Entrevista: doer, crescer e resistir, o renascimento da Tuyo

entrevista por Nayive Ananías

Como um relato contemporâneo sobre os processos de adultecer, a banda curitibana Tuyo apresenta “Chegamos Sozinhos em Casa”, seu segundo álbum de estúdio lançado em maio (com patrocínio da plataforma Natura Musical), ainda que pronto desde o começo do ano passado (e da pandemia) preenchendo uma jovem discografia precedida pelos elogiados EP “Pra Doer” (2017) e o disco “Pra Curar” (2018).

Dividido em duas partes, o primeiro volume do “Chegamos Sozinhos em Casa” traz nove faixas com reminiscências dream pop e trip hop e colaborações com Jaloo, Jonathan Ferr, Luccas Carlos e Lucas Silveira (que assina a produção musical ao lado de Janluska, jvck e Bruno Giorgi), buscando vasculhar o que acontece depois do caos. Um caos que as irmãs Lilian (Lio) e Layane (Lay) Soares e Jean Machado escreveram antes que uma pandemia revolucionasse nosso planeta.

Desde um agitado Chile e através duma tela de computador, Nayive Ananías entrevistou os três integrantes da Tuyo, e eles contaram sobre as sensações e emoções presentes em “Chegamos Sozinhos em Casa”, os fantasmas pessoais de cada um deles, o falar sobre dor e, inevitavelmente, a interminável pandemia que assola o mundo (e, de maneira ainda mais intensa, o Brasil): “Agora a gente está no olho do furacão”. Leia a entrevista abaixo.

Gostaria de perguntar a vocês como estão vivendo com esta pandemia no Brasil?
Jean: Tem sido assustador. Por muito tempo foi muito assustador, o medo de sair da casa, e a gente ainda fica protegendo muito. Mas acho que hoje é também perigoso porque o sentimento da pandemia está internalizado. As pessoas estão estressadas. As que já estão envolvidas e são a favor das medidas protetivas, do recolhimento em casa, também estão muito estressadas. Você sai na rua e vê gente sem máscara […] A coisa está muito dicotômica e está bem difícil.

Lio: A pior parte da pandemia é que, pra viver bem, você precisa dalgum jeito ignorar algumas coisas em momentos do seu dia. Se você deixa com que a consciência completa te tome o tempo inteiro, você fica doente. E na pandemia isso fica mais complicado, porque parece que está cada vez mais evidente o quanto a gente ainda vive um período neandertal. Em que a vida em sociedade não é levada em conta a partir de nenhum outro aspecto que não seja uma disputa muito antiga por poder, mas essa disputa é um massacre, né? De quem detenha alguma espécie de poder. Parece que as autoridades que estão postas pra providenciar pro cidadão um mínimo de paz, parece que existe um esforço muito grande de massacrar qualquer coisa que não seja ele próprio, qualquer tipo de governante. Então acho que tem esse problema xarope da pandemia das nossas vidas em risco com relação à saúde, mas acho que talvez o que tem estragado mais a cabeça do pessoal é ficar em casa, sendo bombardeado por uma série de coisas que a gente sabia atrás da cabeça. A gente sempre soube que os governantes, as autoridades locais, as autoridades estabelecidas que existem para facilitar o fluxo da vida em sociedade, a gente sempre soube que objeto deles era outro. Mas a gente já estava vivendo com isso, né? […] Depois do golpe a gente vê uma saturação de quem a gente é; parece que tudo dia alguém esfrega na nossa cara o quão falida é a nossa vida do jeito que a gente se organizou. E o quanto a gente vive a mentira de pensar que a gente caminhou pra algum lugar […] A gente reconhece nossos avanços, nossos progressos. Estão aqui três pessoas pretas dando uma entrevista a respeito dum trabalho artístico. Isso é muito bonito, mas enquanto a gente está conversando sobre isso, (outras pessoas pretas) estão sendo assassinadas em algum lugar. Acho que o pior é que, durante essa pandemia, talvez nossa maior preocupação tenha sido se manter são. Vai fazer um ano de terapia ininterrupta. Ninguém conseguia acreditar o processo nem entender direito que era um item. Eu não tinha acesso nem tinha a percepção do pra que serve, qual é a função. Sinto muito que, talvez a nossa maior preocupação, enquanto ao grupo, enquanto indivíduos, é se manter são pra não deixar isso tudo nos vencer.

