final dos anos 1970, com direito a capa feita com carimbo e distribuição “manual”. “Não gosto muito da palavra independente, acho que ela ficou deturpada. É mais legal falar em autoprodução, do sentimento de não querer engolir que a minha música não poderia ser gravada”, diz. “É engraçado: hoje 95% dos discos são autoproduzidos, né?”.

No papo a seguir, Adolfo também fala sobre seus métodos de composição – afinal, havia segredo para compor música que ganhava festival, como ele fez com “BR-3”? Ele discorre ainda sobre seu legado com a escola de música Centro Musical Antonio Adolfo e conta a curiosa gravação que fez com Mick Jagger em 1976 – dirigida por Roberto Menescal, a sessão teve a participação, entre outros, do baixista Dadi e o percussionista Mestre Marçal. “Ele (Mick) era um cara super doce”, conta. Uma pena que o resultado dessa sessão, a música “Scarlet”, nunca tenha visto a luz do dia. Com a palavra, Antonio Adolfo (e aqui, uma playlist).

Antonio, como começou a sua relação com a música?
As minhas primeiras experiências com música já foram dentro do útero da minha mãe. Ela era violinista da Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Quando ela estava me esperando, continuava indo aos ensaios. Os colegas até brincavam com ela que o filho ia ser músico. Nasci e, claro, fui estudar música: comecei com o violino, ainda com sete anos. Minha irmã era pianista clássica. Havia um ambiente total de música em casa. A gente também ia muito para a fazenda e lá ouvia muita música caipira. E como eu morava na Tijuca, o Salgueiro passava embaixo da rua de casa. Tudo isso foi me influenciando e me fazendo interessar por um ou outro estilo. Não demorou muito, comecei a tocar piano de ouvido.

E como você decide fazer da música a tua carreira?
Foi um passo natural. Quando eu estava no segundo grau (equivalente ao Ensino Médio hoje em dia), comecei a ter conjuntos na escola, grupos musicais. Já era a época da Bossa Nova, na Zona Sul tinha vários festivais e eu comecei a tocar com os colegas. A paixão foi muito grande, muito maior do que qualquer outra coisa. Comecei a tocar profissionalmente com 17 anos. Até cheguei a fazer vestibular para Direito, cursei até o segundo ano na Faculdade Cândido Mendes, mas depois ficou difícil conciliar. Eu estreei em 1963, com o Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, no show “Pobre Menina Rica”, às 21 horas. Às 23 horas, eu ia tocar no Beco das Garrafas, em Copacabana, com a Leny Andrade e o Trio 3D, que era o meu trio.

Dava para tocar mesmo sendo menor de idade?
Tinha várias ameaças do Juizado de Menores! Eles falavam que não podia tocar, especialmente no Beco das Garrafas, cheio de inferninhos. Lá era onde a Leny Andrade fazia o show com o 3D e o Raul de Souza ¬– que a gente chamava de Raulzinho do Trombone naquela época. Tinha que ter autorização do Juizado, mas sabe que sempre eu consegui driblar isso? Nunca precisei tocar atrás da cortina, sempre deu tudo certo, até que o tempo foi passando e eu fiz 18 anos. Nessa mesma época, começou a onda dos trios. Tinha o Tamba Trio, o Zimbo Trio, o Jongo Trio em São Paulo… naquela época eu ia muito a São Paulo por conta dos festivais de Bossa Nova que o Picapau (Walter Silva) organizava aí. E aí eu montei o meu trio, o Trio 3D. Éramos eu, o Carlos Monjardim no baixo e o Nelson Serra na bateria. Nós começamos a acompanhar cantores como a Leny Andrade, o Wilson Simonal, a Eliana Pittman e o pai dela, o Booker Pittman, uma porção de gente. Também fizemos algumas temporadas daquele show da Rhodia com o Lennie Dale, com o Geraldo Vandré, corremos o Brasil todo. Era uma vida muito intensa, tinha que ter largado a faculdade mesmo… (risos). Ao mesmo tempo, eu devia ter continuado: adoro a questão do direito autoral, sou um apaixonado pelo assunto. Poderia ter me formado…

