Crítica: Denis Villeneuve faz o impossível e repete um milagre em “Duna: Parte II”

texto de Davi Caro

Ainda que não pareça em um primeiro momento, poucos seriam capazes de negar a magnitude do que o diretor Denis Villeneuve conseguiu alcançar em “Duna” (2021). As limitações impostas pela pandemia acabaram restringindo a experiência originalmente planejada, uma vez que as tomadas épicas e a cinematografia grandiosa do longa não escondiam seu objetivo inicial de ser projetado e assistido nas maiores telas possíveis, com o melhor sistema de som disponível. Mesmo assim, contra todas as expectativas, a adaptação do clássico de 1965 de Frank Herbert conseguiu não apenas escapar do estigma lançado sobre a subestimada e infame primeira transposição da história para o cinema (realizada por David Lynch, em 1984), como fez o improvável ao, centrando foco apenas na primeira parte da jornada de Paul Atreides (Timothée Chalamet), criar uma identidade visual imersiva e instigante, capaz de cativar mesmo aqueles pouco ou nada familiarizados com o material original. A ótima receptividade encontrada na crítica especializada, porém, carregava um mau presságio, ou uma espécie de receio: após uma excelente primeira investida, Villeneuve seria capaz de dar seguimento à fábula de intrigas políticas e alegorias intrincadas disfarçadas de ficção científica que envolvem a obra de Herbert? Seria a segunda parte desta história capaz de fazer jus à maestria exibida a princípio?

A chegada de “Duna: Parte II” (“Dune: Part Two”, 2024) aos cinemas finalmente trouxe a resposta há muito esperada: um jubilante “sim”. Mais uma vez superando inúmeros obstáculos impostos desde o início das filmagens, em julho de 2022 – incluindo greves de roteiristas e atrasos no lançamento, originalmente previsto para outubro de 2023 – o diretor repetiu o feito e construiu um épico de proporções poucas vezes vistas no cinema recente, criando a representação definitiva do livro original para o audiovisual e concluindo a narrativa de modo magistral, esmerado e, sim, muito grandioso.

Mesmo que pareça supérflua e óbvia, a pergunta “É preciso ver o primeiro filme para entender o segundo?” encontra sua resposta no próprio título: sim, não apenas é imprescindível assistir ao primeiro longa (disponível em streaming via HBO Max), como ver o primeiro antes de assistir ao novo filme torna a experiência muito mais enriquecedora. De fato, não existe preparação melhor para desfrutar dos muitos desdobramentos mostrados em “Parte II”, e é bastante possível enxergar os dois filmes como um só após sair da sala de cinema – o que também faz refletir sobre como poderia ter sido assistir ao primeiro filme dentro de uma sala de cinema (por que não um relançamento?), tamanha a diferença sentida na imensidão da produção.

Outro motivo para assistir aos dois filmes um logo após o outro tem a ver com a história em si. Tomando (pela primeira, porém não única vez) liberdades em relação à obra original, o novo filme se inicia exatamente onde o anterior parou: Paul e sua mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson) lutam para encontrar seu lugar em meio aos Fremen, tribo nativa do planeta Arrakis, após o ataque perpetrado pelos Harkonnen, com o sinistro Barão Vladimir (Stellan Skarsgard) à frente, aniquilando quase todo o clã Atreides, incluindo sua figura central, Duque Leto (Oscar Isaac). À medida que se adapta à vida no deserto e passa a integrar as linhas de combate contra os sanguinários inimigos, o jovem Paul encontra, na figura do líder Stilgar (Javier Bardem), um devoto da crença de que seu povo será salvo por uma figura messiânica, destinada a liderar os Fremen ao paraíso. Tal devoção se mostra bastante interessante à própria mãe do jovem guerreiro, por si só membro da irmandade Bene Gesserit, que vê na fé do povo de Arrakis uma forma de beneficiar seu filho, e a si mesma, a longo prazo. Conforme a devoção por Paul, agora denominado Muad’Dib e completamente integrado aos Fremen, se espalha rapidamente, tal crença cega também atrai a desconfiança do próprio rapaz e de sua companheira, Chani (Zendaya), que vêem as segundas intenções tanto de Stilgar quanto de Jessica como oportunistas e vampíricas.

