por Leonardo Vinhas
“Letra é coisa que a indústria da música inventou para ajudar a vender disco”. A frase, atribuída a João Donato, pode soar exagerada, mas revela a importância que as palavras ganham na canção pop. É compreensível: as letras podem gerar identificação ou expressar sentimentos e desejos de forma a gerar assimilação mais imediata no ouvinte. Mas daí a relegar a música instrumental a um segundo plano vai uma longa distância.
Na verdade, “música instrumental” virou um rótulo infeliz. A ausência de voz não torna uma composição do The Surfaris semelhante a uma do Tortoise. Por mais que tenha feito faixas sem vocais, o Kraftwerk não cabe no mesmo escaninho do Mulatu Astatke. Parece óbvio dizê-lo, mas não é. Quantas vezes você não ouviu um conhecido dizer que gosta de “música instrumental” e na verdade queria dizer alguma música para boi dormir, uma sequência de notas passível de ser ignorada durante a audição?
Ou, pior ainda, tal frase (“eu gosto de música instrumental”) pode ser entendida como “sou um ouvinte sofisticado e chique”, porque, de alguma forma, grande parte do imaginário coletivo assumiu que uma canção sem vocal é mais “classuda”.
Bobagens.
Música é música. E sem letra, compositores e instrumentistas ficam mais livres para dizer o que querem sem sublinhar as sensações com texto. Ninguém aqui quer desprezar os grandes poetas que colaboraram para fazer da música popular uma arte inesquecível, mas é bom lembrar que há muito a ser dito no silêncio entre as notas, nas mudanças de tom, nas construções de paisagens sonoras que palavra alguma seria capaz de exprimir.
Em todo o gênero cabe a criação exclusivamente instrumental. Claro, há aqueles em que essa é a linguagem principal (afrobeat, dub, jazz, surf music etc), mas mesmo os que são mais lembrados no formato canção (rock, pop, soul, samba, reggae e outros) abrigam tranquilamente o diálogo que usa instrumentos em vez de palavras.
“Sem Palavras” foi concebido para lembrar e reafirmar isso tudo. E não só por isso: também porque o Brasil tem uma riquíssima tradição de agremiações instrumentais, que remonta às bandas de baile dos anos 30 e 40, passa pela turma de soul e funk dos anos 1970 e vem desembocar no momento atual, em que pequenos (ou não tão pequenos) festivais dedicados ao gênero acontecem em todas as regiões do país, e casas noturnas dedicam noites inteiras a essa estética em sua programação regular.
Do pós-rock ao afrobeat, tem de tudo, para todos os gostos. Sejam solistas ou bandas com mais de 10 integrantes, sejam bissextos ou assíduos no palco, nunca houve tantos artistas dedicados à música instrumental no Brasil quanto hoje. E ao contrário do que se costuma pensar, o hermetismo não dá o tom. Tem gente bem pop nessa história. Mas, não custa lembrar, música instrumental não é um gênero. É só mais uma forma de se expressar.
E essa expressão está aqui, condensada em 11 recriações, a maior parte delas inédita e concebida exclusivamente para esse projeto. Os participantes foram solicitados a reinterpretar temas que fossem importantes em sua formação musical. Porque “sem palavras” também se refere a não ter como verbalizar o agradecimento à música que inspira nossas vidas.
É um panorama completo do que se produz hoje no Brasil? Claro que não. Seriam necessários muitos volumes para dar uma amostra justa de quanta coisa boa vem se produzindo nessa seara atualmente. Esse disco se propõe a ser um convidativo cartão postal para uma paisagem maior e ainda mais bela.
Boa viagem.
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Produção executiva e curadoria: Leonardo Vinhas
Masterização: Gustavo Halfeld
Arte de capa: Bruno Honda Leite
Concepção de capa e diagramação: Leo Siqueira
Lançamento exclusivo: Selo Scream & Yell
Ouça no Youtube: Playlist com todas as faixas aqui -> https://goo.gl/Z1CIIP
Ouça no Soundcloud: https://soundcloud.com/user-709659538/sets/sem-palavras-1
Download gratuito: http://www.mediafire.com/file/h5qzcycni9oksrp/Scream+%26+Yell+-+Sem+Palavras+%282016%29.rar
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Faixa a faixa por Leonardo Vinhas
1) “Buenos Aires, Hora Cero”, ruído/mm
Astor Piazzolla é, possivelmente, o nome da música argentina com maior reconhecimento fora de seu país. Suas peças já ganharam releituras que vão do chamamé ao heavy metal, mas nunca alguém havia realçado seu lado épico com tanta sutileza (contradição intencional) como os paranaenses ruído/mm (lê-se “ruído por milímetro”). O sexteto praticamente se apropriou da obra do mestre, transmutando a intensidade da madrugada portenha no embalo de uma urbe bela e caótica que pode existir em metrópole desse mundo.
