por Leonardo Vinhas
Nunca foi tão difícil produzir um disco. Nunca foi tão necessário fazê-lo.
Antes de uma pandemia mudar irremediavelmente a vida como a conhecíamos, a América Latina já estava doente. Um golpe de estado disfarçado de processo institucional abriu as portas para uma devastação humana, econômica e ambiental sem precedentes no Brasil. A Venezuela vivia uma verdadeira diáspora de sua população, que buscava refúgio da penúria crescente no país. A Argentina empobrecia a olhos vistos.
De 2020 para cá, outros países também passaram a enfrentar corrosões de grandes proporções. O mito do “progresso chileno” caía por terra conforme se revelava a corrupção e a truculência de seu governo neoliberal. O Peru entrou em uma crise institucional que instalou o medo e a insegurança, que não dão sinais de ir embora. Colômbia e Cuba tiveram ondas de (justificados) protestos, reprimidos com extrema violência por seus governos.
Tudo isso em um contexto mundial onde o 1% mais rico ganha 35 vezes a renda dos 50% mais pobres. E que, mesmo em meio a tanta desigualdade, não falta quem defenda a “meritocracia” e defenda uma suposta justiça nessa sociedade. Para não falar na implacável exigência por “produtividade” que adoece até quem, em tese, não teria que “produzir”; e nas crises de ansiedade geradas pela onipresença de uma “conectividade” que mais nos separa do que nos une.
Assim sendo, era preciso juntar tudo. E nasceu” ¡Unan Todo!”.
Certa noite de sábado, o músico e produtor Rodrigo Stradiotto me telefonou. Ele havia masterizado o disco “¡Estamos!”, com gravações caseiras de artistas do mundo todo, inspirados pelo confinamento necessário para conter a ameaça da Covid-19 (lááááá no começo de 2020). Impactado por conhecer um novo universo musical, e frustrado por ver a música se diluir na ampla oferta digital que a torna algo banal, ele perguntou: “o que a gente podia fazer para trazer esses artistas, essa criação toda, ao conhecimento de mais pessoas?”
Na era dos feats, por que não fazer colaborações entre artistas?, perguntou Rodrigo. E como a integração latino-americana pela música norteia a maior parte do meu trabalho como jornalista e produtor, eu falei: “podíamos justamente fazer um álbum de canções autorais feitas em colaboração”. Refinamos a ideia do projeto, apresentei para a Aliança Faro, para ter mais capilaridade e impacto, e eles abraçaram o projeto. Era hora de começar a trabalhar.
Só que, ao contrário da maioria dos outros discos que produzi, o processo para fazer esse foi tortuoso. Muitos artistas não tinham condições financeiras de fazer qualquer gravação – a falta de shows e outras atividades presenciais literalmente esgotara os recursos de muitos deles. Outros não tinham condições mentais ou emocionais de criar, pois estavam mergulhados em depressão, ansiedade ou pânico. Outros simplesmente ignoravam ou faziam exigências impraticáveis para tomar parte – “impraticáveis” no sentido de pedir diferenciais e benefícios que tornariam a participação deles maior que todo o projeto.
O que era para ser um álbum de oito faixas teve que se tornar um EP de cinco, por essas razões. E mesmo entre os que haviam entrado no projeto, alguns desses problemas se fizeram presentes. Músicos adoeceram, ou física ou mentalmente. Outros precisaram priorizar o trabalho em alguma outra função para, literalmente, tentar colocar comida na mesa. E talvez um deles tenha sido tão egomaníaco e babaca que tenha feito os produtores cogitarem jogar a toalha. Talvez.
Para completar o cenário, o produtor executivo – este que vos escreve – simplesmente colapsou. Fui um dos que adoeceu física e mentalmente, e em dado momento, achei que jamais me recuperaria completamente. Foram alguns meses terríveis, que espero que nunca mais retornem.