Como o Trio 3D deixa de ser só acompanhante e grava seu primeiro disco?
Em março de 1964, nós fomos levados para gravar um disco na RCA Victor. No meio da gravação aconteceu um certo incidente: o nosso baterista, o Nelsinho, estava servindo o Exército. A gravação foi de março para abril de 1964 e ele não pode gravar a maioria das músicas porque ficou preso no quartel, coitado. Quem acabou gravando com a gente acabou sendo o Dom Um Romão. De qualquer maneira, o disco foi muito bem recebido, eu tinha 18 anos… e as coisas aconteceram muito rápido. No ano seguinte, fizemos o segundo, Trio 3D Convida, que já tinha músicos convidados. No lado A, era só o trio tocando. Mas no lado B, nós chamamos alguns músicos amigos da época para participar. O Eumir Deodato veio fazer dois arranjos. O (saxofonista e clarinetista) Paulo Moura entrou, também o Maciel, o (saxofonista) Meireles (do grupo Meirelles e os Copa 5). É fácil dizer que o lado B ficou mais legal, mais rico, por assim dizer. E aí em 1967, o Trio 3D acabou virando um grupo, algo meio na onda do Brasil 66, do Sérgio Mendes. Viramos o Conjunto 3D. O Manuel Gusmão e o Hélio Delmiro se juntaram a nós, e pra cantar entraram o Eduardo Conde e a Beth Carvalho. Se olhar a capa daquele disco, tá todo mundo garotão numa boate. A foto foi feita numa cervejaria que dava a maior onda ali no Rio de Janeiro. Foi um disco de brincadeira, saiu pela gravadora Copacabana. O disco não teve muita repercussão, porque a Copacabana gravava artistas mais populares, não tinham ninguém nessa linha mais bossa nova. Mas foi divertido, acabamos fazendo vários programas do Roberto Carlos, ele chegou a cantar com a gente, naquela época a Jovem Guarda estava arrebentando. Foi uma época bem bacana. Eu conheci a Beth porque tinha um grupo de compositores que ela reunia em torno dela. Ela dava aulas de violão e me apresentou para esse pessoal, gente como o Arthur Verocai, o próprio Eduardo Conde, o Paulinho Tapajós e o Tibério Gaspar. Foi aí que eu comecei a fazer músicas com o Tibério.

Como foi a parceria com o Tibério? Como é que perceberam que a coisa “funcionava”?
Logo de cara, na primeira leva de composições, a gente fez umas dez músicas. Dentre elas, já veio “Sá Marina”. Nós trabalhamos intensamente entre 1967 e 1970, depois paramos a parceria e retomamos para fazer um disco em 2007, voltado para o mercado inglês, a pedido da gravadora Far Out, e uma última música, “Meu Canto”, que a Evinha gravou em 2015. Ao todo, foram 54 músicas. Mas enfim: nós começamos a fazer música e de cara foi dando certo. Eu acompanhava o Simonal na época, tinha muito acesso a ele e ele estava fazendo muito sucesso com “Mamãe Passou Açúcar em Mim” e outras músicas assim. No início, “Sá Marina” era uma toada brejeira, uma coisa bem caipirinha. Se você ouvir a primeira gravação, feita pelo O Grupo, vai perceber que ela é bem assim. A gente chamava isso na época de toada moderna. Mas ao mesmo tempo, meu ouvido de arranjador achou que dava para colocar a música no estilo do Simonal. Deu certo demais: até hoje, é o maior sucesso que eu tive, pô. Foi gravada no mundo inteiro, por gente como Sérgio Mendes, Stevie Wonder, Tijuana Brass…

