por Leonardo Vinhas
Quantas novas músicas são lançadas todos os dias? Acredito que mesmo um levantamento confiável mostrará números subdimensionados. É seguro dizer que nunca houve tanta oferta de música quanto ultimamente. O que nos leva a perguntar: o que é preciso para que um artista, ou mesmo uma única canção, capture nossa atenção e nos faça querer ir mais fundo no seu trabalho? A resposta objetiva a essa pergunta é uma preocupação de mercado. Mas para quem trata a música como arte e/ou objeto de amor, a resposta é tão ou mais difícil, e nem sempre aceita objetividade.
Em algum momento da década passada, ouvi Vivian Benford cantar uma versão levemente psicodélica e muito sensual de “Cheia de Manias”, do Raça Negra. A melodia totalmente refeita, o arranjo e, principalmente, a voz que soava naquela versão me pegou de jeito. Quem é essa mulher? Por que eu não a conheci antes? E cacete, como ela conseguiu?
Esse enigma não me deixou quieto, e fui atrás de outras gravações de Vivian. Apesar de muitos méritos, seu primeiro disco, “Jardim”, não mexeu muito comigo, mas eu ouvia registros que pipocavam no YouTube e no Soundcloud, e encontrava neles muitos dos elementos indizíveis e sedutores que apareceram naquela primeira canção que eu tinha ouvido.
Veja bem: “Jardim” tem momentos muito bons, inclusive, mas como álbum, soa excessivamente linear e melancólico aos meus ouvidos. A melancolia talvez refletisse questões pessoais da cantora, e a linearidade faz sentido como característica de um primeiro álbum. Mas havia outras matizes no trabalho dessa cantora carioca que não estavam tão evidentes no disco.
Esses matizes me levaram a convidar Vivian para participar do primeiro projeto fonográfico que produzi, a coletânea “Somos Todos Latinos” (2015). Vivian entregou uma versão shoegaze de “La Edad del Cielo”, de Jorge Drexler, que me fez chorar quando a escutei pela primeira vez, e que me emociona até hoje. Foi a primeira canção que recebi para o projeto, e credito a esse começo maravilhoso boa parte do meu entusiasmo pela produção de discos.
Nos anos que se sucederam, Vivian continuou gravando canções (inclusive para dois projetos do Scream & Yell: “Faixa Seis” e o tributo à Tom Bloch), entregou a primeira parte do seu segundo disco, “Concreto”, e estabeleceu uma parceira artística e afetiva com o cantor e compositor Rodrigo EBA! Em todos esses trabalhos, a linearidade de “Jardim” ficou definitivamente para trás. Vivian conseguiu unir suas referências de MPB, rock e indie pop em uma sonoridade em permanente transformação, que promete ganhar um corpo mais robusto em seu vindouro terceiro álbum, mas que já se avista na ótima segunda parte de “Concreto”.
Só que ainda me incomodava que algumas gravações daquela primeira época permanecessem praticamente inéditas, bem como sentia falta de algo que apresentasse o trabalho da artista de forma mais concisa e justa. Que mostrasse a amplitude de suas escolhas estéticas e a força (mesmo na delicadeza) de sua voz. E assim surgiu a ideia que levou a esse disco.
“Pomar” traz faixas do começo da carreira de Vivian, algumas delas pinçadas de sua primeira experiência solo em estúdio (que ela batizou de “Audiosfera Sessions”). Outras são mais recentes, importantes para mostrar seu lado compositora, que antes ficava ofuscado por sua porção intérprete. Há, ainda, gravações vindas de fontes tão diferentes quanto um projeto web ou um concurso cultural. As participações em projetos do Scream & Yell ficaram de fora do disco no streaming (já estão presentes nos álbuns referidos), para evitar a cabotinagem da autoreferência, mas surgem como faixas bônus no arquivo para download.
O que faz uma canção ou um artista capturar nossa atenção? A pergunta, como já se disse, é difícil de responder. Mas “Pomar” pode muito bem ser um desses discos, porque Vivian certamente é dessas artistas cuja música nunca vai embora da gente. E que, tal como os alimentos que você encontra em um pomar, nos nutre a ponto de tornar mais suportável enfrentar uma pandemia.
