CALMANTES COM CHAMPAGNE
Bob Dylan, Martin Scorcese e a História Universal

por Marcelo Costa
20/02/2003

Muita gente gosta de viver em casulos. A falta de (con)tato da internet, as facilidades de se poder viver sem sair de casa, o mundo visto pela janela e pela tela de tv: a impessoalidade reina em uma aldeia cada vez menor. O grande problema de ter o próprio umbigo como centro do universo é esquecer que lá se vão mais de 2000 anos e que, maxiclichê, para entender o mundo a sua volta é bom saber um mínimo de história.

Procurando não fugir muito ao assunto da coluna anterior (a descentralização da cultura norte-americana via música pop mundial), me apoio em literatura e cinema para avançar o sinal amarelo das discussões pseudofilosóficas, tendo como tema de fundo a história norte-americana. Conversa de boteco, manja. 

DYLAN E A MÚSICA POP

Bob Dylan é o cara. Um dos gênios dessa arte menor chamada música pop, Dylan é um fenômeno cultural e social que permite vislumbres maiores sobre a música como partícula de uma sociedade. Em Dylan, a Biografia, Howard Sounes expõe ao público facetas muitas vezes desconhecidas do ídolo. Da primeira página à última, Dylan é uma aula de cultura. Das mentiras de início de carreira (que Kurt Cobain e tantos outros também contaram), da inversão de papel de ídolo (a sociedade norte-americana queria um trovador na tradição da música folclórica e recebeu um jovem disposto a eletrificar o folk), das geniais sessões de gravação que validam a arte criada sem retoques, do sucesso à queda, do judaísmo ao catolicismo, dos famosos álbuns piratas que inauguraram a indústria dos bootlegs, de Woody Guthrie, Beatles, The Clash até rappers, electros e o escambau, Bob Dylan é Deus. E Judas. E o Demônio. Todos numa pessoa só (sim, sim, Mutantes). 

Dylan começou escrevendo canções simples inspiradas (quase sempre) em Woody Guthrie e em folk singers (muitos apresentados na soberba coletânea sêxtupla Anthology of American Folk Music) desconhecidos até criar sua própria persona poética escrevendo longas canções e arranjar, em 1965/1966, uma enorme briga com os puristas ao amplificar suas canções, o que o aproximou da ala rock and roll conquistando tanto admiração quanto repulsa dos artistas folk. Ninguém sabia o que aquele jovem de 25 anos estava propondo e o desconhecido sempre assusta aqueles que temem mudanças. O fato de Dylan eletrificar o folk virou de cabeça para baixo a música norte-americana, com estilhaços alcançando até mesmo o Brasil, afinal, em resumo, foi dali que Caetano e Gil partiram com idéias, três anos depois, para desenvolver a Tropicália (que, em essência, é bem maior que o fato de apenas se eletrificar o samba, mas há, ali, uma faísca). 

O caminho que a música pop tomou após o trio de álbuns Bringing It All Back Home, Highway 61 Revisited (ambos de 1965) e Blonde on Blonde (1966) desembocando no verão do amor de 1967 (não à toa, o grande ano do rock como arte, vide os lançamentos mais famosos de Beatles, Velvet Underground, Doors, Byrds, Pink Floyd, Beach Boys e Jimi Hendrix) teve repercussão indiscutível em tudo que foi feito em música nas décadas seguintes. 

Dylan, a Biografia lança luz sobre um dos artistas mais influentes do século XX. Enquanto alguém gasta páginas para tentar convencer que tal grupelho novo é fabuloso, Dylan, do alto de seus 62 anos (a completar) lança discos geniais como Time Out of Mind (1997) e World Gone Wrong (1993), desconhecidos por muitos daqueles que se aventuram a dissertar sobre música. 

