A nova cena portuguesa: O Martim

por Bruno Capelas, de Portugal

“Pop de rua, com um cheiro a roque e vodka de limão”. Parece uma mistura convidativa, não? Pois essa é a receita que a banda portuguesa O Martim fornece para os curiosos e intrigados com suas canções em seu site.

Criação do músico Martim Torres, um baixista que tocou jazz na adolescência, acompanhou B. Fachada em alguns de seus discos e resolveu agora ocupar um lugar à frente do palco, o projeto chegou ao formato álbum no começo de 2013 com “Em Banho Maria”, um retrato da vida jovem lisboeta. Estão lá, de modo bastante descontraído, as noites de bebedeira (“Cais do Sodré”) e os dias de ressaca (“Domingo de Manhã”), sempre narradas por personagens boêmios, apaixonados e um tanto quanto azarados.

“É um disco que tem como temática principal a derrota, e também o querer fazer as pazes com ela, quase como gozar da frustração”, disserta Martim em um papo animado com o Scream & Yell. Editado de maneira independente pela gravadora portuguesa Azáfama, “Em Banho Maria” foi gravado quase todo pelo músico, à exceção das baterias, e já estava pronto em meados de 2012, mas demorou a ver a luz do dia. O cantor explica: “Durante algum tempo estive em conversas com uma major, mas eles queriam limpar o meu som. Não aceitei, porque ele é assim meio sujinho, de rua mesmo (risos)”.

Para o artista, “a música portuguesa vive uma onda boa, e tive sorte de apanhá-la em seu apogeu e levar um grande empurrão com isso. Temos boas editoras, e o povo está atento ao que estamos fazendo”. Portanto, nada de folga. Para os próximos meses, Martim revela que irá lançar um EP de verão, com quatro ou cinco músicas. “A temática já é um bocado menos derrotista, e agora terei uma banda e sopros a me acompanhar”, diz ele, que já pensa também no sucessor de “Em Banho Maria”, planejado para ser gravado do outro lado do Atlântico.

“Seria um sonho gravar no Brasil”, comenta Torres, que afirma ter Caetano Veloso e Chico Buarque como fontes de inspiração, além de ter como banda favorita os Los Hermanos. “Em todos os meus shows grandes faço uma versão de uma música do Camelo ou do Amarante, e toda a discografia deles tem um significado importantíssimo na minha vida”, comenta o artista, recém-tornado fã de Cícero e Wado.

Na conversa a seguir, o lisboeta fala mais sobre a paixão pelo Brasil, a internet, a intransponibilidade da música portuguesa para a antiga colônia e conta mais histórias de Lisboa. Com a palavra, O Martim.

Antes de tudo, vamos lá: quem é Martim Torres e como ele se transformou em O Martim?

Martim Torres é um rapaz lisboeta que estuda música já há alguns anos, e que sempre quis fazer música em seu próprio nome, mas não sabia bem como. Estudei jazz durante muitos anos, então achei que ia fazer algo instrumental nessa área, mas recentemente descobri o mundo das canções. Através de nomes como o B Fachada e Tiago Guillul, fiquei maravilhado com o cancioneiro português, o cancioneiro rock, e percebi que o meu caminho era esse. Para o projeto não ter o meu nome todo, escolhi ficar só com o primeiro, e para ninguém se enganar, escolhi ser O Martim, um rapaz que lançou já um EP e agora tem o “Em Banho Maria”.

No teu primeiro EP, as canções eram recheadas de arranjos eletrônicos, mas essa opção parece ter sido abandonada no teu álbum, em prol de uma sonoridade mais orgânica. Foi proposital essa escolha?

Foi algo que foi acontecendo naturalmente. Quando comecei a fazer música, eu era muito fechado em casa, e por ser um fã das caixas de efeitos, acabei por gostar muito de produzir a minha música. À exceção das baterias, que captei nas salas de ensaios, todo o disco foi gravado lá em casa, comigo tocando todos os instrumentos. A minha ideia no início era fazer uma coisa mais sozinho, mas depois fui percebendo que queria uma sonoridade mais orgânica, como tu disseste bem, e então escolhi convidar alguns amigos para me acompanhar, e esta se tornou a nossa banda, algo que começou a se desenvolver por si só.

O que há de diferente em trabalhar nas canções sozinho em um quarto ou acompanhado de uma banda?

Não sei… estamos agora a falar do “Em Banho Maria”, mas este é um disco que para mim já aconteceu há muito tempo. Quando comecei a trabalhar com a banda, achei que queria que O Martim fosse não só um projeto meu, e as composições seguissem esse rumo, mas percebi ao longo desses meses que isso não é fácil. Os músicos com quem trabalho têm muitos projetos, e eles não podem se dar ao luxo de se dedicar tanto à minha música como eu, não é mesmo? Sendo assim, acabo eu mesmo trabalhando sozinho nas músicas, de maneira que há muito de mim nelas. Precisei passar pela banda para voltar às origens e perceber que só eu vou me meter nisso, mesmo que goste muito de tocar com a banda. Estamos preparando um disco agora para o verão, um EP com cinco faixas, e ele será com a banda, mas no próximo disco já estou a pensar outra vez em ir de volta às caixas de efeito e às mesas de sintetizadores.

