Crítica: Em “Ferrari”, com Michael Mann esbanjando vitalidade, culpa e morte são elementos presentes

texto de Leandro Luz

Para Enzo Ferrari, quanto mais eficiente uma coisa é, mais bela ela se torna. A reflexão nos é exposta em um diálogo sobre engenharia e automobilismo entre ele e Piero, o filho bastardo de 10 anos do protagonista. Apesar da pouca idade, o menino é fascinado por carros e pelo trabalho do pai, que comanda, obsessiva e autoritariamente, a empresa de carros esportivos mais famosa do mundo. O enlace entre a eficiência e a beleza traduz o cinema de Michael Mann, desde a maneira de se filmar a noite e o trabalho em “Profissão: Ladrão” (1981), passando pelo duelo magnânimo entre Hanna/Pacino e McCauley/De Niro em “Fogo Contra Fogo” (1995), até a composição das luzes e das texturas da cidade em “Miami Vice” (2006). O cineasta, com 81 anos nas costas e esbanjando vitalidade, entende como poucos que os temas e os personagens de suas histórias só podem atingir a excelência quando a forma e o conteúdo estão em simbiose.

Em seu trabalho mais recente (após um hiato de 8 anos desde o ótimo e por vezes injustiçado “Hacker”, lançado em 2015), Michael Mann mais uma vez alcança a alquimia necessária ao seu ofício, escancara um estilo só seu e sustenta o filme no vai e vem entre as sequências eletrizantes dos carros na pista e o drama confinado aos interiores. Mann amarra tudo com muita elegância e fabrica uma biopic que não faz questão de atender ao gosto médio vigente. Aqui não há pressão por uma abrangência desmedida com relação à vida do biografado. Em “Ferrari”, o passado e alguns fatos históricos são evocados sem a necessidade de se criar arcos dramáticos em outras temporalidades para além da proposta pelo filme.

O ano é 1957 e Enzo Ferrari (Adam Driver) prepara a sua equipe de pilotos para correr a próxima (e última, historicamente, pelo menos em seu formato tradicional) Mille Miglia, a corrida automobilística de longa distância com o calamitoso circuito de ida e volta entre as cidades italianas de Bréscia e Roma. O casamento de Enzo e Laura (Penélope Cruz) está em frangalhos, assim como a saúde financeira da empresa que administram juntos – apesar de bem sucedida nas corridas, a companhia não lucra o suficiente com as vendas para se manter comercialmente viável a longo prazo. Vencer a corrida pode salvar a Ferrari. No entanto, outros obstáculos são postos no caminho.

Boa parte das atribulações matrimoniais passa pela morte recente do filho do casal, que deixa ambos devastados. No entanto, é em virtude da infidelidade de Enzo, fato percebido desde sempre por Laura, que se estabelece o caos no relacionamento dos dois, e que se torna um verdadeiro pesadelo quando ela descobre a existência de Lina Lardi (Shailene Woodley) e do pequeno Piero (Giuseppe Festinese). Para Laura, mais do que a mera existência de amantes passageiras, a vida paralela que o marido desfruta com Lina e o filho (de certo modo, ela vê Piero como um substituto, para Enzo, do seu próprio Dino, recém falecido), é algo absolutamente doloroso e imperdoável. Como aceitar que o seu marido tenha as dores amenizadas por uma segunda família enquanto ela definha sozinha em amargura? Esta solidão, a propósito, é muito bem retratada pelo exímio trabalho de Erik Messerschmidt na fotografia e de Maria Djurkovic no design de produção, que em colaboração com a equipe de direção de arte ressaltam as emoções e os conflitos internos de Laura a partir da escuridão que permeia a sua imagem.

