Crítica: “Saltburn”, de Emerald Fennell, é o Botafogo da temporada 2023 de cinema

texto de Marcelo Costa

Começo dos anos 2000, e um jovem notadamente inteligente e CDF consegue uma vaga (como bolsista, ou seja, de família “humilde”) na prestigiada Universidade de Oxford, lar de bem-nascidos filhos da aristocracia britânica. Ele é Oliver Quick, um garoto levemente rechonchudo de bochechas vermelhas solenemente ignorado por 99% de todos os seus “companheiros” de universidade – com exceção de um rapaz gênio em matemática que, assim como Oliver, tem dificuldade em se socializar.

Para muitos, o destino de Oliver em Oxford estaria selado para o anonimato completo desde o momento em que ele pisou na universidade até seu singelo desaparecimento, mas o acaso, sempre ele, apronta das suas mais uma vez, cruzando o caminho do pobre garoto pobre com o de Felix Catton, riquinho filho de uma família excêntrica e endinheirada, que vive o tédio da alta burguesia em um imenso castelo que já foi morada de reis da Inglaterra em séculos passados, e que atende pelo nome de… Saltburn.

Felix, que além de fama e dinheiro ainda foi abençoado com um rostinho bonito tipo Reynaldo Gianecchini adolescente, se encanta com a história dramática (com requintes de tragédia) do novo amigo com jeitinho de nerd, e “adota” o rapaz como seu animalzinho de estimação de verão, convidando-o para passar um tempo em Saltburn na companhia da família Addams, ops, Catton: o pai Sir James (Richard E. Grant), a mãe Lady Elspeth (Rosamund Pike), a irmã bulímica Venetia (Alison Oliver) e o primo falastrão Farleigh (Archie Madekwe), que também estuda em Oxford. O que poderia dar errado, não é mesmo?

A atriz, diretora e roteirista britânica Emerald Fennell já tinha um nome respeitado no meio artístico por seu ótimo trabalho nas séries “Killing Eve” (2018) e “The Crown” (2019/2020), dentre outros, quando debutou como diretora e roteirista com o longa-metragem “Promising Young Woman” em 2020, um filmaço absolutamente irrepreensível que tem como único grande defeito o título idiota escolhido para o mercado brasileiro, afinal nenhuma vingança pode ser tão bela a ponto de… bem, você sabe, certo? “Promising Young Woman” ganhou 33 prêmios, a maioria deles (incluindo Oscar e Bafta) valorizando o roteiro original impecável de Fennell. Com um primeiro turno brilhante, Fennell retorna aos holofotes com “Saltburn”, seu segundo filme de material original… e (assim como o Botafogo) decepciona. Estava tudo nas mãos da roteirista (do alvinegro carioca)…

“Saltburn” tem 131 minutos, e aos menos 100 são excelentes. Emerald consegue desenvolver os dramas de seus personagens com bastante solidez diante de um cenário repleto de momentos… intensos. Da busca insaciável pelos resquícios do esperma “de seu amado” após uma masturbação em uma banheira até sexo oral em período menstrual (Cascavelletes cairia bem na trilha), “Saltburn” choca/provoca ao mesmo tempo em que distrai espectadores que não conseguem ficar com um olho no pên.., ops, peixe e outro no gato, e acabam se rendendo à “depravação” enquanto Fennell constrói seu dispensável joguinho de espelhos.

Emerald, no entanto, tem a seu a seu favor um elenco matador. Barry Keoghan, que brilhou em 2022 no desavergonhadamente engraçado “Os Banshees de Inisherin”, já tinha mostrado dom para a psicopatia no sublimemente mórbido “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), e brilha novamente como Oliver (aliás, uma dúvida: personagens já ganharam Oscar? Pesquisar). Jacob Elordi vem enfileirando boas atuações (ele também é o Elvis de Sofia Coppola em “Priscilla”) e está muito bem como Felix enquanto Rosamund Pike e Richard E. Grant arrancam risadas (e suspiros) como os pais ricos do rapaz – Alison Oliver (Venetia) e Archie Madekwe (Farleigh) também merecem elogios.

O problema todo, no fim das contas, é o filme que Emerald quis entregar ao espectador, sugerindo uma trama bastante interessante, mas finalizando a história da maneira mais óbvia e tosca possível. Você já viu a parte boa desse filme antes nos irretocáveis “Ligações Perigosas” (1988) e “Match Point” (2005), entre outros, e a parte ruim também nos bons “Segundas Intenções” (1999) e “O Talentoso Ripley” (1999), e o que decepciona em “Saltburn” não é o fato de ser clichê ecoando dezenas de outros filmes, mas a maneira como Fennell deixa escorregar de maneira estapafúrdia o trunfo que tem nas mãos, abrindo mão do sugestionamento e adotando o manual do roteirista bocó que explica tudo nos mínimos detalhes para que espectadores de posse de um único e solitário neurônio façam “ahhhhh, entendi” assim que as cortinas sobem.

E, assim como aconteceu diversas vezes com o Botafogo na finaleira do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2023, Emerald Fennell perde o controle de seu próprio filme nos últimos minutinhos da obra, deixando o espectador em situação de choque não com o desenrolar terrivelmente clichê dos fatos expostos na tela (como uma equação matemática), mas com o anticlímax causado pelas escolhas canhestras da roteirista diretora. Há, sim, um bom filme na história que Emerald escreveu para “Saltburn”, mas ela escolheu contar essa história de uma maneira ruim. Com diversos momentos pensados para chocar o espectador (tal como “Fleabag”, aliás), falta a “Saltburn” profundidade, humildade e… alma (algo que sobra em “Fleabag”, aliás).

Quem sabe no próximo filme, Emerald. Já você, Botafogo, era uma vez…

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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