Literatura: Em “Máquina de leite”, Szilvia Molnar mergulha na brutalidade do parto fugindo exaustivamente da romantização

texto de Gabriel Pinheiro

Um casal em Nova York aguarda a chegada da primeira filha, fruto de uma gestação planejada – na medida em que é possível planejar algo que sempre se abre frente ao desconhecido. Narrado pela mulher, “Máquina de leite” (“The Nursery” no original) explora a complexidade de todo esse processo que parece culminar – mas não se concluir, muito pelo contrário – no parto. A partir do nascimento da primeira filha, todo um conjunto de signos que antes pareciam conhecidos pela mulher na relação com o marido, com o trabalho, com a própria casa, se transformam. O primeiro romance de Szilvia Molnar é um lançamento da Todavia Livros com tradução de Marcela Lanius.

“Máquina de leite” é um romance sobre a solidão. Ainda que esta seja uma solidão irremediavelmente acompanhada. Mergulhamos aqui na rotina e na repetição da vida doméstica de uma existência que se transforma na necessidade de nutrir outro ser, repetidamente, incessantemente. “Sou prisioneira em uma prisão que eu mesma construí. Afinal, eu fiz Button e a desejei, e agora não posso sair daqui”.

Num texto febril, que avança e recua no tempo entre um capítulo e outro – do início do casamento ao parto, das tentativas de gravidez aos primeiros dias pós-nascimento, quando a mulher dá início a uma inesperada amizade com um vizinho idoso e viúvo – Szilvia Molnar parece traduzir na própria estrutura textual o sentimento de suspensão do tempo vivido por sua narradora. “Mas antes disso eu como e bebo e como e bebo de novo como se não houvesse amanhã, que é uma expressão engraçada porque o meu amanhã foi hoje e o meu hoje já é o meu amanhã”.

Se fala da solidão da maternidade, Szilvia, inevitavelmente, diz também do privilégio da paternidade. Enquanto o mundo exterior – do trabalho, das relações sociais – parece se fechar para a figura materna, o mesmo não acontece com o pai. Não só aqui na ficção, bem sabemos. “Ele disse estar aliviado por Button ter nascido no fim de semana, que assim ele não precisava faltar ao trabalho, ao passo que eu não tinha nenhuma noção de tempo (…)”.

Na figura de uma mãe e tradutora, Szilvia Molnar faz aqui um interessante jogo, em que a solidão e a necessidade de adaptação são elementos inerentes aos dois, digamos, ofícios. Se traduzir um texto requer adaptá-lo às regras de um novo idioma, sua protagonista encontra na maternidade também uma necessidade de adaptação – do corpo, dos desejos e da relação entre o eu e o mundo. “Se o trabalho de uma mãe é em grande parte um trabalho que não é visto, traduzir talvez seja muito mais maternal do que eu achava”.

“Eu era tradutora, mas agora sou uma máquina de leite” nos diz a narradora deste romance singular sobre a maternidade e as muitas facetas da depressão pós-parto. Fugindo exaustivamente da romantização e da normalização da vivência da maternidade, em “Máquina de leite”, Szilvia Molnar mergulha na brutalidade do parto e naquilo o que surge a partir desta experiência: um corpo que se transforma e uma relação com o mundo e consigo mesma que se modifica irreversivelmente – quando não, violentamente.

Szilvia Molnar / Foto de Ben Mistak

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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