Entrevistas: Gustavo Galvão, Lee Ranaldo e Ayla Gresta (“Ainda Temos a Imensidão da Noite”)

entrevistas por Leonardo Vinhas 

A noite não serve só para se entorpecer de Netflix, se deprimir no Instagram ou sofrer de insônia com a vacuidade do Facebook ou a hostilidade do Twitter, acredita o cineasta brasiliense Gustavo Galvão. Tampouco a noite é só para dormir em um silêncio relegado aos poucos que podem pagar caríssimo pela moradia forçosamente silenciosa que é reservada aos que têm dinheiro e sonham com uma vizinhança de “iguais” nas quais podem tranquilamente ignorar os vizinhos. A noite, defende o diretor, foi feita para criar.

De certa forma, essa é a “tese” de “Ainda Temos a Imensidão da Noite” (2019), produção germano-brasileira nascida de um projeto que teve início em 2011 e que só encontrou seu lançamento nas salas de cinema em 5 de dezembro de 2019. É um filme com não-atores sobre músicos, sobre cidades e sobre a arte. E também sobre como temos desperdiçado e vilipendiado esses três entes.

Na película, Karen (Ayla Gresta) é uma designer de classe média baixa residente no Gama, uma das cidades mais remotas do Distrito Federal. Como quase todos os seus concidadãos, ela depende do Plano Piloto de Brasília para trabalhar, e ali convive com um círculo de pessoas tão plenas de privilégios que nenhuma delas, nem mesmo seu namorado Artur (Gustavo Halfeld), se dá conta da realidade que ela vive e dos problemas estruturais que ela enfrenta.

Mas esses são os aspectos, digamos, mundanos de sua existência, porque Karen, ao contrário da enorme maioria das pessoas de sua idade, sabe precisamente o que quer: fazer música. A jovem tem uma banda, a Animal Interior, na qual canta e toca trompete. A questão é que ela não faz a menor ideia de como transformar isso em seu meio de vida, e para sobreviver (e ajudar a família a fazer o mesmo), vive dependendo das migalhas do dinheiro sujo que enche as contas bancárias dos “empreendedores” do Plano Piloto.

Entre as mentiras do Plano e as ilusões propagadas pela sua turma – aquele delírio terceiro-mundista de que a Europa é uma terra onde correm leite, mel e oportunidades para músicos – Karen acaba deixando Brasília para ir, com os últimos recursos que lhe restam, à Alemanha. E a partir daí, quanto menos se falar do filme, melhor (mas esteja avisado que as entrevistas após o fim desse texto terão spoilers).

Não que “Ainda Temos a Imensidão da Noite” venha cheio de reviravoltas mirabolantes. Longe disso. É um filme até lento, se compararmos com a velocidade que a maioria das produções recentes costumam ter. Mas Karen e aqueles que cruzam seu caminho nessa jornada para fora de Brasília se depararão, de forma explícita ou sutil, com suas próprias fraquezas e com (muitas) desilusões. Em dado momento, o filme – que tem momentos notáveis de leveza e até breves acenos ao humor – fica denso e triste. Tudo isso, porém, é para propor a questão, que em maior ou menor profundidade todos vivemos: o que resta de nós quando não há mais como mentir para si mesmo?

O filme de Galvão entrega isso a partir da música, mas o espectador pode encontrar uma experiência análoga à sua, mesmo que jamais tenha segurado um instrumento musical. A música conduz toda a jornada da personagem com uma pungência notável. Todos os intérpretes dos integrantes da Animal Interior são instrumentistas: além de Ayla Gresta e Gustavo Halfeld (da YPU banda que nasceu durante as filmagens, assim como o casamento dos dois), completam a formação a baixista Vanessa Gusmão (Der Baum) e o baterista Hélio Miranda (Rios Voadores, Judas e outras agremiações brasilienses). As canções foram compostas por Munha da 7 e Nicolau Andrade e foram arranjadas pelos próprios atores, que ensaiaram até se apropriarem das canções. O registro delas em estúdio foi feito por ninguém menos que Lee Ranaldo (precisa apresentar?), que também colaborou nos arranjos. O resultado é algumas das melhores canções brasileiras de 2019. Sério.

