Girl power, nostalgia e catarse: uma noite com Larissa Luz, Pitty e BaianaSystem em Salvador

Texto e fotos por Nelson Oliveira
Vídeos por Carine Rocha

Por volta das 23h30 de sexta-feira, no Largo da Tieta, coração de Salvador, Céu encerrava um show recheado pelos maiores sucessos de seu repertório com um clamor: “pare de forçar o verão”. O verso basilar da terceira faixa do álbum “Apká!”, de 2019, soava bastante irônico naquele 1º de abril, já que a apresentação da paulistana deveria ter ocorrido no início de fevereiro e foi adiada por causa do crescimento de casos de Covid-19 na capital baiana. Festivais veranis também sofreram com remanejamentos por este motivo e eis que, em pleno outono, no sábado, 2, foi retomado o Circuito Musical Verão 22, com espetáculos de Larissa Luz, Pitty e BaianaSystem, além da discotecagem de Telefunksoul.

Dois meses e meio depois da data inicialmente prevista, o Espaço Marés, localizado no Centro de Convenções Salvador, recebeu mais de 5 mil pessoas para uma noite que se revelaria longa, comandada apenas por baianos. Para Pitty e BaianaSystem, os shows marcariam o reencontro com o público da cidade. A cantora não tocava na capital desde novembro de 2019 e a banda se apresentara para os soteropolitanos pela última vez no Carnaval de 2020.

Veterano da cena local, com mais de 30 anos de estrada, Telefunksoul foi escalado para manter a pista viva a partir das 18h, quando se abriram os portões, e durante os intervalos entre as bandas. E o fez com a competência habitual, soltando remixes de sua assinatura e conferindo roupagem bahia bass a hits pops, como “Yeah!”, de Usher, e “Wannabe”, das Spice Girls.

Já passava das 20h quando Larissa Luz subiu ao palco para mostrar que foi a grande beneficiada pela alteração da data dos shows do Verão 22. Em janeiro, a cantora havia acabado de lançar o EP “Deusa Dulov (Vol. 1)” e as suas cinco faixas ainda não haviam se popularizado nos serviços de streaming. Mais de dois meses depois, ela pode basear a apresentação no disco e contar com a recepção do público, já inteirado das letras e ansioso para aprender as coreografias com o balé.

Larissa Luz fez um show leve e debochado, de acordo com sua personalidade, mas também deixou mensagens bem diretas, evocando uma feminilidade ativa, consciente de suas reivindicações existenciais e desejos sexuais. Essas características discursivas permearam toda a apresentação, sendo mais evidentes em “Afrodate (Dreadlov)”, “Montanha Russa”, “TBT” e “Brinco Só”, do EP recém-lançado, e também em “Meu Sexo”, faixa de “Território Conquistado”, disco de 2016. Em “Gira”, uma das melhores canções de “Trovão”, seu álbum de 2019, a cantora orientou a formação de uma rodinha puxada por mulheres e lembrou-se de seus tempos de adolescente, em que se inspirou com Pitty fazendo o mesmo quando era vocalista da Inkoma.

Os momentos mais interessantes do show, porém, ficaram por conta da homenagem a Elza Soares nas projeções e em “Banho”, composição de Tulipa Ruiz que foi gravada pela carioca em “Deus É Mulher”, de 2018 – Larissa Luz, vale lembrar, interpretou Elza no teatro. Por fim, dando vazão a sua faceta de comandante de trio elétrico, que exerceu quando era vocalista do Ara Ketu, Larissa levou o público ao delírio com “Cupido Erê”, sua música de trabalho atual. Com refrão jocoso e uma batida grave marcante, a canção já está virando hit na noite soteropolitana e, nesse sentido, a cantora foi feliz em interpolar um trecho de “Baby te Liguei”, do Afrocidade, na apresentação ao vivo.

Enquanto Larissa Luz apostou em um repertório baseado em músicas novas, Pitty e BaianaSystem seguiram um caminho que outros artistas têm experimentado na retomada dos grandes eventos. Ambos apresentaram um grande apanhado de suas carreiras no reencontro com o público soteropolitano, no intuito de estabelecer uma conexão mais imediata entre palco e pista.

Para Pitty, foi fácil conquistar boa parte do público, formado por muitos empolgados integrantes de fã clubes da cidade. O show teve caráter bastante nostálgico, sobretudo ao transitar pelos sucessos “Admirável Chip Novo”, “Máscara”, “Semana Que Vem”, “Equalize” e “Me Adora”, mas também por belas homenagens a artistas recém-falecidos. Elza Soares voltou a ser lembrada em “Na Pele”, parceria com a própria Pitty, e Taylor Hawkins, do Foo Fighters, foi celebrado com uma versão de “One By One” cantada a plenos pulmões e imagem no telão.

Pitty, porém, aproveitou a deixa para apresentar novidades lançadas entre 2021 e 2022, como “Tempo de Brincar”, “Diamante” e “Diário” – esta última, um feat com Monkey Jhayam, que subiu ao palco para acompanhar a banda. Também houve dueto com Larissa Luz em “Sol Quadrado” (com canja em “Máscara”), mas outras boas canções do ótimo “Matriz”, de 2019, ficaram de fora do repertório.

Por volta das 0h30, já adentrando o domingo, foi a vez de Russo Passapusso, Robertinho Barreto, Seko Bass e sua trupe darem início ao evento dentro do evento: um show de BaianaSystem em Salvador – porque, sim, o que a banda entrega na cidade em que foi formada é diferente e mais enérgico do que em qualquer outro canto do planeta. Uma vez no palco, o grupo realizou uma daquelas de suas apresentações que lhe conferiram notabilidade. Ou seja, potentes, imersivas e imunes a pancadas de chuva ou o cansaço de um rolê esticado.

O show começou com “Reza Forte” e a projeção de trechos de “Carnaval do Invisível”, minidocumentário sobre aspectos socioculturais da folia baiana que a banda produziu em associação com a Amazon Music. Curiosamente, foi uma das duas únicas faixas do álbum mais recente da banda, “OXEAXEEXU”, de 2021, que foram apresentadas no espetáculo – a outra foi “Catraca”.

No mais, o BaianaSystem emendou sucessos, como “Cabeça de Papel”, “Saci”, “Arapuca”, “Sulamericano”, “Playsom”, “Lucro (Descomprimindo)” e “Miçanga”, muitas vezes sem intervalos entre as canções, e trouxe de volta algumas faixas que apareciam mais nos desfiles de trio elétrico da banda do que em shows de palco – a exemplo de “Dia da Caça”, “Barravenida, Pt. 2”, “Panela”¬ e “Calamatraca”, presentes em “Duas Cidades”, de 2016 – um dos grandes discos brasileiros da década passada, segundo os votantes do Scream & Yell.

Assim como Pitty, o BaianaSystem também levou convidados para o Verão 22. Um deles, habitué, foi o rapper Vandal, que rimou no combo “Jah Jah Revolta, Pt. 2” e “CertoPeloCertoh” e se pendurou na grade que separava o público dos artistas. A banda também abriu espaço para Kiko MC, veterano da cena local, apresentar versos de sua própria autoria e, de forma surpreendente, sem anúncio prévio, dividiu o palco com Margareth Menezes, com a qual repetiu ao vivo o dueto gravado em “Capim Guiné”. Não tava na conta, né?

Depois de cerca de duas horas de show, por volta das 2h30 da manhã, o pesadíssimo pagode instrumental de “Forasteiro” encerrou a enésima apresentação marcante do BaianaSystem em Salvador. No fim das contas, ficou provado que, sim, às vezes vale a pena forçar o verão.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. 

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