World Gone Wrong merece destaque especial. Na época, desconfiado de que suas canções haviam perdido a força de outrora, Dylan centrou foco em covers, muitas delas retiradas de Anthology of American Folk Music. Anthology é importante fruto de uma ilegalidade. O etnomusicólogo Harry Smith reuniu, em 1943, antigas gravações em 78 rotações de canções escritas por bluesmens e sertanejos nas décadas de 20 e 30, sem pedir permissão e ignorando direitos autorais. A coletânea foi dividida em 84 partes, organizada em três categorias: Canções, Baladas e Música Social. Lançada em 1952 pela gravadora Folkways no formato de seis álbuns duplos, Anthology permitiu salvar do esquecimento uma parte tocante da história da música norte-americana. A coletânea foi relançada em 97, consistindo em três cds duplos e um longo álbum comentando música a música. Verdadeiramente, uma aula de história. 

Dylan, a Biografia foi lançada no Brasil no final do ano passado pela editora Conrad (www.conradeditora.com.br). Vale cada página, ainda mais se você é apaixonado por literatura, música e história. Também é perfeita para aqueles que preferem pedir pizza e comer em casa sozinho vendo tv, ao invés de ir com amigos a pizzaria. 

SCORSESE E O CINEMA ÉPICO

Abalada desde os ataques às torres gêmeas, Nova York ganha uma bela declaração de amor do diretor Martin Scorsese. Scorsese foge da questão 11/09/2001 dizendo que leu o livro de Herbert Asbury (escrito em 1928) no fim de ano de 1970, quando se apaixonou pelo texto e, desde então, resolveu que queria filmá-lo. Mais de 30 anos se passaram e o ambicioso projeto sobre criminosos rivais que disputavam as ruas da Manhattan do século XIX chega às telas brasileiras, trazendo Leonardo DiCaprio, Daniel Day-Lewis e Cameron Diaz a tiracolo em quase três horas de projeção. A favor, o fato de que, em praticamente nenhum momento, Scorsese derrapa para o pastiche ufanista. Gangues de Nova York é apenas uma boa história sendo apresentada por um excelente cineasta. 

Ambientado nos Estados Unidos entre os anos de 1846 e 1863, o filme conta como as gangues de imigrantes irlandeses e italianos, e posteriormente a Máfia, surgiram na cidade de Nova York. Violento, Gangues é sublime em retratar o período e é chave para se entender a sociedade norte-americana atual representada por dois partidos (um progressista e um tradicionalista, como na época, representados por imigrantes e nativistas). Cutucando a ferida sempre aberta do racismo (não só de cor, mas também de nacionalidade e religião), Gangues também permite ligação com a história da música. Em vários trechos, canções históricas irlandesas pontuam a cena, ligando a ação a Anthology of American Folk Music, já que várias das canções registradas por Smith eram baladas vindas da Grã-Bretanha que haviam sido passadas adiante por meio das gerações. 

Se historicamente, Gangues ganha pontos, o filme guarda, de cara, paralelos com épicos recentes do cinema (como Gladiador e Coração Valente). A vingança que acomete Amsterdam Vallon (De Caprio) por ter presenciado a morte do pai é a mesma que toma, por exemplo, William Walace (Mel Gibson) em Coração Valente. Muito parecidos, por sinal, os dois personagens aceitam, cada um ao seu modo, a tragédia familiar que lhes cai sobre os ombros. A consciência política brinda Wallace mais cedo que Vallon, já que o último é eternamente corroído pela vingança, aplacada apenas por uma paixão e pelo ganho de dinheiro fácil. Na cena principal, Vallon percebe o quanto sua luta pessoal era pequena perto da luta social (cena bem próxima à traição que sofre Wallace no fim de Coração Valente). 

É bela a cena final, com imagens da cidade de Nova York sendo sobrepostas sobre os túmulos de seus antepassados. E assim a história segue. Até o próximo capitulo. 