A lenda do salvador Fremen se espalha ao longo dos planetas e passa a provocar medo tanto aos Harkonnen – sobretudo ao sobrinho de Vladimir, o brutamontes Rabban (Dave Bautista) – quanto ao próprio Imperador, Shaddam IV (Christopher Walken), que se revela como principal orquestrador ao ataque seguido de massacre contra os Atreides, e cuja filha, a astuta Irulan (Florence Pugh) se depara uma forma de combater a cada vez mais mítica figura de Paul no mais jovem e mais sanguinário dos Harkonnen, Feyd-Rautha (Austin Butler). O reencontro de Paul com Gurney Halleck (Josh Brolin), antigo aliado de seu pai e sobrevivente do ataque, adiciona mais uma peça no delicado jogo que levará o jovem ao papel que tantos acreditam ser seu destino – apesar de premonições apocalípticas acompanharem sua ascensão à liderança dos Fremen.

É difícil, senão impossível, sintetizar a história concebida por Frank Herbert sem soar no mínimo insano aos não-iniciados, e Denis Villeneuve mostra saber disso melhor do que ninguém. Trata-se de mais um dos acertados motivos pelos quais o primeiro volume da saga foi dividido em dois longa-metragens. Evitando excessos, intercalando cenas de ação eletrizantes e diálogos carregados de tensão e peso, e fazendo leves adaptações em prol de um melhor ritmo, o diretor concretiza o que muitos já julgaram impossível: traduzir de modo ao mesmo tempo fidedigno e inovador um dos trabalhos mais influentes da história da ficção científica. E boa parte disso tem a ver com seus ágeis desvios do maniqueísmo tradicional, exibindo os violentos Harkonnen como vilões enquanto mostra em primeira mão a ascendente megalomania do herói Paul, conforme os primeiros lutam para assegurar sua soberania e o último pula do ceticismo para a aceitação de seu papel designado – e as irreversíveis consequências para os dois lados.

Falando em ceticismo, qualquer desconfiança relativa ao desempenho do protagonista na segunda e primordial etapa de sua jornada se dissipa ainda nos primeiros minutos do filme: Timothée Chalamet encanta em sua ingenuidade e honestas intenções ao lado do exército de nativos, e sua expressiva atuação só faz da evolução de seu personagem mais palpável e mais empática, mesmo que não menos conflituosa. Um curto, porém poderosíssimo monólogo na metade do filme, porém, é o momento chave de seu amadurecimento no papel. Mais do que seu trabalho individual, a riqueza de suas relações com os colegas de elenco são singulares, e servem para destacar o rico desenvolvimento de figuras já presentes no trabalho original: Rebecca Ferguson causa calafrios conforme ascende à posição de Reverenda Madre, e principal arauto do novo salvador, ao mesmo tempo que serve aos próprios propósitos; de forma parecida, a incredulidade de Josh Brolin conforme o estrategista Gurney se dá conta da devoção do povo por seu antigo protegido é latente, bem como a perplexidade do Rabban de Dave Bautista, atônito frente ao potencial de guerra dos seguidores de Muad’Dib. De lados opostos, a personagem de Chani vivida por Zendaya e o Stilgar de Javier Bardem ajudam a representar a dualidade do conflito exibido aqui: ao passo que a primeira luta pela causa de seu povo, sem se importar com profecias opressoras, o abandono com o qual o segundo se entrega à causa de seu Messias (sem deixar seus interesses pessoais de lado) é contagiante, embora em determinados momentos exagerada, e ajuda a trazer um pouco de alívio (mesmo que não tão cômico) a alguns trechos.