Tal resultado é alcançado pelo uso de cores fechadas e até mesmo pela escolha expressiva do papel de parede dos cômodos, do estilo pesado e duro dos móveis e objetos que parecem habitar há séculos a casa dos Ferrari. Cabe também ressaltar a criteriosa decupagem, que frequentemente oprime Laura e as demais personagens à sua volta (a mãe de Enzo, os empregados) com uma profundidade de campo reduzida ou com o plano de fundo chapado, além da supressão de qualquer iluminação natural. Em contrapartida, nota-se, na casa de Lina, uma abordagem completamente oposta, com espaços muito bem iluminados e arejados, objetos de cena e figurinos de cores mais claras e suaves, que até mesmo ganham um aspecto “humilde”, apesar da imponência da mansão vista do exterior. A dualidade que se estabelece a partir da arquitetura desses espaços evidencia a tragédia das relações em “Ferrari”. A única exceção, o fato que rompe com essa relação entre os ambientes internos e as personagens está em um dos únicos flashbacks que Mann se permite filmar, que revela por uma fração bem pequena de tempo como era o início do casamento de Enzo e Laura, a única vez em que Penélope Cruz esboça um sorriso e é banhada por luzes mais alaranjadas. O momento singelo se insere em uma das sequências mais belas da carreira de Mann, na qual um amálgama de planos protagonizados por diversos personagens são entrecortados e conduzidos a partir de uma apresentação de ópera.

Pouco se sabe da vida de Laura Ferrari, inclusive por meio do livro no qual Troy Kennedy Martin se inspirou para escrever seu roteiro (“Enzo Ferrari: The Man and the Machine”, publicado por Brock Yates em 1991). Cruz, portanto, demonstra ter realizado uma pesquisa enorme e trabalhado com obstinação para construir a sua personagem, tarefa dificílima justamente pelo risco de ser percebida simplesmente como uma mulher histérica e desequilibrada. O grande acerto da atriz, nesse ínterim, foi compreender que o estado emocional de Laura está nos extremos, e a sua interpretação é inteligente e eficaz (e portanto bela) ao flutuar entre a explosão (o tiro ameaçador que zune aos ouvidos do marido logo no início) e a absoluta racionalidade (a negociação pelo controle da empresa em um momento chave). Cruz vai além da habitual caracterização da “esposa traída” e da genérica interpretação da “mulher forte”; ela se apropria de reações muito complexas como o luto, a negação, a depressão, a fúria, e crava gestos duros e olhares devastadores, tanto em sua violência quanto em seu desespero, para criar contornos críveis e corajosos, que passeiam entre o orgulho e o pudor, a nobreza e a vilania.

Outro ponto de destaque em “Ferrari” reside no modo como a conexão nevrálgica entre o prazer e a pulsão de morte é abordada. A Fórmula 1 (e demais categorias) como atração esportiva parece mover cada vez menos o seu público na mesma medida em que todo o seu aparato tecnológico passa a privilegiar a segurança dos esportistas. Não é incomum escutarmos críticas como “bom mesmo era no meu tempo… os pilotos tinham que dirigir de verdade!” ou “hoje em dia não tem piloto, os carros fazem tudo sozinhos, é tudo automático!”. O fato é que, em 1957, os riscos que precisavam ser corridos para participar do esporte eram enormes (durante os 30 anos de história da Mille Miglia, por exemplo, mais de 50 pessoas foram mortas, entre pilotos, copilotos e espectadores). Nesse sentido, Mann se mostra muito consciente do vespeiro em que se encontra e por isso mesmo coloca Enzo e as suas elucubrações no centro da narrativa. Constantemente, Mann opta por filmar a nuca de Adam Driver, o que ajuda a construir a persona intransponível e misteriosa do commendatore, como frequentemente é chamado pelos ao seu redor. Quando a câmera o registra de frente, de óculos escuros ou não, a sua cabeça ou o seu olhar estão quase sempre apontados para o horizonte, como se ele a todo instante calculasse os múltiplos riscos de seu ofício: a integridade de seus carros, a sobrevivência de sua empresa, as consequências de precisar assumir a perda de uma vida.

