Cinema: “Monster” faz mistura certeira de drama e mistério sobre o corriqueiro exercício humano de julgar os outros

texto de Eduardo Juliano

“Monstro: SUBSTANTIVO
1. qualquer ser ou coisa contrária à natureza;
2. anomalia, deformidade, monstruosidade”

Antes de mais nada é necessário alertar que “Monster” é um filme devastador. O vencedor do prêmio de melhor roteiro no festival de Cannes em 2023 é um drama dilacerante guiado por fortes elementos de suspense e mistério, no qual a trama desafia nossas certezas o tempo inteiro.

O exímio diretor japonês Kore-eda Hirokazu (“Assunto de Família”) parece ser um expert em traduzir em imagens a verdadeira natureza humana e nos provoca justamente numa de nossas características mais marcantes: a nossa propensão a julgar os outros. Kore-eda sabe que mesmo que nos falte elementos suficientes para tal julgamento, a natureza humana nos permite, baseados em nossas próprias crenças e suposições, proferimos nossas sentenças, demonizando tudo aquilo que não compreendemos.

A trama inicialmente segue uma mãe, que após o incêndio de um prédio no bairro em que mora, percebe uma mudança brutal no comportamento de seu filho pré-adolescente. A criança adota uma postura totalmente arredia e estranha. Passa a chegar da escola com alguns hematomas, além de dar sinais de perturbação mental, desorientação e comportamento autodestrutivo.

A estrutura em três atos bem definidos na qual o filme é montado nos permite acompanhar a mesma história por três pontos de vista diferentes, porém complementares: o da mãe, o do professor e o do garoto. Como num imenso quebra-cabeças, vamos sendo munidos das peças que os pontos cegos de observação de cada personagem não nos permitiam enxergar antes. Então o recurso da narrativa em looping através de três observadores diferentes, além de nos fazer mudar de opinião a cada trinta minutos, causa perplexidade diante dos desdobramentos e consequências que aqueles personagens sofrerão pelas mãos de uma sociedade que nunca terá todas as peças, porém julga como se as tivesse.

Interessante notar como a percepção de cada personagem vai revelando mais camadas, apesar dos fatos e das repercussões continuarem sendo exatamente as mesmas. Daí a genialidade que deu o merecido reconhecimento ao roteiro do Yûji Sakamoto em Cannes. Algo que precisa ser elogiado também são as performances convincentes de todos os atores, principalmente dos atores mirins na parte final do filme. Podemos citar também mais um belíssimo trabalho do compositor Ryuichi Sakamoto, nesta que foi lamentavelmente sua última trilha sonora antes de falecer em março do ano passado.

Os dois primeiros atos, centrados respectivamente na mãe e no professor, são extremamente tensos, pois temos o hábito de achar que os adultos conseguirão explicar logicamente o que está acontecendo e que serão capazes de responder à pergunta que norteia a obra: “Quem é o monstro?”, repetida várias vezes ao longo do filme e quando essa resposta finalmente vem no terceiro ato, ela vem através dos olhos das crianças e é devastadora. A conclusão aterradora é um soco no estômago que nos faz perceber o quanto estivemos errados o filme inteiro.

Não me atrevo aqui a destrinchar os motivos e as causas pelas quais a nossa perspectiva, tão cheia de pontos cegos, molda a forma como nossa sociedade enxerga e julga uns aos outros. Nos acostumamos a condenar quase que automaticamente nos tribunais de nossas mentes afiadas, prontas para distribuir sentenças sempre que nos deparamos com algo que nos pareça errado ou injusto. Então instintivamente tomamos partido, damos razão ou condenamos, passamos adiante as versões distorcidas de acontecimentos que não dominamos bem e então o mundo vai sendo moldado, eleições vão sendo decididas, inocentes vão sendo incriminados e/ou criminosos vão sendo absolvidos.

“Monster” é um filme que escancara isso através de uma narrativa que faz os espectadores experimentarem o sabor amargo da vergonha de julgar errado, e se esse sentimento nos fizer parar nem que seja por um minuto antes de proferirmos nossas sentenças no dia a dia, este filme não poderá ser considerado nada menos que uma obra-prima.

– Eduardo Juliano é administrador e cinéfilo. Também escreve no Urge :: A Arte nos conforta

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