Cinema: “Fico Te Devendo uma Carta Sobre o Brasil”, de Carol Benjamin, um interessante tratado sobre as marcas da ditadura militar

por Renan Guerra

César Benjamin embrenhou-se na política desde o movimento estudantil secundarista. Após o AI-5, em 1968, ele passou a viver na clandestinidade. Integrante do MR-8, ele juntou-se a luta armada e acabou sendo preso em 1971. Durante 3 anos e meio, ele ficou na solitária, entre sessões de tortura e a falta de lucidez que a solidão pode trazer. Em 1976, ele consegue, via Anistia Internacional, o seu exílio na Suécia. Benjamin voltaria ao Brasil em 1978, com a promulgação da Lei da Anistia.

Benjamin é o pai de Carol Benjamin, diretora do documentário “Fico Te Devendo uma Carta Sobre o Brasil” (2020). Aparentemente, esse seria um filme sobre ele e sobre todo esse processo de violência, mas não o é. Na primeira cena, Carol lê, em voz off, um e-mail enviado ao seu pai, em que ficamos cientes de que ele não quer se envolver no filme e que nem irá ceder entrevistas a ela. O longa na verdade é essencialmente sobre Iramaya Benjamin, avó de Carol.

Iramaya era uma mãe de família pacata, que acaba se envolvendo em questões políticas quando seus dois filhos menores de idade são presos pelo regime militar. Ela faz movimentações importantes na busca pela libertação dos filhos, incluindo aí uma estreita relação com a Anistia Internacional. Iramaya, junto com outras mães de presos políticos, teve a iniciativa de lançar o Comitê Brasileiro pela Anistia, no ano de 1978. Enfim, uma personagem tão complexa quanto o filho.

“Fico Te Devendo uma Carta Sobre o Brasil” é contado em primeira pessoa, um formato que tem dominado o documentário brasileiro há cerca de 20 anos. “Um Passaporte Húngaro” (2001), de Sandra Kogut, e “Santiago” (2007), de João Moreira Salles, são exemplos basilares disso. Dentro da esfera temática da ditadura militar, temos exemplos ótimos como “Marighella” (2012), de Isa Grinspum Ferraz, e “Em Busca de Iara” (2013), de Flávio Frederico. Porém o primeiro nome que se pensa quando se fala nesse tipo de documentário é o de Petra Costa, em função de seus longas “Elena” (2012) e o sucesso “Democracia em Vertigem” (2019).

O filme de Carol Benjamin, em alguma medida, pode sofrer por essa pré-relação do público com esse tipo de narrativa. É inegável se pensar em Petra narrando seus filmes – tanto que quem desgostou desse dispositivo lá, pode gostar menos ainda aqui. A voz de Benjamin não é tão ame ou odeie quanto a de Petra, mas ainda assim sua narrativa em off não é um dos pontos altos do filme, na verdade, é quase seu calcanhar de Aquiles. É complexo demais dosar esse dispositivo para que ele não se torne um problema real dentro de um documentário.

De todo modo, sobrepujando essa questão, o longa de Benjamin tem uma história muito, muito boa e é isso que prende o espectador e o envolve em uma trama familiar complexa. A história de César Benjamin é um assombro, é assustadora e cheia de meandros. E a história de Iramaya é deslumbrante: uma mulher forte, que desenvolve seus meios para sobreviver apesar de uma vida interior extremamente solitária e cheia de medos e receios. Além disso, inclui-se aí a relação aparentemente complexa da própria diretora com o pai, já que ele não quis participar do filme.

Em determinados momentos, vemos falas de César em outros filmes e programas e isso torna a sessão mais complexa. Por que ele não quis conversar com a filha? Por que em suas outras entrevistas ele não cita o nome da mãe, Iramaya? Quais traumas ele sofreu nessa experiência horrenda de sua prisão? César é um personagem complexo até hoje e isso só acrescenta camadas. Ele é um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, porém se afastou do PT e, nos últimos anos, trabalhou como secretário de Educação do governo de Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro – o bispo, para quem não lembra, é um dos principais aliados políticos de Bolsonaro.

Enfim, todas essas camadas de complexidade são permeadas pelo silêncio: César que não conversou com a mãe; Carol que não conversou com o pai. São esses silêncios que constroem o medo e a dor, que deixam essas feridas ainda mais profundas e é sobre remexer nisso que o filme se constrói. Acompanhar a história de Iramaya e a busca de Carol por esse passado da família é também perpassar por esses meandros tão confusos que formam a história recente do Brasil, pois o Brasil nada mais é que esse personagem difuso, cheio de camadas e incompreensões.

“Fico Te Devendo uma Carta Sobre o Brasil” fez boa carreira em festivais de cinema, ganhando menção especial no Festival de Documentários de Amsterdã e prêmio de melhor documentário no 8º Indian Cine Film Festival. O longa foi lançado oficialmente, de forma virtual, pelo GloboPlay, em novembro de 2020. É uma sessão dolorosa e complexa, mas que é fundamental em tempos de medo e desesperança.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

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