2) “The Trooper”, Yangos
Se o original do Iron Maiden tratava da Carga da Brigada Ligeira (campanha militar a cavalo do exército britânico contra os russos no século XIX), por que os gaúchos da Yangos não poderiam transformá-la numa cavalgada pelos pampas? E foi isso que o quarteto de Caxias do Sul fez, se inspirando em elementos do folclore argentino.
3) “Always On My Mind”, Esperando Rei Zula
Geralmente citada como uma canção de Elvis Presley, “Always On My Mind” é uma composição conjunta de Johnny Christopher, Mark James e Wayne Carson. As primeiras versões datam de 1972, por Brenda Lee e Gwen McRae. Mais tarde no mesmo ano, o “Rei” a incluiria no lado B de “Separate Ways” e obteria grande sucesso (a canção retornaria as paradas nos anos 80 com o Pet Shop Boys). Os brasilienses do Esperando Rei Zula são mais conhecidos por sua interpretação da obra de Heitor Villa-Lobos sob a esfumaçada ótica jamaicana, mas deram a essa preciosa pedra romântica a mesma lapidada sensível e “pra cima” que é sua característica.
4) “Emoções”, Muntchako
Há muito tempo que Robertão esqueceu que sabe fazer dançar. Isso não é problema para o Muntchako, trio brasiliense que vai fundo na fusão de ritmos dançantes do mundo inteiro. Tomando aquela que virou quase uma “música-tema” do ex-parceiro de Erasmo Carlos, foi só passa-la por um filtro onde dubstep e música africana predominam.
5) “Monkey Man”, Pata de Elefante
A penúltima faixa de “Let It Bleed” (1969) foi reinterpretada pela Pata de Elefante a pedido da revista Rolling Stone para um especial de 50 anos da banda “quase homônima” à revista. Disponível apenas em vídeo, a versão foi finalizada em estúdio para a inclusão em “Sem Palavras”. Aqui os gaúchos, em “formação expandida” (seis músicos, o dobro do lineup original), acentuam o groove dessa esquecida pérola stone, e usam o trombone de Julio Rizzo para fazer o que a voz de Mick Jagger fazia na original.
6) “Black Sabiá (Symptom of The Universe)”, Skrotes
Em dezembro de 2013, o trio catarinense Skrotes lançou o EP “Deboche Ñ É Crime”, no qual desconstruíam quatro canções clássicas (de Tom Jobim, Black Sabbath, Stevie Wonder e Sepultura). “Passou em branco”, disse o baixista Chico Abreu. Convidados para refazer uma canção do Clube da Esquina, preferiram recuperar uma das melhores faixas do EP em questão, remasterizada para esse disco.
7) “The Telephone Call”, Magabarat
Primeira gravação da Magabarat como um duo (era um trio até o começo deste ano), a versão do hit do Kraftwerk assume com gosto elementos da década em que a original foi gestada (1986). Levada em sintetizador e bateria, mostra um lado mais pop dos caxienses e revela ainda sua influência eletrônica. De quebra, traz uma citação a “Boing Boom Tschak”, outra composição dos mestres alemães, misturada a mensagens telefônicas bem conhecidas por quem tem mais de 30 anos de idade…
8) “Wipe Out”, Felix Robatto
“Wipe Out”, clássico do The Surfaris, é um blues de doze compassos, acelerado para acompanhar o frenesi surfista. Mas o paraense Félix Robatto preferiu levar o tema para outras praias, e fez um “tecno surf brega”, expressão que ele cunhou para definir a sonoridade que dará o tom do seu próximo disco.
9) “Private Idaho”, Camarones Orquestra Guitarrística
O quarteto potiguar Camarones Orquestra Guitarrística acelera a já frenética canção dos B-52’s e usa suas guitarras para fazer o que parecia impossível: preencher o espaço deixado pelo inigualável jogo de vozes entre Fred Schneider, Kate Pierson e Cindy Wilson. A faixa foi gravada ao vivo para um vídeo do projeto Converse Rubber Tracks, e sai “oficialmente” aqui neste álbum.
10) “Baja”, Terremotor
O trio de Umuarama (PR) tras em suas fileiras Duda Victor, brasileiro que morou na Grécia e tocou (aliás, ainda toca) com a banda local The Dirty Fuse. A experiência grega fez com que Victor incorporasse um instrumento local, tzouras, em sua música, e é nesse tom de “surf mediterrâneo” que eles reinventam essa belezinha originalmente gravada pelos Astronauts e composta por Lee Hazlewood – parceiro de Duane Eddy e autor de vários clássicos instrumentais (“Rebel Rouser”, “Peter Gunn” e muitos outros) e jóias pop (entre elas, “These Boots Are Made for Walking”).
11) “Chacarera de las Piedras”, Mauricio Candussi
Atahualpa Yupanqui, pseudônimo de Hector Chavero Aramburu, está para a música folclórica argentina como Cartola está para a nossa canção popular. Portanto, não é de se estranhar que ela seja uma referência artística e afetiva na formação musical de Mauricio Candussi, a metade argentina do duo Finlandia (a outra é o brasileiro Raphael Evangelista). Em um de seus raros trabalhos solo, Candussi interpreta esse clássico com reverência, mas sem deixar de lado o vigor e o espírito contemporâneo.
