Balanço: 1º Festival Batekoo mostra que é possível pensar em outras possibilidades de festivais musicais

texto por Renan Guerra
fotos por Batekoo

O Batekoo Festival surge como um desdobramento da festa de mesmo nome, fundada em 2014, em Salvador e que sempre trouxe em seu cerne o foco em criar espaços de celebração dos corpos negros, periféricos e LGBTQIA+. De lá pra cá, a Batekoo cresceu e hoje em dia está presente em diferentes cidades como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Recife e Santos e se tornou um espaço importante de arte e cultura negra. Por isso mesmo, a primeira edição do festival foi toda trabalhada sob o lema ‘A gente não quer ser assistido, a gente quer se assistir’, em uma busca por diálogo direto com a comunidade negra, afro-diaspórica e LGBTQIA+ do Brasil, ocupando espaços no palco e na plateia.

Com shows de Ludmilla, Karol Conká, Fat Family e ÀTTØØXXÁA, segundo Mauricio Sacramento, CEO, fundador e diretor criativo da BATEKOO, “a programação foi pensada para ser uma experiência ancestral tendo como referência as musicalidades periféricas que não necessariamente estão nos topos das paradas, mas que não saem da boca e das rádios de pessoas negras ao redor do país. Nossa curadoria vai para um lugar totalmente diferente dos milhares de festivais que aconteceram esse ano no Brasil, pensando na nossa comunidade como um todo e contemplando as mais diversas particularidades do que é ser negro hoje, resgatando história, identificação, afeto e, de novo, ancestralidade”.

A meta desse primeiro Batekoo Festival era promover uma transformação na forma de se fazer grandes eventos no país e criar uma verdadeira imersão na música negra. E se a meta parecia alta, a Batekoo mostrou que tem múltiplas qualidades para mostrar como é possível pensar em festivais de forma diferente. Nos últimos anos vimos uma profusão de festivais nacionais surgirem e se espalharem pelo Brasil, porém em contrapartida vimos uma repetição exaustiva de uma mesma série de nomes nos line-ups desses eventos. A ideia principal da Batekoo era fugir dos nomes chavão e focar em nomes que pulsam a música negra em diferentes regiões do país e que movimentam um grande e diverso público. Mais que tudo isso, o primeiro Batekoo Festival mostrou que é possível também se repensar em outras logísticas de um festival de grande porte.

Realizado na Neo Química Arena, o estádio do Corinthians, localizado em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, uma das preocupações da organização foi pensar na logística de chegada e saída do público. A Batekoo colocou como prioridade que o público conseguisse se deslocar com transporte público e por isso a escolha de um local próximo ao metrô fez total diferença; além disso, o festival começava no final da tarde e se acabava no início da manhã, uma jornada e tanto, mas que dava diferentes possibilidades de chegada e saída, seja pelo metrô ou pelas rotas de ônibus. Outra questão importante para a organização era a possibilidade de consumo do público dentro do evento e isso se colocou em prática a partir de preços superacessíveis em comparação com outros eventos do mesmo porte em São Paulo. Por exemplo, uma cerveja era comprada pelo preço de R$ 10 ou pelo combo de três cervejas por R$ 25; já um drink como gin & tônica ou uma caipirinha saía por algo em torno dos R$ 25.

Outros detalhes da organização também fizeram o evento se sobressair: poucas filas para usar os banheiros, velocidade na hora de comprar fichas de bebidas e uma boa quantidade de opções de alimentos, a diferentes preços. E, claro, a música foi a estrela da noite, com uma diversidade de apresentações que colocou o público para dançar reggae, pagode, funk, R&B e outros tantas possibilidades. Abaixo escolhemos alguns shows de destaque dessa primeira edição e contamos alguns detalhes do Batekoo Festival:

Fat Family

Fat Family
Sucesso nos anos 90, hoje em dia o Fat Family é um trio formado pelas irmãs Simone, Suzete e Kátia Cipriano. No palco da Batekoo, elas adaptaram seu show para o público que as esperava: hits clássicos como “Jeitinho Sexy”, “Eu Não Vou” e coisa mais modernas como “Mexe Esse Pescoço” figuraram ao lado de canções atuais de sucesso pop como “Uptown Funk” e “Leilão”. No palco, as irmãs são acompanhas de uma dupla de dançarinos que fazem as coreografias mais afeminadas e performáticas possíveis, algo perfeito pro palco da Batekoo. O momento mais bonito do show foi quando subiu ao palco Talita Cipriano, filha de Deise Cipriano, ex-integrante do Fat Family que faleceu em 2019 em decorrência de câncer. Com voz poderosa, Talita já participou do The Voice Kids e é cantora de musicais. No palco ela ajudou as tias a fazerem essa conexão mais moderna do repertório. Para finalizar, elas cantaram uma versão de “Killing Me Softly” e mostraram que algo não mudou nesses 26 anos de Fat Family: o vozeirão delas segue intacto e a verve pop da banda segue cativando de forma surpreendente.

Seu Osvaldo

Os shows no Batekoo Festival eram intercalados, quando o palco principal parava, o palco menor era dominado por DJs ou artistas em shows mais compactos. Um dos artistas que passou por esse palco no início da noite foi o Seu Osvaldo. Considerado o primeiro DJ do Brasil, o artista levou o clima de baile anos 70 para a pista, tocando clássicos de nomes como Jorge Ben e Cassiano. Foi momento especial poder ver Seu Osvaldo tocando para um público tão grande e tão diverso que estava emocionado pela presença de uma figura tão importante para a construção da cultura negra e musical no Brasil.

Monna Brutal

Monna Brutal
A MC e produtora Monna Brutal é natural da Zona Norte de São Paulo e é conhecida pela velocidade de seus versos e ao vivo isso se torna surpreendente. Cantando músicas de diferentes momentos de sua carreira, a artista versa sobre a sua existência e a de seus pares, falando sobre resistência trans, cotidianos periféricos e sobre como a violência diária afeta seu corpo. No palco, Monna falou que estava nervosa, mas mesmo assim sua presença naquele instante dizia o contrário. Acompanhada de um DJ que soltava a batida de suas canções, um dos melhores momentos foi quando ele soltou uma base vocal e ela pediu pra parar dizendo “aqui não, eu faço tudo ao vivo”. E faz mesmo e por isso seu show é de tirar o fôlego, assistir seu flow e sua força no palco é algo único. Quem se interessa por rap e desconhece Monna Brutal precisa correr atrás de seu som agora.

Urias

Urias
2022 foi um ano bastante produtivo para a cantora Urias: ela lançou seu disco “Fúria” lá em janeiro e depois disso já lançou dois Eps, “Her Mind PT1 e PT2”, expandindo a sua sonoridade para caminhos bastante interessantes dentro da música pop, investindo em misturas de gêneros que fogem do óbvio em relação aos seus pares geracionais. Para o show ela trouxe um repertório autoral amplo que mostra uma força e uma segurança que a maturidade tem lhe trazido no palco. A apresentação segue a linha de espetáculo pop, com balé de dançarinos, coreografias e todo uma aparato estético que é uma espécie de adorno em torno de Urias, pois no final das contas sua presença não deixa nossos olhos fugirem para outro lugar. Extremamente bela e charmosa, Urias consegue dar o seu recado seja em suas canções mais pop quanto em suas canções mais combativas; e seu show é uma espécie de lembrete para ficarmos de olho em seu trabalho.

Uana

Uana
Direto do Recife, a pernambucana Uana enfrentou alguns problemas no som em seu início de show, isso a fez sair do palco por algum tempo até tentar uma resolução. De volta, Uana se mostrou segura e os contratempos iniciais não ofuscaram seu show. Com uma boa estrada de cantora que sabe lidar muito bem com o ao vivo, a artista tem buscado expandir seu público nacional e tem se enveredado em canções que misturam pop, R&B, funk e brega funk, numa salada bastante curiosa e que pode ser vista em uma série de singles que ela tem lançado desde 2021. No palco do festival Batekoo ficou clara toda a unidade desse trabalho de Uana e como suas referências se dialogam e criam momentos únicos, em canções como “Mapa Astral”, “Vidro Fumê” e “Erva Daninha”. Segura de si, sedutora e com aquela maturidade de quem sabe o que faz no palco, Uana é criativa e cria seus sons longe dos lugares-comuns, por isso é um nome a se colocar no radar!