Mesmo com tudo isso, “¡Unan Todo!” veio ao mundo. E veio com muita integração e muito amor, sim. No faixa a faixa que se segue, conto algumas histórias que não dão conta de traduzir o prazer e a beleza que foi ver o nascimento e crescimento de algumas dessas composições, mas que já ajudam a saber o que você vai encontrar. E já posso contar, aqui, que houve uma mobilização grande entre músicos, produtores e outros agentes da cadeia cultural para que essas canções existissem e, esperamos, chegassem ao maior número possível de pessoas.
Claro que aqui não estamos falando de números superlativos como aqueles que costumamos ver estampados em manchetes de portais. Essa ilusão não existe: mesmo que algumas dessas canções possam tranquilamente ser definidas como “pop”, não cabem na estética cada vez mais diluída e limitada que vemos no mainstream. Mas, como costuma cantar Siba, “cada vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”, e espero que todos esses passos, dados por todas essas pessoas, ajudem a levar o mundo a um lugar menos sombrio e menos divisivo.
Ah, claro: o título também é um brincadeira com “Rompán Todo” (no Brasil, “Quebra Tudo”), o documentário da Netflix que diz contar a história do rock na América Latina. Um documentário bastante questionável, que deixa de fora países inteiros, e faz de um único olhar a “história oficial”. Acho que não falo só por mim que a gente tá de saco cheio de ver o tal “1% mais rico” ditando as regras e sacramentando sua visão da história. Então, se esse pessoal está disposto a quebrar, nós estamos aqui para juntar.
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Nunca vou poder agradecer totalmente ao Rodrigo Stradiotto, que deu início a esse projeto e abraçou a mixagem, masterização e a codireção artística de um jeito que eu jamais poderia ter esperado. Várias vezes pensei em desistir do projeto justamente por acreditar que eu não estava fazendo jus à dedicação dele. Essas canções só existem por causa do Rodrigo.
Meu muito obrigado também ao Pedro Bopp, que, mais que criar as capas do disco e dos singles, entrou no universo criativo do projeto e se tornou não só um interlocutor muito especial como também mais outro motivador para a conclusão do projeto.
Agradeço também a todos os músicos que participaram, especialmente os que o fizeram com sorriso no rosto e de coração aberto (a maioria, vale dizer), ainda que em meio a muitas dificuldades pessoais. À toda equipe da Faro, em especial à Cynthia Flores (México), Kristel Latecki (Uruguai), Lorena Sánchez (Cuba) e Ruben Scaramuzzino (Espanha), por assumirem algumas funções especialmente laboriosas com tanto carinho e dedicação. E à minha família (Helena, Ana, Ju, Domingas e Sabãozinho), que me carregou nos braços quando não consegui andar e me acolheu quando eu precisei parar.
¡Unan Todo! – Ficha técnica
Produção executiva e curadoria: Leonardo Vinhas
Mixagem e masterização por Rodrigo Stradiotto – exceto “Mamba Negra”, mixada por The Raulis e masterizada por Rodrigo Stradiotto
Arte e design: Pedro Bopp
Selo: Scream & Yell
Lançamento: Aliança Faro
Distribuição digital: Tratore
01) “Mamba Negra”
Pahua (México) e The Raulis (BR)
Composta por Paulina Sotomayor, Arthur Dossa, Gabriel Izidoro e Rafael Cunha.
Por sua relação com elementos da sonoridade latino-americana, The Raulis estavam no meu radar para um disco há algum tempo. Paulina Sotomayor, por sua vez, já havia participado de “Brasil También Es Latino” com o projeto Sotomayor. Apresentei a carreira solo dela para os Raulis e o match foi imediato. A banda mandou um groove que já tinha pronto, e Paulina veio com a letra e a melodia vocal. A faixa foi retrabalhada pela banda e o resultado é essa preciosidade pop, sexy e viciante, que consegue trazer elementos de cumbia, samba, tecnobrega e outros estilos, em uma forma absolutamente orgânica.
