“O Clube dos Corações Surdos”, Harmada

por Bruno Capelas

Entre os diversos jeitos de se classificar uma banda, um dos mais peculiares é o da vergonha. É o que diferencia grupos que tem e que não tem vergonha de fazer canções com apelo pop – como se, em algum momento perdido da história da música, alguém tivesse decretado que fazer bonitos e fáceis refrões fosse um pecado capital. A Harmada, nova empreitada de Manoel Magalhães, um dos melhores letristas da geração anos 00, pertence claramente ao time das desavergonhadas. “Música Vulgar para Corações Surdos”, trabalho de estreia da banda – que além de Manoel nos vocais e guitarras, conta com Brynner Mota na guitarra solo, Juliana Goulart na bateria e Filipi Cavalcanti no baixo – está repleto de belas músicas sobre amor, situadas em algum lugar entre a distorção do rock dos anos 90 e o charme de bandas como Travis e Coldplay.

Entretanto, não se trata de um disco de amor simples: como o próprio nome do álbum diz, são histórias para, mas também a respeito de corações surdos. Os personagens das crônicas da Harmada são pessoas que querem se enganar, se deixam enganar ou querem enganar os outros, como se a felicidade a dois fosse algo intangível. Mais: tratam-se de letras que a todo momento fazem menções à música, ao cinema (“o filme terminou nessa sessão / ninguém espera mais qualquer atriz”), à TV (“e vai passando na TV qualquer bobagem”), à clichês amorosos (“nessa luz tão clichê / eu te encontro perdida”) em uma metalinguagem que soa excessiva à primeira vista, mas não é deslocada, muito menos gratuita.

É como se o amor romântico e bonito com que os personagens sonham fosse apenas possível dentro da arte, e não na realidade – tomando como realidade os espaços em que tais personagens vivem, e não a realidade do ouvinte, em um claro exemplo de simulacro. Deu pra entender? (você assistiu “Inception”? Conseguiu entender aqueles níveis diferentes de sonho que o filme propõe? É mais ou menos aquilo isso). Pensando dessa maneira, é possível considerar a Harmada uma banda consciente das armas que tem na mão – algo na linha do que diria Rob Fleming, ao questionar porque “ninguém se preocupa com crianças ouvindo milhares de canções sobre corações partidos, rejeição, dor, miséria e perda”.

Carlos e Cecília by Harmada

Não basta, porém, apenas ter todo um arsenal à disposição e saber o que cada pequeno gatilho pode fazer – é também preciso usá-lo de maneira adequada. E a Harmada – nome inspirado em um livro do escritor gaúcho João Gilberto Noll – faz isso de maneira exemplar, ao misturar em proporções interessantes barulho e melodia para criar frases que ficam na cabeça por muito tempo. É o que acontece com a strokeana “Carlos e Cecília”, com a vigorosa “Bairro Peixoto” – que lembra os momentos mais esporrentos do Weezer – ou com a bonita balada “Faça por Mim”, filha bastarda de Billy Corgan, só para citar três exemplos.

É também o charme do clima jazzy que se estabelece ao final de “Luz Fria”, na qual, sobre uma cama criada por um sax, Manoel canta: “O que me faz chegar aqui eu já nem sei / Onde me leva esse amor / Pra torturar meu coração”. Ou ainda, a sensação asfixiante que “Sufoco”, a faixa de abertura do disco, atinge por volta da metade de sua duração, ao falar de um casal em crise: “Por hora já não sonho mais por nós/Nem tento disfarçar qualquer razão/Se hoje o que eu preciso te mostrar / É mais do que eu consigo te dizer / Perdão”.