E existiu mesmo uma “Sá Marina”?
Sim! Muita gente achava que era onda do Tibério, mas é um personagem que existiu de verdade, no distrito de Anta, em Sapucaia, no interior do Rio de Janeiro. Foi onde o Tibério passou a infância dele e a tal Sá Marina era uma moça toda cheia de graça, que descia uma ladeira por lá. No ano passado, teve até a inauguração da Ladeira Sá Marina lá em Sapucaia. O Tibério até brigava comigo quando eu falava que a moça não existia. Só que tinha uma coisa: o nome da moça era Brasilina. Não dava para colocar esse nome na música, né? Não é um nome muito sonoro. Então ficou “Sá Marina”.

E como funcionava a parceria? Ele trazia a letra e você fazia a música depois, os dois faziam a coisa juntos, rolava uma interferência?
Podiam rolar sugestões, mas, basicamente, eu fazia a música e ele fazia a letra. Primeiro, eu fazia a música. A gente nunca fez ao contrário, nunca ele me mandou uma letra pra eu musicar. E como a gente começou a ter muitas músicas, achávamos que precisávamos ter alguém pra cantar essas músicas.

É daí que surge A Brazuca?
É. Nem eu nem o Tibério cantávamos, mas naquela época, havia muitos compositores-cantores, especialmente nos festivais do Rio e de São Paulo. Como nem eu nem ele cantávamos, a gente achava que era preciso montar um grupo que tivesse uma voz. A gente já tinha músicas nossas gravadas por várias pessoas, com sucesso, mas achamos legal ter um grupo. Só que em vez de cantar, a gente faria um conjunto, eu entrava como arranjador e músico. O Luizão Maia veio no baixo, o Luiz Cláudio Ramos na guitarra e o Victor Manga na bateria. Depois, o Paulinho Braga entrou no lugar dele. Depois que a Brazuca acabou, a Elis pegou correndo os três – o Luizão, o Luiz e o Paulinho – para tocar no conjunto dela.

Mas antes disso você já tinha tocado com a Elis, né?
Sim! Eu era da banda dela e saí para montar a Brazuca. Mas era para eu ter tocado com ela já no Beco das Garrafas, eu tinha 18 anos quando a gente ensaiou junto a primeira vez. Era 1964. Mas do nada, ela mudou de ideia, disse que não ia fazer mais o show – ia ser no Bottle’s Bar, ali em Copacabana. Depois, a gente tocou junto entre 1968 e 1969, gravamos quatro discos, fomos à Europa três vezes, viajamos pelo Brasil. Entre os discos que a gente gravou, tem aquele na Suécia com o Toots Thielemans e o “Elis in London” – nos dois, tem músicas minhas.

Voltando para a Brazuca: como foi a estreia da banda?
Então, a estreia foi em 1969, num festival universitário, com “Dois Minutos de Um Novo Dia”, uma música que é do meu irmão, Ruy Maurity. Nessa primeira formação, eram duas cantoras, a Bimba e a Julie, e na bateria estava o Victor Manga. Logo depois, veio a estreia nacional, com “Juliana”, no Festival Internacional da Canção (FIC). Foi ali que a coisa pegou mesmo.

Como era compor pra festival? Você ficou em 2º lugar no FIC de 1969 com “Juliana”, depois ganhou no ano seguinte com “BR-3” …
O festival era a plataforma de lançamento dos cantores. Toda a MPB daquela época, que está aí até hoje com força, veio dos festivais. Até o Djavan veio dos festivais. Quando chegava o festival, a gente inscrevia uma música que estava pronta, que fosse bonita, e depois fazia uma produção toda para gerar repercussão. Todo mundo fazia produção: Vandré, Caetano, Gil, Mutantes. A gente também queria ganhar o festival, então fazia toda a produção. Deu bem certo com “BR-3”, foi demais: o Toni Tornado eu já conhecia, mas como Tony Checker – ele dublava o Chubby Checker nos programas de rock do Jair de Taumaturgo, na TV. E aí chamamos o Trio Ternura para fazer o trio vocal, como se fosse soul music. Foi algo realmente para causar uma impressão.