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Pomar – Ficha Técnica
Produção executiva e curadoria: Leonardo Vinhas
Masterizado por Gustavo Halfeld na casacájá (Brasília – DF)
Capa e direção de arte: Vivian Benford
Minidoc “Pomar” produzido e editado por Rodrigo EBA!
Distribuição digital: Tratore
Lançamento: Selo Scream & Yell
Faixa a faixa
por Leonardo Vinhas
01) “Cheia de Manias”: uma espécie de “hit desconhecido” do indie brasileiro. Quando saiu “Jeito Felindie”, o tributo ao Raça Negra lançado pelo site Fita Bruta, essa faixa impulsionou o disco e chegou além dos limites do universo indie. E muita gente queria saber de quem era a voz que conduzia essa versão à Nancy Sinatra. Pois bem, era de Vivian Benford, mas a identidade da intérprete permaneceu desconhecida. Para piorar, a faixa havia ficado de fora das plataformas de streaming, uma injustiça agora corrigida.
02) “Seo Zé”: Essa parceria entre Nando Reis, Marisa Monte e Carlinhos Brown é originalmente um samba, disponível no primeiro álbum do compositor baiano, “Alfagamabetizado” (1996). Como Vivian enxergou um rock de tons graves, com baixo à frente, naquele samba ambicioso, só ela pode explicar. Mas pra que explicar, se o mistério é bem mais interessante?
03) “Come On Closer”: Assim como a anterior, essa faixa saiu das “Audiosfera Sessions”, a primeira experiência solo em estúdio de Vivian. A original é da cantora galesa Jem, cujas composições foram presença constante em séries de TV na primeira década do século. Enquanto a original é mais épica e orientada pela estética do trip hop, a de Vivian segue um caminho mais orgânico, com reminiscências de britpop e Aimee Mann.
04) “#vemjoão”: A primeira composição de Vivian que ela gravou foi “#vemjoão”, lançada como single em 2019 – na verdade, em coautoria com Rodrigo EBA! e Duda Oliveira. Inspirada pelo nascimento de seu afilhado, a canção é um breve e sensível mergulho minimalista no universo MPBista da cantora.
05) “She Has No Time”: Durante seu auge, nos anos 00, a banda inglesa Keane era do tipo “ame ou odeie”. Vivian Benford e Geraldo Côrtes se encaixavam no primeiro caso, tanto que decidiram regravar um dos maiores hits da banda em uma versão bastante despojada e ainda mais delicada que a original.
06) “Distração”: Manoel Magalhães está entre os compositores preferidos de Vivian, tanto que ela já gravou diversas canções de sua autoria. Em “Distração”, gravada para a trilha sonora original do curta-metragem “Trilhas”, a parceria acontece também em estúdio: são de Magalhães a guitarra e o baixo da faixa.
07) “Eu Sou o Caso Deles”: A canção dos Novos Baianos era uma afetuosa quebra de expectativas no conflito de gerações dos anos 1970: a grosso modo, trazia o que a sociedade percebia como “hippies doidões” tratando com carinho as diferenças com as gerações que os precediam. Quase falada e totalmente acústica na gravação original, ganhou roupagem entre o grunge e o power pop. A gravação foi feita para um concurso promovido pela Oi Novo Som e só estava disponível no YouTube.
08) “Existo”: Outra parceria de Vivian com Rodrigo EBA!, “Existo” nasceu no projeto Canções sem Tempo, no qual Rodrigo EBA! convidava outros artistas para compor, gravar e finalizar uma canção em menos de um dia. Há a intenção de regravá-la para a segunda parte do disco “Concreto”, mas nesse registro, fica evidente a influência (assumida) de Guilherme Arantes no universo da Vivian compositora.
09) “Lamento Sertanejo”: O “Forró do Dominguinhos”, como também é conhecida essa canção, é também oriunda das “Audiosfera Sessions”, e vem tomada de tintas cinzentas e urbanas, acentuando a melancolia e o sentimento de deslocamento da letra original. Uma interpretação que faz sentido para Vivian, que sempre viveu em capitais, mas que também faz um triste sentido para um Brasil cada vez mais violentamente homogeneizado por uma urbanidade desenfreada, que sufoca os últimos resquícios rurais.