Bonus Track: “Rockaway Beach”, Camarones Orquestra Guitarrística
Provavelmente a banda instrumental mais ativa nos palcos do país, a Camarones deixa claro que faz música para (se) divertir. Nada mais natural, portanto, que regravar o festivo clássico ramoneiro. O quarteto potiguar havia registrado essa versão em vídeo para um Popload Session em 2015, e cedeu a versão de estúdio para “Sem Palavras”.
CATÁLOGO COMPLETO DO SELO SCREAM & YELL
SY00 – “Canção para OAEOZ“, OAEOZ (2007) com De Inverno Records
SY01 – “O Tempo Vai Me Perdoar”, Terminal Guadalupe (2009)
SY02 – “AoVivo@Asteroid”, Walverdes (2011)
SY03 – “Ao vivo”, André Takeda (2011)
SY04 – “Projeto Visto: Brasil + Portugal” (2013)
SY05 – “EP Record Store Day”, Giancarlo Rufatto (2013)
SY06 – “Ensaio Sobre a Lealdade”, Rosablanca (2013)
SY07 – “Ainda Somos os Mesmos”, um tributo à Belchior (2014)
SY08 – “De Lá Não Ando Só”, Transmissor (2014)
SY09 – “Espelho Retrovisor”, um tributo aos Engenheiros do Hawaii (2014)
SY10 – “Projeto Visto 2: Brasil + Portugal” (2014)
SY11 – “Somos Todos Latinos” (2015)
SY12 – “Mil Tom”, um tributo a Milton Nascimento (2015)
SY13 – “Caleidoscópio”, um tributo aos Paralamas do Sucesso (2015)
SY14 – “Temperança” (2016)
SY15 – “Ainda Há Coração”, um tributo à Alceu Valença
SY16 – “Brasil También Es Latino” (2016)
SY17 – “Faixa Seis” (2017)
SY18 – “Sem Palavras I” (2017)
SY19 – “Dois Lados”, um tributo ao Skank (2017)
SY20 – “As Lembranças São Escolhas”, canções de Dary Jr. (2017)
SY21 – “O Velho Arsenal dos Lacraus”, Os Lacraus (2018)
SY22 – “Um Grito que se Espalha”, um tributo à Walter Franco (2018)
SY23 – “A Comida”, Os Cleggs (2018)
SY24 – “Conexão Latina” (2018)
SY25 – “Omnia”, Borealis (2019)
SY26 – “Sem Palavras II” (2019)
SY27 – “¡Estamos! – Canções da Quarentena” (2020)
SY28 – “Emerge el Zombie – En Vivo”, El Zombie (2020)
SY29 – “Canções de Inverno – Um songbook de Ivan Santos & Martinuci” (2020)
SY30 – “SIEMENSDREAM”, Borealis (2020)
SY31 – “Autoramas & The Tormentos EP”, Autoramas & The Tormentos (2020)
SY32 – “O Ponto Firme”, M.Takara (2021)
SY33 – “Sob a Influencia”, tributo a Tom Bloch (2021)
SY34 – “Pra Toda Superquadra Ouvir”, Beto Só (2021)
SY35 – “Bajo Un Cielo Uruguayo” (2021) com Little Butterfly Records
SY36 – “REWIND” (2021), Borealis
SY37 – “Pomar” (2021), Vivian Benford
SY38 – “Vizinhos” (2021), Catalina Ávila
SY39 – “Conexão Latina II” (2021), Vários artistas
SY40 – “Unan Todo” (2022), Vários artistas
SY41 – “Morphé” (2023), Rodrigo Stradiotto
SY42 – “Paranoar” (2023), YPU (com Monstro Discos)
SY43 – “NO GOD UP HERE” (2023), Borealis
SY44 – “Extras de “Vou Tirar Você Desse Lugar”, Cidadão Instigado & Plástico Lunar (2024) – Com Allegro Discos
SY45 – “Smoko” (2024), Smoko
SY46 – “Trilhas Sonoras para Corações Solitários” (2024), Hotel Avenida
Discos liberados para download gratuito no Scream & Yell:
01 – “Natália Matos”, Natália Matos (2014)
02 – “Gito”, Antônio Novaes (2015)
03 – “Curvas, Lados, Linhas Tortas, Sujas e Discretas”, de Leonardo Marques (2015)
04 – “Inverno”, de Marcelo Perdido (2015)
05 – “Primavera Punk”, de Gustavo Kaly e os Hóspedes do Chelsea feat. Frank Jorge (2016)
06 – “Consertos em Geral”, de Manoel Magalhães (2018)
07 – “Toda Forma de Adeus”, Jotadablio (2023)
Show de bola. Por que não colocam no Spotify?
Por questão de liberação de direitos. Quando são artistas distintos entre os homenageados, envolvem pedidos de autorização que tem um custo que eu ou outros produtores não conseguimos bancar em um projeto sem fins lucrativos.