O filme não é irrepreensível: o uso de não-atores funcionou muito a favor da música, mas nem sempre da interpretação. Ainda que bem preparados, fica evidente a inexperiência quando contracenam com atores mais tarimbados, como Marat Descartes e Fernando Teixeira (que entrega muito em uma atuação praticamente muda). Alguns (poucos) diálogos soam engessados. E Galvão filma Ayla Gresta como musa, mas, embora sua construção da Karen seja sempre cativante e realmente poderosa em certos momentos (especialmente o terço berlinense), nem sempre ela está à altura das pretensões do diretor.

Nada disso, porém, tira de “Ainda Temos a Imensidão da Noite” sua força. Se tanto, entrega mais força. Porque, como na melhor música, não são as arestas polidas que fazem de Karen uma personagem marcante e que nos encantam em sua trajetória. São justamente as falhas e o conflito com elas que fazem toda a diferença.

O filme ainda conta com uma divertida e bem-vinda participação de Clemente Nascimento (Inocentes, Plebe Rude), e breves aparições de outras bandas de Brasília. Ao contrário de muitos filmes apoiados em bandas, essas cenas não são gratuitas: mais que “mostrar bandas”, usam as canções e a criação musical para ajudar a compor a história a ser contada.

Com tudo isso, “Ainda Temos a Imensidão da Noite” é um filme especial, uma pequena fábula urbana sobre arte, cidades e pessoas encontrando seu espaço em um mundo cada vez mais consumista e gentrificado. Assista – no cinema, de preferência, não só para valorizar toda a edição de som, mas principalmente porque a vida não é só a porra da tela do seu computador.

ENTREVISTAS
Durante a pré-estreia do filme em São Paulo, em meados de novembro de 2019, o Scream & Yell sentou-se no anexo do Espaço Itaú de Cinema com o diretor Gustavo Galvão, o músico Lee Ranaldo e a atriz Ayla Gresta para conversar sobre o filme. As conversas foram longas e proveitosas, e abaixo seguem-se os melhores trechos delas.

GUSTAVO GALVÃO
Seu filme é sobre músicos ou sobre a música?
Por que não os dois? (sorri)

Um pode existir sem o outro, no sentido que há, por exemplo, a experiência do ouvinte.
É uma perguntai interessante.. Uma das melhores que ouvi (risos). Eu sempre quis fazer um filme sobre músicos. Eu os admiro muito. Eu não toco, mas já fui vocalista de banda punk em épocas de estudante e desde essa época fico de cara com quem tira som de instrumentos. O que me fascina é como alguém tira um som que te emociona, de onde vem isso e o que é preciso para atingir esse som. O processo com a banda… Pra mim, foi uma realização por si só! Ver as músicas nascerem… Rolaram uns momentos muito engraçados de a equipe técnica do filme vir falar comigo durante o processo, e eu não deixar falar: “Peraí que eu tô fazendo o filme agora também” (risos). Ver as músicas nascerem… Eu amo cinema, é minha vida, mas ele é muito duro às vezes, é pesado às vezes, é caro. Eu admiro essa liberdade na música, o momento da criação total. “Ah, a música vai ter 37 minutos…” Foda-se! Não tem ninguém dizendo que não pode. “A música vai ter dois minutos”. E por que não? É a admiração pelos músicos e pelo que eles fazem que originou o projeto. Então, respondendo sua pergunta, é mais sobre músicos. Talvez o cara do jazz, o cara do clássico, não se identifique totalmente, pense que pode fazer diferente, tocar melhor, mas a experiência acho que é comum a todos, a de ouvir, de ser visto, de mostrar o que tem. Ainda mais hoje em dia, em que você tem a internet com mais espaço para mostrar sua música, mas por outro lado tem muito mais pessoas mostrando as músicas delas. Está totalmente pulverizado! As pessoas não ouvem mais discos! Sabe (faz o gesto de pegar a capa de um vinil)? É um mergulho no trabalho.

Fica bem claro que as influências da banda estão no pós-punk na cena underground de Nova Iorque dos anos 80. Isso já era uma questão resolvida antes mesmo de fechar o elenco?
Antes de eu conhecer os músicos, eu já fazia pesquisas para saber o som que a banda teria que ter. Isso era uma coisa sobre os quais as pessoas envolvidas com o projeto falavam desde o começo, que essa música teria de ser do caralho. Porque ela é um personagem do filme, está presente em todo o filme. Então comecei a pesquisar referências diversas antes de a banda entrar. Quando a banda foi formada, outras referências vieram. É um naipe tão variado… A Ayla, por exemplo, não era musicista profissional, era arquiteta, e foi uma experiência interessante. Tivemos dois compositores diferentes, o Munha e o Nicolau, caras com formação diferentes. O Nicolau é de jazz, de formação em conservatório. Tinha uma influência de jazz e uma formação do pós-punk que… (ri) Bom, eu cresci nos anos 80 ouvindo pós-punk, ouvindo Joy Division (nota: Galvão está vestindo uma camiseta com a capa do álbum “Unknown Pleasures”). Não sei se você notou que as músicas têm dinâmicas…