CATÁLOGO COMPLETO DO SELO SCREAM & YELL
SY00 – “Canção para OAEOZ“, OAEOZ (2007) com De Inverno Records
SY01 – “O Tempo Vai Me Perdoar”, Terminal Guadalupe (2009)
SY02 – “AoVivo@Asteroid”, Walverdes (2011)
SY03 – “Ao vivo”, André Takeda (2011)
SY04 – “Projeto Visto: Brasil + Portugal” (2013)
SY05 – “EP Record Store Day”, Giancarlo Rufatto (2013)
SY06 – “Ensaio Sobre a Lealdade”, Rosablanca (2013)
SY07 – “Ainda Somos os Mesmos”, um tributo à Belchior (2014)
SY08 – “De Lá Não Ando Só”, Transmissor (2014)
SY09 – “Espelho Retrovisor”, um tributo aos Engenheiros do Hawaii (2014)
SY10 – “Projeto Visto 2: Brasil + Portugal” (2014)
SY11 – “Somos Todos Latinos” (2015)
SY12 – “Mil Tom”, um tributo a Milton Nascimento (2015)
SY13 – “Caleidoscópio”, um tributo aos Paralamas do Sucesso (2015)
SY14 – “Temperança” (2016)
SY15 – “Ainda Há Coração”, um tributo à Alceu Valença
SY16 – “Brasil También Es Latino” (2016)
SY17 – “Faixa Seis” (2017)
SY18 – “Sem Palavras I” (2017)
SY19 – “Dois Lados”, um tributo ao Skank (2017)
SY20 – “As Lembranças São Escolhas”, canções de Dary Jr. (2017)
SY21 – “O Velho Arsenal dos Lacraus”, Os Lacraus (2018)
SY22 – “Um Grito que se Espalha”, um tributo à Walter Franco (2018)
SY23 – “A Comida”, Os Cleggs (2018)
SY24 – “Conexão Latina” (2018)
SY25 – “Omnia”, Borealis (2019)
SY26 – “Sem Palavras II” (2019)
SY27 – “¡Estamos! – Canções da Quarentena” (2020)
SY28 – “Emerge el Zombie – En Vivo”, El Zombie (2020)
SY29 – “Canções de Inverno – Um songbook de Ivan Santos & Martinuci” (2020)
SY30 – “SIEMENSDREAM”, Borealis (2020)
SY31 – “Autoramas & The Tormentos EP”, Autoramas & The Tormentos (2020)
SY32 – “O Ponto Firme”, M.Takara (2021)
SY33 – “Sob a Influencia”, tributo a Tom Bloch (2021)
SY34 – “Pra Toda Superquadra Ouvir”, Beto Só (2021)
SY35 – “Bajo Un Cielo Uruguayo” (2021) com Little Butterfly Records
SY36 – “REWIND” (2021), Borealis
SY37 – “Pomar” (2021), Vivian Benford
SY38 – “Vizinhos” (2021), Catalina Ávila
SY39 – “Conexão Latina II” (2021), Vários artistas
SY40 – “Unan Todo” (2022), Vários artistas
SY41 – “Morphé” (2023), Rodrigo Stradiotto
SY42 – “Paranoar” (2023), YPU (com Monstro Discos)
SY43 – “NO GOD UP HERE” (2023), Borealis
SY44 – “Extras de “Vou Tirar Você Desse Lugar”, Cidadão Instigado & Plástico Lunar (2024) – Com Allegro Discos
SY45 – “Smoko” (2024), Smoko
SY46 – “Trilhas Sonoras para Corações Solitários” (2024), Hotel Avenida
Discos liberados para download gratuito no Scream & Yell:
01 – “Natália Matos”, Natália Matos (2014)
02 – “Gito”, Antônio Novaes (2015)
03 – “Curvas, Lados, Linhas Tortas, Sujas e Discretas”, de Leonardo Marques (2015)
04 – “Inverno”, de Marcelo Perdido (2015)
05 – “Primavera Punk”, de Gustavo Kaly e os Hóspedes do Chelsea feat. Frank Jorge (2016)
06 – “Consertos em Geral”, de Manoel Magalhães (2018)
07 – “Toda Forma de Adeus”, Jotadablio (2023)
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