Também merecedoras de destaque são as novas adições ao elenco, bem como personagens com papéis mais reduzidos no filme anterior: a repugnância do Barão Vladimir é um testamento à entrega e ao talento de Stellan Skarsgard, e Charlotte Rampling assombra no papel da veterana Bene Gesserit Gaius Helen, que se prova instrumental na manutenção do conflito e fundamental para a construção do desfecho. A figura ao mesmo tempo imponente e vaidosa de Shaddam IV é magistralmente trazida à vida por Christopher Walken, que transpõe com perfeição a impotência de seu personagem diante de um conflito de tamanha magnitude, e seu contraste junto à princesa Irulan de Florence Pugh é repleto de frescor em seu conflito, mais do que geracional, ético. Porém, o destaque fica mesmo para Austin Butler, na pele do psicótico Feyd-Rautha: deixando definitivamente para trás a performance um tanto caricata de Sting no mesmo papel em 1984, sua interpretação (ausente no primeiro filme) é ameaçadora e perturbadora em proporções iguais, com sua introdução fazendo justiça a um dos mais singulares personagens do livro original – tanto como a antítese do campeão dos Atreides quanto como a síntese do que há de mais maléfico no clã Harkonnen. Também presentes no elenco, Léa Seydoux e Anya Taylor-Joy fazem valer suas breves, porém decisivas aparições, suas personagens envoltas em mistérios que apontam para o futuro, mas já conhecidas pelos fãs mais familiarizados com a mitologia de “Duna”.

Como no primeiro filme, a cinematografia – a cargo de Greig Fraser – é fundamental para a tangibilidade do universo representado na tela, e a grandiosidade tanto do planeta Arrakis quanto do lar dos Harkonnen, Giedi Prime, é de encher os olhos. A transição para o preto-e-branco na introdução de Feyd-Rautha, inclusive, é um dos momentos de maior destaque do filme, e o conflito final, intercalando ambientações fechadas e tomadas abertas nas vastas dunas do planeta central à história, também é repleto de trechos deslumbrantes. Impossível não ressaltar a recompensadora e impressionante representação dos Shai-Hulud (os populares vermes gigantes que habitam Arrakis) em passagens já mostradas brevemente nos trailers, mas que ganham em proporção e significância junto ao enredo como um todo. “Significância”, aliás, é um termo que se aplica com perfeição à trilha sonora de Hans Zimmer, marcante tal qual no primeiro longa, e que aqui ganha novas pinceladas de instrumentação que ajudam a aprofundar a história e a sensação de imersão.

Sutis mudanças em relação ao primeiro livro e chocantes revelações tomam conta do roteiro, sobretudo conforme o filme se encaminha para seu antológico, sombrio e inevitável, clímax. Domando todas as reviravoltas que tomam conta de seus personagens com desenvoltura e espontaneidade, Denis Villeneuve cumpre o que promete, de maneira memorável, e entrega uma segunda parte digna da faceta alegórica da obra original, em seus sutis comentários sobre opressão, aniquilação cultural e imperialismo (que não devem passar despercebidos aos mais atentos, sobretudo àqueles que vêm acompanhando o que acontece ao redor do mundo; qualquer semelhança, afinal, não é mera coincidência). Ao mesmo tempo bastante conclusiva e repleta de acenos a possíveis futuras adaptações dos livros seguintes, “Duna: Parte II” fecha o círculo iniciado em 2021 de forma graciosa e épica, desafiando todos aqueles descrentes numa adaptação digna de uma obra elementar como esta, naquele que pode ser, desde já, um dos filmes do ano. E não há ceticismo que aguente: Villeneuve não fez quaisquer promessas para o futuro, mas, caso seja de interesse do público (e certamente será), esta não deve ser sua última passagem pela mitologia de Frank Herbert. A julgar pelo por seu mais novo épico, afinal, o diretor pode passar longe de ser messiânico, mas já se provou capaz de realizar uma ou duas obras, no mínimo, milagrosas.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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