Sim. Há muitos silêncios nelas.
E eu trouxe isso de Joy Division, de Sonic Youth, de Nirvana, Pixies…

Aliás, fiquei o tempo todo com a impressão de que era uma banda que, naquele cenário do noise ou do experimental dos anos 80 – Butthole Surfers, Husker Du – essas coisas, a Animal Interior poderia estar ali. Não soa derivativo, soa inserido.
Sim! E tem trompete! (risos)

Me lembrou inclusive o Transcargo, uma banda de rock guitarreira, densa, mas que tinha dois instrumentos de sopro que não faziam riffs nem fraseados, eram frases jazzísticas mesmo.
Maravilhoso! Não conheço essa banda, mas já gostei de saber! (risos) O trompete é um instrumento tão raro no rock que a gente pode botar em uma mão as bandas que vão usá-lo como parte da estética. Tem aquela banda americana Dog Faced Hermans, que a vocalista é também trompetista. Essa foi uma referência mais concreta para mim, por não ter o trompete no mesmo tempo do vocal. Em 2011 – óbvio que fiz isso – coloquei no Google “música rock trompete”. Nunca apareceu Transcargo, entende? É tudo muito raro, e isso foi importante. Entrevistei musicistas para escolher quem interpretaria a Karen, e quando expliquei o que eu queria para uma delas, saxofonista, ela me disse: “mas não tem ninguém fazendo isso aqui em Brasília!”. E eu respondi: “mas eu não tô fazendo documentário” (gargalhadas). Por que não pode pirar?

Ficou uma banda coesa, crível, mas fica difícil imaginar onde essa banda tocaria na Brasília de hoje. Mesmo os festivais que a cidade têm não constituem propriamente uma cena, porque as pessoas vão mais pelo evento que pela música.
Mas isso se reflete na falta de opções da cidade também. As pessoas precisam movimentar também. Tem isso no filme: o Julinho, dono do Buraco, fala que tinha não sei quantos confirmados para o show, mas vão apenas 19.

As redes sociais são muito enganosas em muitos aspectos. Entrevistei, na mesma semana, dois organizadores de festivais – o Gustavo Sá, do Porão do Rock; e o José Palazzo, do Cosquín Rock – e ambos me falaram que não se baseiam nas redes sociais para nada, porque elas não refletem a experiência real do cara que trabalha com música ao vivo.
É, o filme trata dessa apatia. Porque eu sinto… Bom, eu tenho 43, acho que somos da mesma geração (o repórter tem 41), e acho que estamos vivendo um momento de apatia total. Quer dizer, sempre cito o caso da China. Como você controla um bilhão e meio de pessoas? (empurra o celular para o canto da mesa). Dá a droguinha pra elas. As pessoas já estão assim aqui também. Elas acham que têm opinião, que participam, que estão fazendo as coisas, e não estão.

Vi há pouco um cartaz em inglês que dizia: “imagine que o Facebook e o Instagram são apagados. Bum! Você não é mais um ativista”.
(gargalhadas) É isso mesmo. Também por isso o título, aquela coisa mais concreta. Ainda temos a noite, sabe? Ainda temos esses espaços. Temos onde criar. Eu talvez seja velho, mas vejo de um jeito concreto, temos que encarar a concretude das coisas. Eu não faço filme para a pessoa curtir no Facebook. Não criamos as músicas só para as pessoas falarem que é legal.

