Paul McCartney ao vivo em São Paulo (mais uma vez) ou “como um show tão protocolar pode ser tão emocionante”

texto por Davi Caro
Foto 1 de Renato Moikano
Foto 2, 3 e 4 de MJ Kim

Paul McCartney nunca foi meu beatle preferido. Peço desculpas a todos que discordam, mesmo porque, pensando de forma lógica, ele teria tudo para ser o que mais se destacaria para mim. Porém, o fato é que, desde a primeira audição de “1”, a enormemente bem sucedida coletânea lançada pelos Beatles no ano 2000, pela primeira vez, uma coisa ficou, de algum modo, clara para este que vos fala: Paul jamais seria o maior dos quatro rapazes de Liverpool. O talento em compor canções que costuraram os retalhos do inconsciente coletivo das últimas seis décadas, a resiliência em atravessar incontáveis mudanças de direcionamento no rock, bem como na música popular como um todo, empalidecia frente ao idealismo sincero e martírio involuntário de John, a espiritualidade e genialidade espontânea que brotava de George, ou mesmo o para sempre subestimado talento (e perpétua simpatia) de Ringo. Talvez tudo parecesse perfeito demais, “calculado” ou “amigável” demais, na discografia de Macca pós-Fab Four – quer estejamos falando de sucessos como “Band On The Run” (1973), ou de fracassos tal como “Give My Regards To Broad Street” (1984). E assim foi, para mim, por um longo tempo.

O que talvez seja a única explicação pela qual protelei por tanto tempo em realmente fazer questão de ir vê-lo até finalmente aceitar meu destino, questionar o que tinha como fato consumado, e ir até o Allianz Parque na última terça, dia 15. A curta espera pelo retorno de Paul (cuja última passagem por terra brasilis havia acontecido há menos de um ano) pareceu um sinal de que minha mudança de percepção em relação à McCartney, que vinha acontecendo havia algum tempo, precisava de uma espécie de “rito final”. E, de cara, talvez a maior demonstração da experiência que estava por vir: no primeiro de três shows na turnê brasileira 2024 (dois em São Paulo, um em Floripa), o estádio do Palmeiras alcançou lotação máxima, com várias pessoas comentando sobre terem visto alguma das apresentações em 2023 – assim como, como de costume, pessoas de todas as idades que (como eu) viam o ex-beatle pela primeira vez. Pouco importava que o repertório permanecesse vitualmente o mesmo (salvo uma notável adição).

Com pontualidade, a apresentação se iniciou às 20h após um breve DJ set que arrepiou a todos com a inserção da imortal “Para Lennon e McCartney”, de Milton Nascimento. Na verdade, o que se iniciou pontualmente foi o tradicional vídeo introdutório que se estendeu por exatos 30 minutos – o suficiente para que todas as pessoas pudessem se acomodar sem (tanta) pressa. E quando Sir Paul, juntamente com sua longeva banda (os guitarristas Rusty Anderson e Brian Ray, o multiinstrumentista Paul “Wix” Wickens e o baterista Abe Laboriel Jr., acrescidos do trio de sopros Hot City Horns), subiram ao palco, a catarse estava posta. Como de praxe, Paul fez as mesmas sutis alterações de sempre no set list alternando “A Hard Day’s Night” na abertura da primeira noite com “Can’t Buy Me Love”, escolhida para o start da noite seguinte no Allianz.

O primeiro bloco do set foi dividido entre clássicos dos Beatles (“Got To Get You Into My Life”, “Getting Better” e “Drive My Car”, a última trocada por “All My Loving” na segunda noite) e de sua carreira solo (a sempre incrível “Maybe I’m Amazed”), assim como pérolas dos Wings (“Junior’s Farm”, “Nineteen-Eighty-Five”). O roteiro se seguiu com a dedicatória de Macca à sua esposa, Nancy Shevell, presente no show; a citação à “Foxy Lady”, da Jimi Hendrix Experience, ao fim de “Let Me Roll It”; Paul falou português ao introduzir a mitológica “In Spite of All the Danger” como a primeira que os Beatles jamais gravaram, e citou George Martin na introdução à “Love Me Do”; e aconteceram as bonitas projeções de “Blackbird” e a carinhosa menção a seu “mano” John, antes da sensível “Here Today”. Tamanha padronização de um repertório poderia ser entendido por alguns como pouco atrativa – no entanto, estamos falando de Paul McCartney: um homem que se vale de uma competentíssima banda (destaque para o carismático baterista Laboriel Jr., que se mostra em casa seja fazendo dancinhas ou adicionando sua própria identidade às linhas tocadas por Ringo) para trazer ao público o que ele espera ouvir. Ele é, afinal, um perfeccionista na fina arte de tocar as cordas do coração de milhões de pessoas.