Sufoco by Harmada

Uma comparação com a Polar, a banda anterior de Manoel, se faz necessária. A temática presente nas canções das duas bandas é, de certa maneira, a mesma – “Bairro Peixoto”, por exemplo, soa como uma continuação de “Gabriela”, do extinto conjunto. Porém, a mensagem se torna diferente por culpa dos arranjos que acompanham tais temas. A Polar era herdeira do new acoustic movement, que no começo da década trouxe à tona bandas como Travis, Keane e Coldplay, investindo muitas vezes em bem tramadas relações entre piano, guitarras e violinos – mas que se tornavam impraticáveis ao vivo, como declarou Manoel em recente entrevista ao Scream & Yell. Já a Harmada se aproveita dos elementos de canção que a Polar usava – como a condução com um instrumento à frente em um ritmo que cresce, até trazer a bateria à tona explodindo no refrão – mas também coloca outros – como a distorção nas guitarras, ou baterias marciais e cavalares – transformando o que poderia ser um vulgar “dèja vu do rock inglês” em baladas e rocks que merecem atenção.

As aspas do parágrafo acima não são em vão: trata-se de um dos versos de “Avenida Dropsie”, a melhor dentre as catorze faixas de “Música Vulgar para Corações Surdos”. “Avenida Dropsie” é o nome de uma história do quadrinista Will Eisner, e também de uma peça da Sutil Companhia de Teatro. Ao início, há a instigante narração do ator Guilherme Weber – da Sutil – interpretando justamente as frases iniciais do texto de Eisner. Ao iniciar a melodia, os versos se sucedem feito slides ou frames mostrando cenas urbanas: “a cor negra no cinema / A distância na TV / A Estação Consolação às três (…) a noite inteira relembra os motivos / As cores no mesmo lugar / Os bares fechando / As ruas vazias”.

Apoiados num arranjo que se estabelece num crescendo, os versos de “Avenida Dropsie” desembocam em uma ponte que mostra a passagem do tempo: “Horas inteiras perdidas em claro / Anos inteiros passados em casa”. Juntos, tudo parece culminar para o ápice em um refrão explosivo, em um sofá solitário (“Esqueça esse barulho e vá dormir / Sozinha / Com os olhos na televisão”). Após pouco mais de cinco minutos de corações destroçados, Weber retorna para declamar: “No centésimo ano da Avenida Dropsie, oito prédios foram incendiados e destruídos. A Avenida Dropsie foi praticamente toda demolida. Apenas um prédio permaneceu em pé”.

Avenida Dropsie by Harmada

Ao final de “Avenida Dropsie”, o que fica é uma síntese não só dessas catorze canções, mas também da vida de muitas pessoas que ainda sonham, talvez, com amores de comédia romântica de 90 minutos, com direito a happy ending e letrinhas subindo no final – e se assemelham, portanto, às personagens de “Música Vulgar para Corações Surdos”. Existe, porém, uma diferença: o coração surdo dessas pessoas não está imune à força e à poesia deste belo álbum. Vale o teste.

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– Bruno Capelas é estudante de jornalismo e assina o blog Pergunte ao Pop

Leia também:
– Scream & Yell entrevista Harmada, por Jorge Wagner (aqui)
– CDs: Blubell, Harmada e Los Porongas, 1000 Toques por Adriano Costa (aqui)
– Baixe “Música Vulgar para Corações Surdos” gratuitamente na Trama Virtual (aqui)
– Guilherme Weber fala sobre “Avenida Dropsie” para o Scream & Yell (aqui)
– “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”, da Sutil Cia de Teatro, por Marcelo Costa (aqui)

7 thoughts on ““O Clube dos Corações Surdos”, Harmada

  1. Você era o melhor cara para escrever sobre este disco. Mas ao mesmo tempo, o mais perigoso. E de fato, conseguiu se distanciar e analisar muito bem

    Parabéns

  2. Acho o disco lindo, todas as músicas tem alguma história sobre os nossos tempos. Muitas lançamentos sensacionais esse ano, mas a Harmada tem um foco muito diferente nas letras. O texto mostra muito isso, parabéns!

  3. Já conhecia a banda, e este disco é impecável, muito bom mesmo. E o seu texto também tá muito legal, gostei da visão que você teve das músicas, parabéns.

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