HISTÓRIA E A HISTÓRIA

Uma das desvantagens em se viver em 2003 é ter todo um emaranhado de fatos que aconteceram antes e, vez em quando, nos foge. Desconhecer esses fatos e sair por aí creditando milagres a falsos santos deveria estar numa nova reedição dos pecados capitais. Dylan e Scorsese contam, cada um a sua maneira, fragmentos da história norte-americana que muitos de nós desconhecem (eu, incluso). Ignorar é imperdoável. Não é o caso de ser nostálgico, e sim de saber valorizar as coisas e não acreditar que o centro do mundo é o próprio umbigo. Assim, antes de saber que The Strokes é bacana (e é), é preciso reconhecer que as bandas que exerceram influência sobre eles são ainda melhores. O mesmo acontecendo com Libertines, Interpol ou Yeah Yeah Yeahs. Prejudica, claro, o fato de uma banda obrigatória como o Velvet Underground não ter nenhum álbum em catálogo no país, assim como Stooges. É lógico que existem exceções, que bandas como Pixies, Nirvana, Smashing Pumpkins, Manic Street Preachers (entre outras e fora as quatro do texto anterior) conseguiram desenvolver um estilo próprio (tomado, quase sempre, de uma influência e retrabalhado a perfeição) que as coloca em pé de igualdade com muitas das grandes bandas de todos os tempos. Mas todas as bandas acima não foram fruto de um único disco. O fato de um produto ser novo não quer dizer, de forma alguma, que ele seja excelente, mágico, o melhor disco de todos os tempos da última semana. Senão, basta lançar um cd (algo extremamente fácil hoje em dia) e ficar esperando a coroação de louros. Se isto acontece, cabe a você, caro leitor, a função crítica de reconhecer quem vale a pena e quem vale apenas poucas audições (não resisti ao trocadilho). Música é algo, sobretudo, para ser adquirido passionalmente. Música é algo que deve tocar o ouvinte de alguma forma. Coisas que não se explicam. Esse é o prazer pessoal que a música proporciona, muito confundido por fãs como valores de qualidade, o que é modo copo vazio de ver a coisa. Agora, se você quer entender o mundo que o cerca, quer saber porque as coisas aconteciam de uma forma em determinado período e agora acontecem de forma diferente, você precisa estar atento à história. Você precisa saber que o mundo que nos cerca influência diretamente na arte que nos é apresentada. Assim, tudo que acontece hoje em dia é reflexo dos dias pós-modernistas que estamos vivendo, o que já é assunto para outra coluna. Como diria outro, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. O que você precisa é apenas distinguir a sua função no mundo e agir conforme ela. "What Are You Going To Do With Your Life?". Hein? 

********
Ps. A coluna anterior obteve um feedback excelente. Aqui no post script, algumas considerações: o chapa Alexandre Matias pontua a discussão inserindo o termo "glôbal".

O termo abre o leque da discussão, que era fechado na descentralização da cultura norte-americana via música pop mundial que, em último estágio, resultaria (resultará?) em molecada gringa andando pelas ruas de Nova York com exemplares de livros de Vinicius e Saramago debaixo dos braços, no original. A descoberta de que há uma cultura mundial. Mas o texto do Matias é bom exemplo de música inteligente que pode ocupar o espaço desse rock dejá-vu que anda ocupando as paradas. Um nome forte: Asian Dub Foundation. E tem disco novo deles saindo...

Ps1. Muita gente confunde crítica com gosto pessoal. Pessoalmente, por meus códigos de gosto (tudo aquilo que ouvi desde a infância e acabaram formando meu gosto pessoal) eu prefiro ouvir Coldplay a Orishas, Jorge Cabeleira ou Soda Stereo. Isso é gosto. Já a coluna versava sobre quem está fazendo coisa nova, explorando novos sons. Coldplay (por exemplo) é uma bandinha bacana, mas que está fazendo o mesmo brit rock que vem sendo feito na Inglaterra desde os anos 60. E, ao que parece, isso já está torrando o saco. Imagine-se passar quarenta anos ouvindo o mesmo estilo musical, com poucas variações. Assim, bandas fora do eixo anglo-saxão podem ser um sopro de vida na retomada da música como veículo de idéias. Teoria da Conspiração?