Mas tinha uma receita para música de festival?
Sempre houve. É que nem o pessoal fala, que tem música que “tem cara de novela”. “Teletema”, por exemplo, foi o tema de amor da novela “Véu de Noiva” (e a primeira vez que uma novela da Globo teve trilha sonora original). Quando eu toquei, todo mundo dizia que tinha que ser o tema de amor, mesmo que a gente não tivesse feito a música para isso. Quanto ao festival, a gente não ia fazer uma coisa inferior, mas a gente caprichava o máximo possível, para causar impacto. Tinha que agradar ao público de cara. Tem músicas que a gente só gosta depois de ouvir cinco ou dez vezes, mas com festival, não: elas tinham que agradar de primeira, o chamariz tinha que ser forte.

Um “truque” que acontece tanto em “BR-3” quanto em “Teletema” é a mudança do andamento no meio da música – as duas saem de uma valsa em compasso ¾ para um formato mais pop, em 4/4. Como você chegou nessa ideia?
Não é exatamente uma valsa, era uma acentuação de três tempos diferentes. É um 3/4 mais suingado, é até melhor para as pessoas dançarem. Hoje, quando eu toco “Teletema” nos shows, eu nem faço a mudança: acho que aquela substituição para o 4/4 era uma coisa da época, realmente só para chamar a atenção. Agora, no “BR-3”, era necessário: o forte do Toni Tornado era aquele espetáculo que ele fazia dançando, uma coisa meio James Brown, ele abria os braços, dizia “Deus!”, e para isso a gente precisava do 4/4, tinha que ter a mudança. A música começa lenta, com aquele refrão do “A gente corre… na BR-3”, até que chega a hora que precisa explodir. Mas não é uma coisa limitada: eu fiz um riff de sopros que ia construindo a harmonia, não era só mudar de um acorde para o outro, como muita gente faz na música pop. No “BR-3”, essa mudança do tempo é uma construção bonita. A orquestração era do Bruno Ferreira, um maestro que era filho do músico Abel Ferreira.

Logo depois do FIC de 1970, houve uma polêmica sobre “BR-3” ser uma música que fazia apologia às drogas. Como isso te afetou?
Naquela época, estava todo mundo sendo perseguido. Mas “BR-3” era uma música que falava das coisas que existiam na época, das notícias fabricadas, da droga… a BR-3 era como se fosse a estrada da vida, mas a gente não fazia apologia a drogas ou nada desse tipo. O que eu sei é que houve um colunista que levantou essa hipótese, veio de um militar, um texto que supunha que a BR-3 seria a agulha ou a veia, alguma dessas coisas assim. Eu nem sei o nome desse pessoal, era uma coisa ignorante. Cheguei até a sair do Brasil naquela época. Não fui expulso nem banido, mas saí porque estava com nojo daquela situação. O Tibério foi perseguido. Eles também perseguiram o Toni Tornado e o Erlon Chaves. Tinha aquela coisa do movimento negro, eles achavam que os dois estavam afrontando a sociedade, sabe? Foi tudo muito ridículo, muito provinciano. De certa maneira, é uma autodestruição da nossa cultura.

(Nota: quem melhor conta a história da polêmica é Zuza Homem de Mello, em seu livro “A Era dos Festivais”. Logo após a vitória de “BR-3” no FIC de 1970, o colunista Ibrahim Sued espalhou uma nota sobre “Tóxico”, livro escrito pelo general Jaime Graça, que sugeria que BR-3 era o nome dado por usuários de cocaína à veia do braço no qual a droga seria injetada. Além disso, houve perseguições a Toni Tornado, que na época namorava a atriz Arlete Salles, e ao maestro Erlon Chaves, que também fez demonstrações do black power no festival da Globo daquele ano. No livro, Zuza diz ainda que os militares fizeram pressão para A Brazuca se tornar um grupo aparelhado do governo, à moda do que ocorreu com a banda de rock Os Incríveis.)