02) “Colibri”
Catalina Ávila (Colômbia) e Duo Finlândia (Argenina/BR)
Composta por Catalina Ávila
“Colibri” foi pensada inicialmente como parte deste projeto, e seria posteriormente incluída no álbum “Vizinhos”, de Catalina Ávila, também lançado pelo selo Scream & Yell. Porém, com os atrasos na produção de “¡Unan Todo!”, essa ordem se inverteu. Seja como for, essa canção sobre perda, luto e saudade foi a primeira canção que Catalina compôs. Entrou em seu álbum de estreia, “Origens” (2017), em uma versão diferente, e a colombiana a revisitou em companhia de sua banda e do Duo Finlandia, com direito à letra versionada para o português. É possivelmente a faixa mais “integradora” do EP, pois une artistas de Brasil, Argentina e Colômbia, com Catalina e sua banda gravando em Bogotá, enquanto Mauricio Candussi e Raphael Evangelista, do Duo Finlandia, gravaram suas partes respectivamente em Córdoba e Paris.
03) “Somewhere”
Romina Peluffo (Uruguai) e Rodrigo Stradiotto (BR)
Composta por Romina Peluffo e Rodrigo Stradiotto
Foi a única faixa a ser composta em inglês, mas isso se deu de forma tão natural que não faria sentido mudar. A química musical entre Romina e Rodrigo foi instantânea, um daqueles encontros raros, que merecem ser tratados como tal. A cantora e compositora uruguaia falou dos sentimentos que queria trazer na canção, e o músico e produtor curitibano criou uma trama instrumental a partir desse relato. Em posse desse primeiro rascunho, Romina desenhou a melodia vocal, e a letra veio quase que imediatamente a seguir. A partir daí, foram feitos pequenos refinamentos, até que a canção tornasse essa pérola sobre solidão e isolamento emocional, algo que muitos sentiram nos duros meses pandêmicos. Mas ainda assim, coube um tíbio aceno à esperança no final. Oxalá se concretize.
04) “Lido”
Andrés Correa (Colômbia) e Marcelo Callado (BR)
Composta por Andrés Correa e Marcelo Callado
Unir esses dois compositores versáteis, que sabem trabalhar a herança da canção popular de seus países de origem com temas e estéticas mais contemporâneas, era um projeto antigo, que encontrou em “¡Unan Todo!” o momento ideal para se concretizar. Em sua última visita ao Brasil, Andrés havia tomado contato com a obra de Marcelo Callado e voltou para a Colômbia com uma cópia do álbum “Gambito Budapeste”, de Callado com Nina Becker. A partir desse conhecimento prévio, a colaboração aconteceu de forma fácil e quase espontânea. A partir de quatro versos de Callado, Andrés criou uma base no violão, que foi sendo acrescida de elementos, e ganhou a participação do colombiano Camilo Granados no baixo e do brasileiro Rodrigo Stradiotto nos teclados. O resultado é uma espécie de MPB com sotaque colombiano, ou um rock praiano que une as águas do Pacífico e do Atlântico.
05) “La Gente Es Rara”
Juan Olmedillo (Venezuela) e Terremotor (BR)
Composta por Duda Victor, José Duarte, Paulo Tropa e Juan Olmedillo
Se no mainstream a integração é lenta, e muitas vezes mais orientada por razões comerciais que artísticas, no underground ela acontece de forma mais direta e humanizada. Rockabilly, garage, ska, punk e outros gêneros tinham cenas com forte intercâmbio latino-americano antes da pandemia (e tomara que volte a ser assim). Juan Olmedillo veio ao Brasil duas vezes com a banda Los Mentas, mas nunca havia encontrado os paranaenses do Terremotor, a mais “poliglota” das bandas de surf brasileiras (no sentido de falar as muitas linguagens que seu som instrumental permite). Isso não os impediu de fazer essa maravilhosa festa surf que lembra que somos mais unidos em nossas estranhezas do que naquilo que nos é normal.