Ludmilla

Ludmilla
Ludmilla cresceu de forma monumental nos últimos anos com seu projeto de pagode “Numanice” ganhando corpo e se transformando em um evento que arrasta multidões em diferentes capitais do Brasil. E sua sagacidade de entender o seu universo musical e saber dialogar com seu público transformou a artista em uma referência de como se conduzir uma carreira pop no Brasil – Lud é uma artista vinda do funk, mas sabe dar seus passos por outros gêneros e abrir conversas com artistas de outras áreas. E isso fica muito claro no palco: Ludmilla é talvez uma das maiores estrelas do pop que temos nesse momento na nossa música, pois ela tem unicidade, coerência e uma qualidade que melhora a cada ano que passa. A sequência de hits que ela apresenta é avassaladora: “Socadona”, “Verdinha” e “Rainha da Favela” são alguns exemplos desse poder pop do funk que ela produz. Mas o grande momento da noite foi o seu leque de canções voltadas para o pagode, com o público cantando em coro todos os versos. O coroamento desse ato do show veio quando, para a surpresa de todos, a cantora e drag queen Gloria Groove surgiu desmontada e elas cantaram juntas as canções que formam o “Lud Sessions”, projeto em que Ludmilla grava canções ao vivo ao lado de outros artistas. O saldo final é a constatação de um dos fatos musicais de 2022: o show de Ludmilla é um acontecimento de força inegável.

No meio da madrugada, o show de Ludmilla se encerrando, umas 3 da manhã, e começam a passar passistas de samba e músicos com instrumentos de bateria de escola de samba. No meio do público, a bateria da Vai-Vai cantou clássicos do samba, dando outro tom pra noite, trazendo uma energia completamente diferente e inesperada. Coisas impensadas em qualquer outro festival.

O Kanalha

O Kanalha
O Kanalha é uma banda de pagodão baiano e esse pode até ser um nome não muito conhecido nas bandas do Sul/Sudeste, porém a banda é um sucesso em toda a região Nordeste, com agenda de shows disputada e um público que só cresce. Surgidos na pandemia, o grupo emplacou uma série de hits nos últimos dois anos e isso é explicado em seu show. Com uma força e uma intensidade única, O Kanalha coloca o público pra pular, cantar e dançar de forma poderosa. No palco eles fazem coreografias, insinuam uma sensualidade única e conseguem fazer com que os refrões de suas faixas grudem na cabeça do público, mesmo com quem não conhece suas canções. Suas canções aliás funcionam entre misturas de ritmos, diálogos entre vozes masculinas e femininas e interessantes medleys entre canções autorais e hits populares atuais – há um interessante uso do vocal que parece mais falado do que cantado, algo que pode explicar esse diálogo tão direto com o público. Com direito a espécies de roda punk de pagodão baiano, o show d’O Kanalha foi um acontecimento no Batekoo Festival e se tornou aquele show que todo mundo seguiu comentando após acabar – e claro, todo mundo saiu com o refrão de “Fraquinha” na cabeça: “Ai Kanalha, eu tô fraquinha, eu tô fraquinha” ad infinutum.

Deize Tigrona

Deize Tigrona
Deize Tigrona é dona de um dos melhores discos desse ano, “Foi Eu Que Fiz”. Lançado pela Batekoo Records, esse é um trabalho que reúne Deize com nomes como DJ Chernobyl, Badsista, Teto Preto e JLZ. Ao vivo, Deize é acompanhada do DJ Mirands, um dos co-fundadores da Batekoo, e que dá conta de fazer as bases para que Deize faça o que bem quer no palco e como é bom vê-la atualmente ao vivo. Deize parece cada vez mais feliz de estar de volta, de poder mostrar suas canções clássicas, como o hit “Sadomasoquista”, que foi redescoberto ano passado no TikTok, bem como mostrar suas novas possibilidades sonoras em canções como “Foi Eu Que Fiz”, “Bondage” e na excelente “Monalisa”, canção que comprova mais uma vez o olhar complexo e interessante de Deize enquanto compositora. Deize Tigrona é fundamento do funk, mas também é o presente e o futuro.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com Monkeybuzz e Revista Balaclava. 

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