O que nos traz ao maior atrativo no setlist apresentado por Macca nesta visita: a tão falada última canção dos Beatles, “Now And Then”. Originalmente composta por John Lennon durante os anos em que permaneceu distante da indústria, a faixa já havia sido trabalhada pelo trio remanescente durante o projeto “Anthology”, em 1995. Ao contrário das também inéditas “Free As A Bird” e “Real Love”, a música foi engavetada após tentativas de gravar com o produtor Jeff Lynne; somente em 2022 a canção voltou às discussões, e foi finalizada por Paul e Ringo, junto com Giles Martin, com adições digitais dos vocais de Lennon e as partes de guitarra registradas por Harrison nas tentativas anteriores. O recente show no Uruguai, o primeiro de 2024, foi a estreia da faixa no repertório de McCartney, e sua primeira execução no Brasil levou incontáveis fãs às lágrimas, com as projeções de fotografias e vídeos do quarteto acentuando o clima melancólico, mesmo que belo, da canção. “Okay, vamos colocar a energia para cima, agora”, brincou Paul, antes do início de “New” (uma das quatro únicas faixas no setlist lançadas no século 21, vale dizer).

A parte final antes do bis seguiu tão protocolar quanto o primeiro bloco do show, com as emoções oscilando entre a ternura da releitura de “Something” (“Para meu ‘parça’, George”) assim como das obrigatórias “Let It Be” e “Hey Jude”, e a propulsão dos calibres de “Get Back” e “Jet”, dos cinematográficos fogos de artifício de “Live And Let Die” (muito mais impressionantes quando vistos ao vivo) e dos coros na dobradinha “Ob-La-Di, Ob-La-Da”/”Band On The Run”. Tudo executado com precisão milimétrica, sem nunca, porém, exalar desonestidade. Após um curto intervalo, Paul e banda retornam com três bandeiras: a da Inglaterra, a do Brasil e a do orgulho LGBTQIAP+. Claro, ainda tinha um outro grande momento para passar: a “interação” com Lennon em” I’ve Got a Feeling” com seus vocais e o aporte visual extraídos da restauração que Peter Jackson fez para a série documental “Get Back”, e que debutou no Brasil no ano passado. Ineditismo não faz diferença nenhuma aqui: a verdade é que é emociona muito ver John cantando “junto” do ex-parceiro.

A segunda canção do bis, outro tradicional momento em que Paul alterna canções, trouxe “Birthday” na primeira noite (“Dedicada a todos os aniversariantes”) e “Day Tripper” na noite seguinte em São Paulo. Uma festejada “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band [Reprise]” e uma visceral (para os padrões de McCartney) “Helter Skelter” antecederam o trio de canções tradicionalmente usadas para fechar os shows de Paul. “Golden Slumbers”, “Carry That Weight” e “The End”, as faixas de encerramento do melhor disco jamais feito (opinião pessoal aqui) são redentoras e luminosas em suas execuções – em especial a série de solos de bateria e guitarra divididos por Macca, Rusty Anderson e Brian Ray. Quem não havia se emocionado até então, por fim, se jogou ao entusiasmo de ver um dos maiores símbolos da música popular mundial desafiando qualquer receio e, no alto de seus 82 anos, entregando o mesmo espetáculo de alto nível de sempre – mais um no Brasil neste século tal qual 2010, 2013, 2014, 2017, 2019 e 2023.

O deslumbramento tomava conta da feição de todos aqueles que deixavam o Allianz Parqu. Deslumbramento este, aliás, que tomou conta de mim também, com a sensação de haver presenciado um evento ao mesmo tempo, sim, bastante protocolar, e mesmo assim incrivelmente único – tirando um atraso de longos anos em, veja só, dar uma chance a alguém que, como parte fundamental de minha vida (e de incontáveis outros), não precisa provar nada para ninguém. Parece poético que isto tenha acontecido em pleno dia dos professores: prestigiar alguém que ensinou tanto a tanta gente, afinal, é semelhante a uma sensação de dever cumprido; ou de um tributo a um artista que fez por merecer toda a aclamação do mundo, e segue merecendo. Macca deve voltar, a julgar por seu espontâneo “Até a próxima!”, em português mesmo, ao deixar o palco. Citando o editor deste notável site, “Todo mundo precisa ver Paul McCartney ao vivo ao menos uma vez na vida. É essencial”. Ele pode nunca ter sido meu beatle favorito, mas ele sempre esteve lá, como esteve ontem, e deve estar outras vezes. Ao fim, isso importa mais que qualquer coisa.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

4 thoughts on “Paul McCartney ao vivo em São Paulo (mais uma vez) ou “como um show tão protocolar pode ser tão emocionante”

  1. Olha, ano passado eu também fui assistir o Paul pela primeira vez. Também tinha uma implicância besta com ele, mas acho que a pandemia nos fez repensar várias coisas sobre aproveitar as oportunidades que a vida oferece. Lembro do clima maravilhoso, um avô com o neto atrás de mim, um senhor de 80 anos com os olhos marejados em Love Me Do, e do arrepio que foi sentir o eco de Something subindo pelas arquibancadas do Maracanã mas, acho que o principal é a honestidade que o Paul entrega. Ele faz o show que quer, defende a carreira dele, homenageia os dele e é de uma honestidade brutal ao se esgoelar em Helter Skelter ou Maybe I’m Amazed. Essa honestidade artística está muito em falta em artistas mais jovens.

    1. Falou bem! Por mais “quadrado”, ou protocolar, ou “repetitivo” que possa parecer pra alguns, em momento nenhum é possível duvidar da honestidade que Paul tem em fazer um bom show e criar uma boa experiência para todos. E essa entrega, essa expressão genuína, são realmente coisas que não se vê mais tanto assim. 🙂

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