E é curioso o quanto filme vai nessa concretude. Antes da entrevista, eu te disse que achava que o trailer não fazia jus ao filme. Quem vê o trailer pode pensar que é uma historinha sobre uma deslumbradinha de classe média alta que vai para a Alemanha para brincar de ser artista. Até porque Brasília – como muitas outras cidades, São Paulo inclusive – tem esse circuito da autossatisfação. De gente que brinca de ser artista e na verdade só está em busca de aprovação em rede social. Mas Brasília tem muito mais, e a Karen representa uma boa parte disso: ela ser do Gama, ter outro background, e ainda assim conviver em um universo super privilegiado que ignora a realidade dela ao mesmo tempo que tenta seduzi-la, até mesmo de uma maneira agressiva. É um filme sobre músicos, como você já falou, não uma investigação sociológica, mas me pareceu muito importante ter esse aspecto real do DF.
É um filme sobre músicos, mas também sobre Brasília. É por isso que ela sai de lá. Porque ela precisava desse distanciamento para entender onde ela estava vivendo. Esse distanciamento é meu também – eu moro em São Paulo hoje. Eu trouxe duas obsessões em um filme só: músicos e Brasília. Porque Brasília é uma cidade que exclui desde o começo, desde o ano zero. E o Gama eu escolhi a dedo, porque não é atendido nem pelo metrô. Mas conheci muita gente que vivia lá e ia pro Plano. Quantas horas por dia, quantos dias da sua vida, você perde em deslocamento? [Brasília] É uma cidade que exclui e que não escuta. As quadras são tratadas como condomínios fechados. Três garotos foram presos por tocar violão na quadra. Mas o espaço não é público? Eu cresci nas 207 Sul e depois na 211. Ali tinha um gramadão, e me lembro de três partidas de futebol sendo disputadas simultaneamente ali. Isso não existe mais. Eu fui assaltado três vezes na minha vida, e duas foram em Brasília. Porque não tinha ninguém na rua. A experiência da cidade precisa do contato com o chão, pra sentir, ouvir, circular. Mas o vazio também estimula: como a gente reage a esse vazio? Como se estimula? Talvez esteja vazio porque a gente deixou de usar a cidade. Tenho certeza que o desenho original – não o dos militares – foi feito para que a gente usasse a cidade. Mas nem deu tempo disso acontecer: veio o golpe logo depois e mudou tudo. Mas a gente ainda tem tempo de construir essa cidade. Mas se não fizermos nada, vai chegar o ponto em que não poderemos mais fazer isso. Quando será esse tempo?

LEE RANALDO

O que me impressionou na Animal Interior é que ela soa mesmo como uma banda. Não parece um projeto temporário pensado para um filme.
Para começo de conversa, eles são músicos. Isso ajuda. Não são atores tentando ser músicos. São músicos atuando, e assim puderam se entender muito bem musicalmente. Eles realmente soam ótimos.

Mas qual foi seu papel em ajudar a definir essa sonoridade?
Trabalhei nos arranjos, não fiz nada nas composições. Fizemos algumas mudanças nos arranjos porque a ideia era fazer com que a banda tivesse um som coeso. Duas outras pessoas escreveram as canções, e precisávamos trabalhar a banda para que eles se apropriassem desse material. Eles já estavam nesse processo com os ensaios, antes de eu chegar. Em alguns casos, levávamos a música para se encaixar em cenas específicas. Há canções em bares, em porões, em campo aberto. Então tivemos que garantir que a música fosse adequada ao momento cinematográfico, e queríamos também gravar a versão definitiva de cada canção para que ela pudesse entrar em um álbum. Meu papel foi apenas trabalhar com eles para formatar a canção. Dei sugestões como deixar alguns elementos mais ao fundo, mudar coisas menores. Mas eles já tinham elaborado muito o trabalho deles nas canções. Passamos umas duas semanas em estúdio gravando e refinando. Para mim, tinha muito a ver com capturar o que eles estavam fazendo e garantir que a gravação fosse justa e divertida.

Você já assistiu ao filme, acredito.
Sim, há bastante tempo atrás. Vi com legendas no meu computador.

As canções foram gravadas ao vivo para o filme. Não são usadas as versões de estúdio, salvo pela cena dos créditos finais. Você acredita que isso trouxe algo a mais?
Acredito que sim. O estúdio realmente os ajudou a tocar as canções ao vivo, porque tivemos essa busca por encontrar a energia e a execução definitivas de cada uma. Eles pegaram essa energia e esse conceito e levaram para essas apresentações ao vivo, é quase como se o estúdio tivesse sido um treino para isso. E foi ótimo que eles fizessem isso, em vez de apenas dublar com os registros de estúdio.