Ps2. Outras pessoas torcem o nariz toda vez que alguém diz que o rock morreu. A coluna anterior era um pouco mais extensa do que isso e (básico em jornalismo) retirar um parágrafo do todo muitas vezes passa ao leitor uma idéia inversa do que o texto propõe. No mais, se o rock anglo-saxão está morto, esse planetinha tem muitos lugares fora do mapa que podem apresentar música melhor (o próprio Brasil, claro). É só ter vontade e saber procurar e não ficar aceitando o mundo que é apresentado pelas organizações de informação. 

Ps3. Frank Black largou o punk chatinho que estava contaminando seus álbuns anteriores para tentar ser Neil Young. Black Letters Days, um dos dois álbuns que Frank lançou simultaneamente em 2002, ganha edição nacional e é primoroso, centrando foco em baladas confessionais.

Ps4. A leitura no momento é Movimento Romântico, de Alain de Botton. "Movimento" não é tão bom quanto o genial Ensaios de Amor, principalmente porque o casal de protagonistas, Alice e Eric, é chato pacas. O que dizer de uma garota que é fascinada por livros de auto-ajuda (no momento ela está lendo Entenda a Si Próprio e Seu Parceiro) e de um cara que usa cabelo escovinha? Bem, mesmo assim, em vários trechos, Botton esbarra no sublime: 

"Para Alice, só valia a pena ler livros que pudessem ajudá-la a resolver seus problemas. Com semelhante atitude, ela estaria incorrendo no maior pecado que um leitor pode cometer com relação à literatura, na visão idônea da crítica literária: tentar extrair da leitura algum tipo de lição. Afinal de contas, os livros não têm uma finalidade, como os aspiradores de pó ou as bombas de gasolina.(...) Tentar revestir a ficção de uma função didática pode ser tão ridículo quanto procurar saciar a fome com caviar". 

Ps5. Extermínio (28 Days Later - 2002), novo filme de Danny Boyle (Cova Rasa, Trainspotting e A Life Less Ordinary), é uma porrada no estomâgo. Outra vez, Boyle toma por base um roteiro do romancista Alex Garland (a estréia da dupla foi em A Praia) e o resultado é claustrofóbico. Uma infecção transmitida por macacos devasta a Inglaterra. Um rapaz (Jim) em coma acorda 28 dias após ser atropelado e encontra a terra da Rainha completamente abandonada. Os únicos moradores são monstruosos seres infectados e cadáveres, muitos cadáveres. Jim acaba encontrando alguns sobreviventes e, com eles, enfrenta a luta para sobreviver. Filmado em vídeo digital (que dá a obra um caráter tosco de documentário, perfeito com o tema) 28 Days Later tem cenas violentas, sangue e muito suspense. E quem leu o livro Blecaute de Marcelo Rubens Paiva vai encontrar muitas semelhanças nas duas histórias. 

Ps6. Boataria nos bastidores - Parece que a major BMG está planejando comprar o cast da gravadora Abril Music. Se o negócio não for fechado, a Abril Music deve encerrar suas atividades. A Abril andou tentando fechar negócio com várias gravadoras e a BMG parece ser a última cartada. A pergunta: como andam os planejamentos para o lançamento do terceiro álbum dos Los Hermanos, sucessor de "Bloco do eu Sozinho", planejado, inicialmente, para chegar às lojas entre março/abril de 2003? 

Ps7. Propostas de emprego, dinheiro virtual, garrafas de vinho, caixas de bombom e lasanhas de peperoni podem ser enviadas para maccosta@hotmail.com


Leia as colunas anteriores

#1 - Entrevista
#2 - O Futuro da Internet
#3 - Álvaro Pereira Júnior
#4 - Coldplay, Travis, Starsailor
#5 - Um cd e sete ps
#6 - Ano novo, vida nova. Exato?
#7 - Teoria da Conspiração