Antes de você sair do Brasil, ainda há tempo para um segundo disco da Brazuca. Como foi esse disco?
A gente teve algumas mudanças na formação. Uma foi porque o Victor Manga, que tocava com a gente, saiu para acompanhar o Simonal na Copa do Mundo do México. Na volta, ele acabou morrendo. Antes disso, nós descobrimos o Paulinho Braga, que tocava na noite em São Paulo. Foi uma dica do Tim Maia. Eu lembro que fui com o Tibério buscar o Paulinho em São Paulo, para ver se a gente convencia ele. O baixo continuou com o Luizão e a guitarra com o Luiz Cláudio, mas uma das cantoras abandonou a gente. A Julie Janeiro, que a gente chamava só de Julie, foi morar nos EUA. Aí eu e Tibério achamos melhor colocar um cantor, e entrou o Luís Keller, que a gente conhecia dos clubes. Ele tinha um vozeirão, era o estilo da época, da soul music, a voz fazendo um tremolo…

Hoje, os dois discos da Brazuca são bastante raros, comprados a peso de ouro no mercado. Como você se sente com isso?
Na Inglaterra, cheguei a ver um dos discos sendo vendido por US$ 1,5 mil. Era um dinheiro bom. Acho interessante, porque foi uma surpresa ver que esses discos estavam sendo cultuados nas discotecas londrinas, na Bélgica. Nos anos 1990, “Transamazônica”, que é do segundo disco da Brazuca, virou hit na Europa. A mesma coisa aconteceu com meu disco solo “Viralata” – ele é de 1979, mas “Cascavel” começou a tocar nas casas noturnas uns 20 anos depois. É interessante: valoriza algo que você nunca espera que vai acontecer. Acho muito legal.

Logo na sequência, você sai do Brasil. O que faz nesse período de autoexílio?
Eu fiquei revoltado com o que estava acontecendo no Brasil. Enojado mesmo com esse lance da perseguição, com quem fosse contra o governo militar, que tinha uma força muito grande. Foi um lance bem barra pesada naquela época. E aí eu fui em autoexílio. Comecei a entrar numa onda diferente. Primeiro, mudei a alimentação. Eu era muito gordo naquela época e comecei a fazer macrobiótica, virei vegetariano. Acabei emagrecendo bastante, depois flertei com o zen budismo. Aquele fuminho também rolava um pouquinho de vez em quando (risos). Acabou que eu entrei em outra, comecei a curtir James Taylor, Elton John, fui mudando meu estilo de compor. Comecei a fazer eu mesmo algumas letras no piano.

E isso desemboca no teu disco solo de 1972, “Antonio Adolfo”, que é bem desconhecido…
Eu gosto muito daquelas músicas, mas odeio minha interpretação como cantor naquele disco. Não estou com uma voz natural, minha mesmo. Eu fiz as músicas e quando passei no Brasil em 1972, gravei o disco com a Polygram. No fundo, acho que eles queriam que eu fizesse uma continuação da Brazuca, que fez um sucesso interessante na época. O disco era um rompimento: eu acabei com a Brazuca, desfiz a parceria com Tibério e fui embora. Fui estudar música com a Nadia Boulanger. Foi uma mudança radical na minha vida, o disco mostra isso. Tem gente que adora esse disco, é apaixonado, mas eu não consigo ouvir. Anos depois, quando eu fui gravar o “Feito em Casa”, eu cantei uma música, “Aonde Você Vai?”. Ali a minha voz já funciona melhor.

