texto de Marcelo Costa
Logo nos primeiros minutos de cena de “Killers of the Flower Moon” (2023), anciões da nação Osage, povo nativo norte-americano, preparam, entre lágrimas, um cerimonial para enterrar um cachimbo sagrado. Devido a corrida do ouro, eles estão sendo deslocados de uma região para outra, mas quis o destino que a nova morada do povo fosse um território abençoado com petróleo. A câmera, então, começa a ampliar o alcance e o espectador vislumbra, estupefato, centenas de torres de madeira explorando a região. Os 2229 indígenas do povo Osage estão ricos, mas o governo dos Estados Unidos os obriga, mediante a testes de competência, a provar que eles podem administrar o dinheiro arrecadado com o petróleo, e muitos são obrigados a lidar com homens brancos que são “guardiões”, pessoas a quem eles precisam pedir e justificar o uso do próprio dinheiro.
Dinheiro em abundância (estima-se que cada Osage ganhava 10 mil dólares por ano… em 1920!) atrai aproveitadores, e logo a tribo indígena começa a lidar tanto com interesseiros que querem se casar com alguma índia e, assim, herdar sua fortuna, tanto quanto roubar o povo nativo. A história de “Assassinos da Lua das Flores”, inspirada em fatos reais, foi adaptada do livro “Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a origem do FBI”, do jornalista estadunidense David Grann, que dividiu sua narrativa em três partes: a primeira foca em uma das famílias indígenas que foi foco de golpistas assassinos; a segunda lança luz sobre o trabalho do Bureau of Investigation (que daria origem ao FBI) no caso; a terceira aprofunda o olhar sobre todo o caso. Scorsese queria filmar a investigação, mas acabou, acertadamente, contando a história do início, com foco no romance entre a osage Mollie (interpretada com força e silêncio por Lily Gladstone) e o judeu Ernest (Leonardo DiCaprio).
O que o espectador irá ver se desenrolar na tela não é novidade no cinema, muito menos no cinema de Martin Scorsese: de “Goodfellas” (1990) passando por “O Lobo de Wall Street” (2013) e mesmo “O Irlândes” (2019), o que temos em “Killers of the Flower Moon” é a sede pelo poder – e pelo dinheiro – levando homens a cometer atrocidades sem nenhum remorso. Mas o cineasta octogenário valoriza essa decantada obviedade ao dar ao filme um tempo muito particular, que se distancia dos padrões hollywoodianos de filmes rápidos e curtos (um padrão que permite tanto mais exibições – e, consequentemente, uma arrecadação maior – quanto facilita a ida do público a uma sala de exibição), mas, ainda assim, não soa arrastado (seus 206 minutos passando voando, inclusive) e nem parecem ter gordura – ainda que vários núcleos pudessem ser cortados sem prejuízo de entendimento da história, o roteiro apresenta uma trama robusta sem acelerar partes nem desmerecer histórias secundárias. Meticuloso, Scorsese soa memorável em um filme que desnuda a alma de um povo.
Assim como em “O Irlândes”, o “demônio” é vivido com sorrisos, frieza, crueldade e esperteza por Robert De Niro: ele é William Hale, que modestamente se apresenta como King. A fortuna de Hale cresceu devido a golpes, mas seu maior desejo é herdar o petróleo dos osages. Para isso, ele induz seus dois sobrinhos num plano que envolve casamento e assassinatos, e que manchará de sangue o território indígena. Lily Gladstone brilha como Mollie enquanto DiCaprio soa, quase todo o tempo, exagerado nos cacoetes de seu Ernest, um dos sobrinhos de King. A fotografia de Rodrigo Prieto é bela e exuberante, com diversos momentos de tirar o folego (valorizados em uma sala IMAX), assim como a trilha sonora original de Robbie Robertson, último trabalho do ex-The Band, falecido em agosto de 2023, combinada com música popular da década de 1920 (que Scorsese já havia “namorado” em “Gangues de Nova Yok”, de 2002) e canções nativas. O roteiro, reescrito pelo próprio Scorsese ao lado de Eric Roth, é minucioso em espelhar a maldade humana, e talvez esse seja um dos melhores resultados da carreira do cineasta – difícil ter alguma simpatia com Ernest como, por exemplo, com Henry (Ray Liotta) em “Goodfellas” ou mesmo Jordan (DiCaprio) em “O Lobo de Wall Street”.
Incontestavelmente excelente, “Assassinos da Lua das Flores” traz pequenos deslizes de atuação: além de DiCaprio, Brendan Fraser também soa exagerado na pele de um advogado corrupto; já Scott Shepherd se sai bem como o contido e apagado Byron Burkhart, o irmão canalha de Ernest; Cara Jade Myers está ótima como (a alcoolatra) Anna Brown, uma das irmãs de Mollie; Jesse Plemons é o Jesse Plemons de sempre como Tom White, um dos oficiais federais responsáveis pelo caso; o experiente John Lithgow interpreta o promotor Peter Leaward; e há, ainda, vários músicos que poderiam montar uma boa banda de saloon para o filme: Pete Yorn é Acie Kirby, um bandido especializado em bombas; Jason Isbel, um ex-Drive-By Truckers e atualmente solo, é cunhado de Mollie, pois casou com uma das irmãs, que morreu misteriosamente, e depois casou com outra (sim, de olho no dinheiro da família); Sturgill Simpson vive o assassino Henry Grammer; Charlie Musselwhite é Alvin Reynolds, peça chave na trama, enquanto Jack White faz uma ponta no encerramento, classudo.
A grande questão, porém – e ai é papo de crítico chato tentando observar e entender a obra dentro de uma carreira (genial) e de uma história do cinema –, é que “Assassinos da Lua das Flores” é absolutamente memorável, mas previsível, o que não é um ponto negativo, e sim uma característica da história. Inscreve-se, desde já, como um dos grandes filmes da carreira de Scorsese, mas, talvez, não o seu melhor – a concorrência é dura, sabemos. Assim como em “O Irlândes”, o cineasta caminha calmamente em um território conhecido, e consegue uma de suas melhores obras completas, como se lapidasse uma pedra bruta em busca de um diamante. “Assassinos da Lua das Flores” é esse diamante lapidado, mas não é “o” diamante. Cumpre sua função cinematográfica de maneira brilhante, tem potencial para conquistar vários Oscar, mas é, talvez, correto e/ou certinho demais, adjetivos que soam vazios na tentativa vã de encontrar um termo que traduza um sentimento estranho: a sensação de ver um baita filme tendo a noção de que é “apenas” um baita filme.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
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