Peço desculpas por não ter pesquisado a fundo, mas queria saber se foi a primeira vez que você fez um trabalho dessa natureza: pegar uma banda imaginária e fazê-la real para um filme.
Bem, fiz muitas coisas com música para filmes, mas nada desse tipo. Bem, na verdade, fui um dos dos produtores-chave naquela série “Vinyl”, do [Mick] Jagger e do [Martin] Scorsese, trabalhando com bandas inventadas o tempo todo. Criamos músicas para a banda principal do programa e para outras bandas fictícias que apareceram. Acho que foi o único trabalho mais ou menos semelhante ao desse filme. Eu também toquei bastante nessas gravações.

O filme tem a ideia de que os artistas de hoje em dia estão muito acomodados. Especialmente no caso do rock, o que seria especialmente desmotivador, já que o rock tem muito a ver com provocação…
Sim!

… e pensando nessas décadas todas em que você já viveu, tantas transformações que você presenciou, queria saber se você concorda com essa visão do filme.
Há certa verdade nisso. Nem toda arte é feita e apresentada para provocar. Às vezes é apenas a exteriorização de emoções ou sentimentos. Mas alguns artistas definitivamente abraçam a tarefa de comentar a sociedade moderna, comentar onde estamos e onde deveríamos estar. Esse conforto meio que está por aí, sim, mas não espero que toda arte ou toda canção tenha esse comentário ou seja revolucionária. Mas essa necessidade existe. É uma pergunta um tanto difícil de responder. Quero em minha vida arte que nos empurre para frente e desafie a sociedade, e acho que há muita arte sendo feita agora que está fazendo isso. Mas algumas bandas querem apenas fazer boas canções, e é aí que a intenção deles para, enquanto outros querem discutir ricos e pobres, questões ambientais.

(A entrevista é interrompida pelo insistente ruído de helicópteros que se sucedem. Ranaldo se mostra incrivelmente surpreso com a informação, divulgada pela ANAC, de que a cidade tem quase quatro vezes mais aeronaves do tipo que Nova Iorque.)
Isso tem a ver com polícia, vigilância, serviços médicos?

Não. A maior parte é de uso privado.
Que loucura!

Você realmente se interessa pelo Brasil, não?
Muito!

E como foi passar tantos dias em Brasília?
(suspira e sorri) Foi ótimo! Foi, foi… Sabe, eu sempre quis ir lá para ver as obras do Niemeyer e outras coisas. Foi bem maluca a maneira como as coisas aconteceram. Fui fazer um show na cidade e logo depois da apresentação a Ayla se aproximou e disse: “estamos trabalhando nesse filme, você gostaria de vir e nos ajudar com as músicas?”. Eu disse que estaria muito interessado, e um mês depois o Gustavo [Galvão] me telefonou convidando para passar umas duas semanas e meia, talvez três. Foi super legal, pude explorar a cidade, fazer alguns amigos lá, e realmente me apaixonei. É tão bonita…

Você ouviu algo dos trabalhos autorais do Gustavo [Halfeld], da Vanessa [Gusmão) e do Hélio [Miranda]?
Sim, algumas coisas. Especialmente o YPU, a banda do Gustavo e da Ayla. Eles vêm me mandando as coisas há um ano, mais ou menos. Para mim, é encorajador ouvi-los. Sei que Gustavo trabalha em um estúdio (Casacájá), trocamos informações sobre técnicas de gravação. Acho que a banda deles está a caminho de algo, eles estão realmente buscando um novo som e acho que eles querem também tornar a banda do filme um projeto mais palpável.

AYLA GRESTA

Como foi o processo de fazer o Animal Interior se apropriar das canções? Porque vocês não compuseram…
(cortando) Eu compus algumas letras…

Certo, mas a banda não existia. E teve que soar crível, mesmo sabendo que ia ser algo de curta duração.
O que aconteceu é que a gente teve vivência de banda mesmo. A gente não tinha como pagar ensaio antes da produção, então montou tudo lá em casa, e tivemos vários conflitos que acho que seriam naturais em uma banda que tem instrumento de sopro junto com roqueiragem. A gente demorou a descobrir como escutar o trompete. Porque é um instrumento alto, mas tem todo o volume da guitarra. Foi um processo até conflituoso.

E você nunca tinha tocado em banda.
Não. Eu tinha experiência de leitura de partitura, mas não tinha experiência de pensar: “esse é o bridge, esse é o refrão”. Eu não tinha experiência de escutar os instrumentos de melodia, custava a entender em que parte da música eles estavam. E eles precisavam aprender a escutar o trompete, a entender coisas – simples, até, mas muito particulares do instrumento. Trompete é um instrumento transpositor, então quando a guitarra está em dó, o trompete está em ré. Essas complicaçõezinhas fomos resolvendo ao longo de três meses, e quando chegou pro filme, a gente tinha uma super química.