Tem muita gente que chama o “Feito em Casa” de um dos primeiros discos independentes do Brasil. Mas como surgiu essa ideia de lançar seu próprio disco?
Então: depois desse disco de 1972, eu acabei ficando na geladeira. Voltei para a Europa para estudar mais, andei pelos Estados Unidos também. Voltei pro Brasil só no final de 1974, fui estudar com o maestro Guerra Peixe e continuei na alimentação natural. Daí comecei a fazer gravações acompanhando pessoas. Gravei três discos com o Chico Buarque, gravei com Caetano, com todo mundo. Eu era um músico de estúdio, queria continuar tocando, paralelamente à música que eu fazia. Em 1976, resolvi gravar algumas músicas que eu tinha acumulado nessa época. Eram quase todas instrumentais, tirando “Acalanto”, na qual a Joyce cantava, “Aonde Você Vai?” e “Vê”, que era cantada pela Málu, uma cantora de uma voz linda. Fui num estúdio que gravava jingles, o Sonoviso, e gravei as músicas que eu queria. Cheguei a mostrar para as gravadoras, mas tinha certeza que elas não iam querer. O disco de 1972 não vendeu nada, elas estavam com uma imagem que eu só queria fazer coisa muito doida. E eu realmente fiz uma coisa bem diferente. Aí eu resolvi lançar por conta própria. Fiz as capas sozinho: fui numa gráfica e pedi para eles fazerem a capa de disco ao contrário. Em vez da parte branca ficar por fora, ela ficou por dentro – o lado do papelão ficou para fora. Aí pedi para vários amigos e até algumas crianças fazerem desenhos, e depois eu escrevia “Feito em Casa”. Depois que o disco começou a vender, umas 300, 400 cópias, aí eu fiz um carimbo, fizemos vários, para colocar na capa. Foi incrível.

Hoje, há uma celebração em torno do teu nome como herói independente. Você concorda com o adjetivo?
Eu não fui o primeiro, ao contrário do que muita gente diz. O Tim Maia fez o “Racional” antes de mim, dizem até que Chiquinha Gonzaga teve uma gravadora de fundo de quintal. O que aconteceu é que, naquele momento, a imprensa se identificou com o movimento dos discos autoproduzidos. Eu não gosto muito da palavra independente, depois ela ficou um pouco deturpada. Acho mais legal falar em autoprodução. Eu não sou empresário de outros, não sou gravadora – é diferente de uma gravadora pequena, como a Biscoito Fino, que se autodenomina independente, mas até se une para conseguir patrocínios. Hoje é até engraçado: 95% dos discos são autoproduzidos. Isso era uma raridade na época. Mas a imprensa se identificou: eu chegava nas redações de jornais, dizendo que era o Antonio Adolfo, músico. Eu estava magrinho, de sandália, bem simples, carregando uma caixa de disco debaixo do braço. Ninguém me reconhecia, mas o meu nome abria portas. As rádios também queriam dar força, eu conhecia muitos disc-jockeys, mas… as rádios não tinham espaço. Elas eram e são comprometidas com as gravadoras e o departamento comercial: se não desse audiência, os DJs dançavam. Uma rádio ou outra, como a Nacional FM, a Cultura e a Eldorado de São Paulo, essas tocavam direto, mas eram rádios mais específicas. Mas foi um trabalho desbravador, corri o Brasil inteiro. Fiz isso curtindo a paixão pela música, não querendo engolir que a minha música não poderia ser gravada. Hoje, a coisa é diferente, a tecnologia está ao favor do artista, né.

Olhando hoje, a banda que faz o “Feito em Casa” parece um “dream team” da música brasileira, mas eram todos amigos de estúdio, né?
Marcio Montarroyos (trompete), o Oberdan (sax), o Jamil Joanes (baixo), o Luizão Maia, o Rubinho na bateria, a Joyce, a Málu. O Danilo Caymmi na flauta, o Luiz Cláudio Ramos na guitarra. Era todo mundo que estava ali na turma, todo mundo abraçou a coisa numa boa. Eu corri o Brasil todo, vieram outros discos depois.