Acho que tem sido difícil para vocês comporem nesta época.
Lio: Nossa! A gente estava falando sobre isso há dias, né? “Chegamos Sozinhos em Casa” é um disco que recorta episódios dum passado recente que a gente conseguiu observar de uma certa distância. Foi tão prazeroso escrever, porque a gente conseguiu tomar uma certa distância. Eu não me sinto de forma alguma preparada pra escrever sobre o que está acontecendo hoje. Eu não tenho um adjetivo no meu dicionário; não consigo ainda tomar distância e escrever a respeito. Admiro muito quem tem escrito sobre a pandemia; eu não posso.

Lay: Eu acho que é uma coisa que vai acontecer muito depois de tudo que a gente passar. Olhar pra atrás e conseguir organizar, de fato, o que que rolou tanto no sentido mais íntimo quanto no porão, no social de entender qual é essa linha do tempo que a gente está narrando agora, tanto como indivíduo quanto sociedade, sabe? Eu acho que só depois que a gente vai entender o baque de verdade que foi, porque agora a gente está olhando fora do furacão, né? […] Já tá tudo muito estranho. E aí é só depois mesmo que a gente conseguir, espero que em breve, passar tudo isso, conseguir olhar pra atrás e conseguir digerir de alguma forma.

E vocês vão lançar este ano os outros volumes do disco? É possível?
Lio: Esse disco era pra ter saído um ano atrás, em maio do ano passado. A gente terminou de escrever em janeiro de 2020. Sim, já falavam alguma coisa a respeito dalgum vírus em algum lugar, mas a gente nem sonhava. Eu lembro que um dia o Jean chegou falando: “Pessoal, eu acho que a gente precisa escrever um disco pensando pro palco, pensado pro show” (risos).

Lay: Foi a primeira vez que a gente debruçou pensando no show: “Vamos passar a vida inteira tocando assim”.

Jean: A gente entendeu que não era momento de lançar o disco no início da pandemia, né? Que era um momento que a gente viu todo o sistema de entretenimento e a cadeia de entretenimento também se desfazendo, se desmantelando, tentando sobreviver […] Nossa! Agora não fazia sentido nenhum lançar um trabalho artístico, porque está cada indivíduo tentando entender seu lugar no mundo, cuidando da sua família também. A gente entendeu que não seria saudável, nem para nós nem para quem fosse esse material também.

Lay: A gente foi também muito adiando o disco na esperança de que a gente ia resolver logo esse problema. Sempre pensando: “Não, vamos adiar o lançamento do disco para agosto”. Aí chegava agosto: “Vamos adiar para novembro”, e aí passou um ano. Não há limites para lançar esse disco, sabe?

Lio: A gente não está tocando hoje, não está na estrada não por causa duma pandemia mundial, mas por causa dum desmantelamento governamental. Então a gente está sendo massacrada por uma doença que tem uma vacina. […] Nossas prioridades naquele momento não tinham mais a ver com música, senão com nossa equipe: “Tá todo mundo bem? Onde que vocês estão? O que estão comendo?”.

Antes da pandemia, quais foram as sensações ou emoções contidas no disco?
Lay: Tantas (risos).