Eu conheço você musicalmente do YPU, e vê-la na pele rocker foi algo bem diferente. O quanto foi inventada essa persona da Karen?
Em termos de criação, eu nunca tinha ficado nesse lugar. Em termos de escuta, sim. Eu cresci escutando rock, na veia. A minha irmã era metaleira, eu ia aos ensaios dos amigos dela. Mas a Karen que me trouxe isso de artista de rock.

Pergunto porque até sua voz está bem diferente do YPU.
Isso era uma solicitação do Gustavo Galvão desde o início, que a Karen tivesse uma voz mais grave que a minha…

Outra coisa que a Karen tem é uma curiosa mistura de arrogância e inocência. Existe um idealismo que não é obsessão nem ideia fixa. No mundo cínico de hoje, existe espaço para alguém como ela?
(hesita) É… Acho que (longa pausa) Espaço não existe, não. Ou então o espaço até existe, mas é um pouco solitário, e para preencher… (longa pausa) Acho que essa potência da vontade precisa ser flexível para ver o que pode acontecer nesse espaço. Acho que foi o que a Karen precisou fazer para ter essa firmeza de propósito: viajar, sair de si, para encontrar as pessoas e entender o propósito dela.

Quanto Brasília é opressora e quanto é criativa?
O vazio pode ser o dois. Ele pode ser uma potência a ser preenchida, como pode ser “impreenchível”, por ser grande demais. A escala em Brasília não é humana. Você é um pontinho. Vê uma pessoa e não tem nem como falar bom dia. Ela está tão distante que não tem como você se aproximar para dizer oi. Atualmente, eu vejo esses espaços como um desafio mais opressor, e menos como potência. Mas existem movimentos de reunir pessoas para estar nesses lugares. Precisa de um esforço tremendo. Lúcio Costa fala que Brasília nasce de um gesto, de dois eixos se cruzando, e eu falo que é um bicho sem-vergonha: faz um gesto de caneta, um pequeno esforço para marcar território, mas o esforço que a gente tem que fazer para preencher aquele espaço? Qual o tamanho do gesto que temos que ser capazes para ser uma marquinha nesse espaço? Esse é o nosso desafio, principalmente por causa da questão excludente. A população do Plano Piloto é muito pequena, e desinteressada, privilegiada. E a cidade é tombada. Ela está cristalizada daquele jeito. Deveria haver um projeto que dobrasse a população do Plano Piloto, trouxesse mais gente. Mas como fazer isso? É difícil, né?

O YPU é o relacionamento entre você e o Gustavo [Halfeld, parceiro de banda que interpreta o personagem Artur] nasceram nas filmagens. Mas reza a lenda que isso veio junto com uma bad.
A gente se conheceu no filme, e o nosso filho até nasceu antes de o filme ser lançado (risos) Mas a bad foi gigante. Berlim foi muito pesado, foi a última parte a ser filmada, e a gente não teve a possibilidade de voltar e achar um caminho, como a Karen fez. A gente ficou lá em Berlim, e o desencontro Karen/Artur se repetiu simbolicamente entre a gente. Saímos numa noite de neblina, puta frio, sentamos em um bar esquisito e quando levantamos estávamos muito bêbados. Ele quis ir embora, saiu correndo para procurar o ônibus, e quando vi a gente tinha se perdido… Eu até caí no chão rindo, mas voltei na madrugada, sozinha, cheguei em casa sem a chave… Foi foda. A gente precisou sair de lá. Acabamos voltando ao Brasil pela Ásia, e o sol de lá foi tirando a gente daquilo.

O quanto o YPU é herdeiro do processo criativo da Animal Interior?
Muito do que a gente explorou como ambiente sonoro no Animal Interior a gente levou para o Ypu. Essa massa sonora. E uma música nova do YPU foi uma que o Gustavo compôs para o filme, ia ser uma canção do Artur em Berlim, mas o Gustavo [Galvão] odiou. Regravamos em uma versão eletrônica, inesperada, e essa será nossa próxima música a ser lançada. Isso que tem nas canções da Animal, os interstícios de trompete, “a vida toda retorcendo nas marginais”, como escrevi em uma das letras.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.