E o projeto gráfico do “Feito em Casa” chama muito a atenção até hoje, a capa toda carimbada. Tenho uma dúvida bem boba: era um grande carimbão ou vários carimbos pequenos?
Eram dois carimbos: um escrito Antonio Adolfo e outro, “Feito em Casa”. Pedi para várias pessoas carimbarem as capas do jeito que preferissem. Cada uma delas ia virando uma capa diferente. Uma hora, a gente percebeu que precisava de uma capa matriz: peguei uma delas e acabamos decidindo assim – é a capa que sai hoje no CD e no vinil que foi relançado pela Polysom. Acabou virando a capa normal, de um disco que vendeu 20 mil cópias.

20 mil? É uma marca bem considerável para a época, considerando que o disco saiu em 1977.
É. Hoje em dia ninguém vende mais disco físico, né?

Isso te deu retorno financeiro? Ou era mais algo da produção se pagar e ponto final?
A maioria era vendida em shows, e como eu estava fazendo muitos shows pelo Brasil inteiro, com o Projeto Pixinguinha e várias turnês, eu vendia os discos. Mas não, não ganhei dinheiro com isso não.

Depois do “Feito em Casa”, você ainda faz outros discos pela sua “gravadora”, a Artezanal…
Sim, tem o “Viralata” (1979) e o “Encontro Musical” (1978). O “Viralata” é até hoje muito cultuado, especialmente fora do Brasil. “Cascavel” é minha música instrumental mais conhecida. Depois disso fiz o “Continuidade” (1980), um trabalho bem interessante sobre o repertório do Ernesto Nazareth, chamado “Os Pianeiros”. Foi um trabalho que me abriu para o choro, para outro estilo, o que me fez perceber que eu poderia fazer qualquer coisa. Anos depois, eu cheguei até a gravar um disco chamado “Puro Improviso” (1999). Eu chegava ao estúdio, tocava e fazia quatro takes – e o disco consiste basicamente nesses quatro takes. Nessa mesma época, eu fazia shows e sorteava as gravações. Fui fazer um show em Niterói, só com o piano, sem planejar o que eu ia tocar. Saía tocando, simplesmente, o que é um risco enorme. Ao mesmo tempo, eu gravava o show – e quando o show acabava, a gente duplicava os discos em seis CDs e escrevia tudo num rótulo branco, com o nome “Puro Improviso”. Enquanto se faziam os CDs, eu batia um papo com a plateia sobre direito autoral, produção independente, depois sorteava os discos. Foi algo bem diferente, mas isso a gente já tá falando de 1999, 2000.

Mais ou menos na mesma época do “Feito em Casa”, você fez uma gravação com o Mick Jagger aqui no Brasil. Como foi isso?
Foi o seguinte: o Mick Jagger estava no Brasil com a Bianca, a mulher dele, e quis porque quis gravar uma música chamada “Scarlet”. (spoiler: a gravação nunca viu a luz do dia). Ele quis ir pro estúdio da Polygram e aí chamaram os músicos. O Roberto Menescal era o diretor da gravadora na época. Foi quase uma reunião da Brazuca: eu no teclado, o Paulinho Braga na bateria e o Luiz Cláudio Ramos na guitarra. Pro baixo, acabaram chamando o Dadi. E ainda tinha um time na percussão: o mestre Marçal, o Nuna, o Eliseu e o Neném. Isso era 1976. É engraçado: eu tinha uma imagem do Mick Jagger ser uma pessoa esquiva, estranha. Eu tinha convivido muito com o rock na Europa, tinha essa imagem na cabeça. Mas não: ele era um cara super doce, ficamos conversando por horas, ele foi muito querido mesmo.

Rolou um fuminho também?
Não, não. Em 1976, já faz mais de quarenta anos… não, mas o Mick Jagger não era de fumo não.