CATÁLOGO COMPLETO DO SELO SCREAM & YELL
SY00 – “Canção para OAEOZ“, OAEOZ (2007) com De Inverno Records
SY01 – “O Tempo Vai Me Perdoar”, Terminal Guadalupe (2009)
SY02 – “AoVivo@Asteroid”, Walverdes (2011)
SY03 – “Ao vivo”, André Takeda (2011)
SY04 – “Projeto Visto: Brasil + Portugal” (2013)
SY05 – “EP Record Store Day”, Giancarlo Rufatto (2013)
SY06 – “Ensaio Sobre a Lealdade”, Rosablanca (2013)
SY07 – “Ainda Somos os Mesmos”, um tributo à Belchior (2014)
SY08 – “De Lá Não Ando Só”, Transmissor (2014)
SY09 – “Espelho Retrovisor”, um tributo aos Engenheiros do Hawaii (2014)
SY10 – “Projeto Visto 2: Brasil + Portugal” (2014)
SY11 – “Somos Todos Latinos” (2015)
SY12 – “Mil Tom”, um tributo a Milton Nascimento (2015)
SY13 – “Caleidoscópio”, um tributo aos Paralamas do Sucesso (2015)
SY14 – “Temperança” (2016)
SY15 – “Ainda Há Coração”, um tributo à Alceu Valença
SY16 – “Brasil También Es Latino” (2016)
SY17 – “Faixa Seis” (2017)
SY18 – “Sem Palavras I” (2017)
SY19 – “Dois Lados”, um tributo ao Skank (2017)
SY20 – “As Lembranças São Escolhas”, canções de Dary Jr. (2017)
SY21 – “O Velho Arsenal dos Lacraus”, Os Lacraus (2018)
SY22 – “Um Grito que se Espalha”, um tributo à Walter Franco (2018)
SY23 – “A Comida”, Os Cleggs (2018)
SY24 – “Conexão Latina” (2018)
SY25 – “Omnia”, Borealis (2019)
SY26 – “Sem Palavras II” (2019)
SY27 – “¡Estamos! – Canções da Quarentena” (2020)
SY28 – “Emerge el Zombie – En Vivo”, El Zombie (2020)
SY29 – “Canções de Inverno – Um songbook de Ivan Santos & Martinuci” (2020)
SY30 – “SIEMENSDREAM”, Borealis (2020)
SY31 – “Autoramas & The Tormentos EP”, Autoramas & The Tormentos (2020)
SY32 – “O Ponto Firme”, M.Takara (2021)
SY33 – “Sob a Influencia”, tributo a Tom Bloch (2021)
SY34 – “Pra Toda Superquadra Ouvir”, Beto Só (2021)
SY35 – “Bajo Un Cielo Uruguayo” (2021) com Little Butterfly Records
SY36 – “REWIND” (2021), Borealis
SY37 – “Pomar” (2021), Vivian Benford
SY38 – “Vizinhos” (2021), Catalina Ávila
SY39 – “Conexão Latina II” (2021), Vários artistas
SY40 – “Unan Todo” (2022), Vários artistas
SY41 – “Morphé” (2023), Rodrigo Stradiotto
SY42 – “Paranoar” (2023), YPU (com Monstro Discos)
SY43 – “NO GOD UP HERE” (2023), Borealis
SY44 – “Extras de “Vou Tirar Você Desse Lugar”, Cidadão Instigado & Plástico Lunar (2024) – Com Allegro Discos
SY45 – “Smoko” (2024), Smoko
SY46 – “Trilhas Sonoras para Corações Solitários” (2024), Hotel Avenida
Discos liberados para download gratuito no Scream & Yell:
01 – “Natália Matos”, Natália Matos (2014)
02 – “Gito”, Antônio Novaes (2015)
03 – “Curvas, Lados, Linhas Tortas, Sujas e Discretas”, de Leonardo Marques (2015)
04 – “Inverno”, de Marcelo Perdido (2015)
05 – “Primavera Punk”, de Gustavo Kaly e os Hóspedes do Chelsea feat. Frank Jorge (2016)
06 – “Consertos em Geral”, de Manoel Magalhães (2018)
07 – “Toda Forma de Adeus”, Jotadablio (2023)