Não que a vida de seus empregados em si fosse desimportante para Enzo, mas logo cedo ele próprio nos ensina que, devido à sua experiência como piloto no passado e às trágicas mortes de amigos, manejou criar uma espécie de barreira psicológica diante da ideia da morte. Seus pilotos entram de livre e espontânea vontade nos carros, e se o fazem sabem que correm esse risco. O que “Ferrari” deixa explícito é que os pilotos não apenas são dotados de consciência deste fato, mas desejam correr o risco, anseiam pelo compulsivo sentimento de adrenalina. O sucesso e a vitória na vida desses competidores, segundo o protagonista, só podem ser alcançados se eles forem os últimos a pisar no freio, se conseguirem sustentar até o limite a possibilidade de causar um acidente, enfim, se o seu apetite desvairado para a morte for maior que o dos adversários.

“Se você entra em um dos meus carros, você entra para vencer”, atesta Enzo. Driver encarna muito bem o seu personagem, perdoadas as derrapadas aqui e acolá no trato com o sotaque italiano (todos os atores sofrem desta imposição patética de se falar inglês com sotaque – fator desimportante diante das tantas possibilidades erigidas pelo filme). Aliás, todo o elenco se esforça para dar peso aos personagens, ainda que alguns tenham pouquíssimo tempo de tela, como é o caso dos pilotos que pouco conhecemos, à exceção de Alfonso de Portago (Gabriel Leone, em sua estreia em produções internacionais), que ganha maior importância dramática por duas razões: a primeira é que Portago é o único, fora do círculo familiar de Enzo, que flutua entre a vida privada e a profissional do protagonista, segundo porque o piloto tem um papel fundamental no desfecho do filme, permitindo que o espectador se regozije com a sua ânsia pela identificação direta com a trama.

Leone cumpre bem o papel de galã obstinado. A câmera de Mann se enamora pelo rosto do ator e garante que um dos momentos midiáticos mais simbólicos e fantasmagóricos da história do esporte seja registrado também no cinema: em determinado ponto da Mille Miglia (nessa altura do texto serão abordadas informações sensíveis a respeito do desfecho da trama), durante os breves segundos em que o seu carro é abastecido para seguir com destino à segunda parte do circuito, Alfonso de Portago e Linda Christian (Sarah Gadon), sua namorada, interagem; na vida real, o exato momento em que Linda se inclina para dentro do carro para Fon, apelido carinhoso dado ao espanhol, foi registrado por um fotógrafo desconhecido e a imagem ficou conhecida como “Il bacio della morte” (“O beijo da morte”). A fotografia é mesmo assombrosa porque se fixa nos olhos hesitantes e alarmados de Linda, enquanto Fon a beija de olhos fechados. Instantes depois deste que se tornou o último encontro do casal apaixonado, Fon morre em um acidente fatal junto com o seu copiloto e nove dos espectadores que celebravam a passagem dos carros à beira da estrada.

Culpa e morte são elementos presentes em “Ferrari” desde o princípio. Seja na dupla visita, uma seguida da outra, do casal prestando homenagens e caindo em lágrimas, cada um ao seu modo, junto ao túmulo do filho, seja na fala amargurada da mãe de Enzo que o massacra por não ter morrido no lugar do irmão durante a guerra. Driver e Cruz conduzem a dinâmica do seu relacionamento a base de gestos que provocam tiros, mágoas e desejo por vingança. Ela o culpa injustamente pela morte do filho. Ele não faz absolutamente nada para remediar a insensibilidade para com a esposa. A complexidade de Enzo como personagem, apesar da canalhice incontestável de suas ações, também se destaca, e Mann consegue dar peso à sua relação com Lina e Piero, repleta de conflitos, apesar de um pouco mais brandos do que os que trava com a esposa. A zanga principal se dá pelo fato dele não querer assumir o filho publicamente, apesar de participar ativamente de seu cotidiano.

Ao final, o filme parece atestar que nem todos os conflitos podem ser resolvidos, e ainda que não haja qualquer espécie de redenção para seus personagens, Mann acredita na evocação da vida: no último plano de “Ferrari”, pai e filho caminham de mãos dadas pela saída do cemitério; o que está morto e o que ainda vive, para Mann, podem e devem coexistir.

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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