Nos anos 1980, o senhor abriu uma escola de música, o Centro Musical Antonio Adolfo. Por que ensinar música?
Quando eu estudei com a Nadia Boulanger e com o Guerra Peixe, fiquei muito impressionado. Ao voltar para o Brasil, achei que poderia ser uma boa dar aulas, até pela inspiração desses dois mestres. Começaram a vir alguns alunos em casa, mas depois preferi alugar uma sala no Leblon. A coisa foi crescendo e sempre me pediam recomendação de alguém que desse aula de bateria ou de baixo. Comecei a ver com amigos se eles não queriam aproveitar e usar a mesma sala que eu, quando não estivesse dando aula. Pegamos o jeito e acabamos atraindo público também. Hoje, o Centro Musical tem três sedes, no Leblon, em Botafogo e na Barra. Quem administra são as minhas duas filhas, a Carol e a Luiza, que têm um timbre parecido e são professoras de música. Eu apareço de vez em quando por lá, dou uma aula, supervisiono, mas nos últimos anos preferi me dedicar mais aos meus discos.

Nos últimos anos foram vários discos, de parcerias com o Wayne Shorter, com uma big band…
De 2007 para cá, eu comecei a fazer muitos discos. Fiz um ao vivo com a Carol, minha filha, nos Estados Unidos (“Lá e Cá – Here and There”, de 2010). Antes disso, gravei um disco para a Far Out, na pegada da Brazuca: fiz as músicas com o Tibério e as minhas duas filhas foram as cantoras. Ficou bem autêntico e foi bem legal, nós celebramos essa amizade de novo. Desde 2011, eu estou gravando todo ano, um disco por ano, com boa recepção aqui nos Estados Unidos. Tive cinco indicações ao Grammy Latino, uma ao Grammy… o último foi agora com a Orquestra Atlântica, uma big band. (A entrevista foi realizada em maio de 2019, e, de lá para cá, Adolfo já publicou mais um disco, “Samba Jazz Alley”).

Ao lançar o disco com a big band, você disse que era algo que sempre quis gravar. E agora, o que falta?
De vez em quando me vem algumas ideias, mas não tenho nada nesse momento. Ainda não estou pensando nisso. Como hoje eu me autoproduzo, tenho que acompanhar o que acontece. Preciso colocar o disco no Spotify, nas redes sociais todas. É o que estou fazendo agora, então não estou com nenhuma ideia. Mas existem tantas possibilidades para o meu piano, encontros com outros músicos… poderia regravar o disco de 1972, também. Só preciso achar o intérprete ideal para ele. Sabia que eu tenho um trabalho inédito com o Jorge Mautner? Nós temos uma parceria de umas quinze músicas, mas só uma foi gravada, “Dia de Paz”, pelo Erasmo Carlos. O Jorge tem muito humor nas letras dele, é um cara brilhante. Precisava achar um bom intérprete. Viu, são muitas possibilidades. O importante é só não lançar nada mal feito.

O que é que te dá mais orgulho, da tua trajetória, independentemente de ter sucesso ou não?
Eu não sei, sinceramente. Disco é que nem filho, né? Não dá para ter filho favorito. O mais novo novo sempre é o preferido porque você dedica a energia para ele. Filho quando nasce tem que cuidar para decolar – e aí ele decola ou não, né, mas tem alguns que vão mais alto.

Vamos lá, última pergunta: se você fosse para uma ilha deserta, como diria o Zé Rodrix, quais seriam os cinco discos que você levaria?
Bill Evans com a Orquestra Sinfônica do Claus Ogerman, eu adoro esse disco até hoje. Antonio Carlos Jobim, “Passarim”, gosto muito principalmente da música “Passarim”. É difícil assim de bate pronto. (pensa um pouco…) João Gilberto, “Chega de Saudade”, que é um marco incrível. Eu gosto muito do Elton John, tem que ter o primeiro disco dele, que tem “Your Song”! (cantarola “Its a little bit funny…”). E pra fechar, qualquer um dos Beatles. Qualquer um!

 Bruno Capelas (@noacapelasé jornalista do Estadão. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

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