Lio: Eu sinto que a gente teve a oportunidade de fazer um retrato a respeito de território sem pensar que essa seria uma questão hoje. E está sendo interessante entender que quando a gente concebeu o disco, esse era um tema bastante particular: era um tema nosso, sobre a nossa família. A gente estava falando especificamente da nossa família, dos três. Nós morávamos juntos, vivíamos uma vida bastante pautada no movimento de comungar. E aí a gente começou a pensar a partir da ideia da fronteira, onde eu começo, onde eu termino; o que que é meu? O que que é nosso? E começar a desenhar essas linhas a partir da convivência, tentando entender a gente enquanto indivíduos, né? […] A gente gosta de estar juntos. Mas eu sinto também que o nosso ajuntamento parte da nossa classe social. Nenhum de nós tinha até então a oportunidade de escolher morar num apartamento sozinho. Não foi uma coisa que a gente escolheu. A gente gosta de morar juntos, porque o conceito de uma residência artística era só o que a gente conseguia fazer […] Foi bem bonito quando a gente percebeu que a gente podia pagar o nosso aluguel por causa da banda […] O disco era sobre isso: sobre a separação, ajuntamento, esse desenho do que é o meu território, o que me caracteriza, os contrastes entre nós.

Eu acho que uma temática particular que vocês têm nos seus discos é a dor, a redenção, a salvação e a cura também, né? Quais são os fantasmas de hoje em vocês?
Lio: Puxa! Que pergunta boa! […] Eu acredito que o meu fantasma é o meu espelho. Eu sinto que esse disco é um retrato da minha batalha com o que eu imagino que eu sou. Então passei muito tempo ouvindo de pessoas que amo muito que a minha habilidade argumentativa me transforma num monstro. Sinto muito que boa parte disso é fruto duma lógica racista. Imagino também que a minha persuasão, por causa do corpo que eu moro, me transforma numa ameaça. Sinto que esse meu processo de tentar resolver essa autoimagem de me investigar, é uma oportunidade que eu me dei na feitura desse disco […] A oportunidade de me revisitar e tentar entender quais dos adjetivos que recebi ao longo da minha vida eu tenho vontade de manter e quais eu tenho vontade de negar. Sinto que o meu maior demônio sou eu mesma. Boa parte das coisas que escrevi, escrevi como se eu estivesse dialogando com o meu duplo: “Puxa, esse é o meu demônio”.

Jean: Tudo tão passageiro, tudo tão cíclico. Esse círculo vai se repetindo e se repetindo […] Chegou o momento em que nada é tão diferente, tudo é igual. E já não importa mais se os novos personagens entram na vida. Parece que eu só tô indo… resistindo. E ainda mais agora, com pandemia, isso é mais forte para mim porque eu tenho que buscar um novo objetivo na vida, tenho que criar o meu próprio pilar, um motivo para resistir […] É muito difícil fazer isso. Aí eu acho que esse vazio, essa liquidez toda assim é uma coisa que me persegue muito.

Lay: Bom, o meu fantasma sempre foi e continua sendo o medo duma melancolia, da raiva, do ódio, da frustração, dessas coisas tomarem conta da minha vida. Acho que está mais evidente agora por conta da pandemia […], mas também por todas as coisas que passaram por mim, tudo o que eu vivi, e que nalgumas músicas está explícito em “Pra Doer”, “Pra Curar’ e agora no “Chegamos Sozinhos em Casa”. Acho que agora consegui preencher mais esse fantasma para notar os contrastes, as comparações que faço da minha pessoa de agora com a pessoa que eu era antes. Tenho medo de ficar ruminando todas as coisas que me marcaram de um jeito que não me faz bem […] Devo entender que ao mesmo tempo que sou uma Lay agora, eu ainda tenho que lidar com a Lay do passado, porque não é uma coisa que a gente se livra. É uma coisa que vai se transformando; tem coisas que ficam, tem coisas que não ficam. E encontro rastros e resquícios de coisas que eu vivi antes que ainda me machucam, mas dum jeito diferente, sabe? Então eu acho que o meu grande fantasma que eu consegui identificar, agora em todo o processo desse disco, é que tenho que ficar cara a cara com os meus rancores.

Lio: Eu entendo quando nós somos adjetivados como artistas que falam sobre a dor. Mas eu não nos compreendo dessa forma. Entendo porque sou compreendida assim, mas compreendo nos três, enquanto artistas, falando a respeito da musculatura do sentir.

Nayive Ananías é jornalista e musicóloga. Está terminando seu doutorado em Artes na Pontificia Universidad Católica de Chile.

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