O teu disco está cheio de citações e referências, e eu gostaria que você falasse sobre algumas delas. A primeira é o Cais do Sodré, lugar de Lisboa que era a antiga zona portuária e hoje abriga bares, boates e também algumas “garotas bonitas” e dá nome a uma das tuas músicas…

O Cais do Sodré é um lugar importantíssimo para esse disco. Quando comecei a escrever essas canções, estava em uma fase meio esquisita na minha vida. Sou de Lisboa, mas vivia no Porto, onde fui estudar três anos, e lá eu estava numa relação, que depois se tornou uma relação à longa distância. Voltamos para cá, e eu vinha muito iludido, porque eu queria viver com esta pessoa e levar uma vida a dois e ela não queria, então se quebrou o meu coração, foi um choque muito grande (risos). Resultou que eu ia afogar as minhas mágoas regularmente no Cais do Sodré, e acabou por ser uma espécie de segunda casa para mim, e naturalmente, uma fonte de inspiração. Em uma das canções eu digo que “o Cais do Sodré é aonde o homem vai perder a fé”, porque quando vais para lá, ainda vais à procura de algo, ainda há uma esperança, mas depois perdes mesmo a fé. Afinal, estás no Cais do Sodré, que é uma coisa meio degradante, e percebes que não há saída nenhuma. Mas acabou por se tornar algo interessante na temática do disco, porque, apesar de degradante, é um ambiente sempre engraçado, e que rende sempre boas histórias. Hoje em dia tenho saído menos à noite, estou mais calmo, já fiz as pazes com estar sozinho.

A segunda é o “Honda Blues”, que fala sobre a paixão por um carro – outro símbolo jovem bastante comum na música pop. Que carro é esse?

O Honda foi o meu primeiro carro, é o carro que ainda tenho hoje, e, coitado dele, porque já sofreu muito na minha mão. Não é que eu seja mau motorista, mas, não sei por que, nos acidentes que acontecem comigo, sempre sou eu o culpado. Com não sou propriamente rico e não consigo pagar bons consertos ao carro, tenho sempre uns consertos mais ou menos, que acabam por torná-lo uma coisa cheia de caráter (risos). Não creio que ele seja bonito, mas é um carro com muita personalidade. Gosto de acreditar que ele é como eu, tem lá algumas marcas e é vivido, e claro que tinha que ter uma canção tributo no meu disco.

A segunda coisa sobre essa música é uma referência à canção “Zé”, do B Fachada, um dos músicos mais importantes da nova geração portuguesa. Qual a razão dessa citação?

Há vários motivos. O Fachada tem um papel fundamental em tudo isto [a música que faz O Martim] e continuará a ter. É um grande amigo e é uma referência como compositor e como músico. Pra já, foi o Fachada que deu o título a esta canção. Eu ia chamá-la “O Meu Honda”, mas ele é que disse: “Não, não, isso é um blues, pois deve ser o ‘Honda Blues’”. E quando pensei numa música sobre um carro, lembrei-me logo do Cadillac do Fachada, uma das primeiras obras dele, e achei uma referência engraçada, pois “nem o Cadillac do Fachada tem tanto estilo como o meu carro”.

Mas como outra canção sua diz, “tu não és o B Fachada!”.

Exatamente! Por sinal, a história dessa música [“Tu Não És o B Fachada”] foi precisamente passada no Cais do Sodré. É claro que ela é um tributo ao Bernardo, mas também tem uma história por trás dela. Não posso entrar em muitos pormenores, mas pois… Eu estava no Jamaica [uma discoteca de Lisboa] e engracei-me com uma miúda, e começamos a falar, e tal. No fim da noite, a coisa estava quase acontecendo, mas ela, às tantas, me diz “epa! Não, não pode ser, não pode ser”, e eu tentava entender o que é que se passava. Depois de muito custo ela me explica: “Pá, não sei, Martim, é que tu não és o B Fachada!”. Então eu fiquei sem perceber se a miúda achou que eu era a coisa mais próxima do B Fachada que ela conseguiria ter, ‘tás a ver?

Aproveitando a deixa de mais uma música tua: se você não é um poeta, o que você é?

Não sei bem o que é que eu sou. Gosto de fazer essas canções e gosto de música, mas não posso pretender ser um poeta só porque agora escrevo música e letras que rimam, não é? Quando comecei a escrever, achava as coisas que eu fazia horríveis, pensava comigo: “não sei escrever, isso não é bonito”. Tentava escrever como os outros. Em uma conversa, o B Fachada me disse que eu tinha que escrever como eu mesmo: era preciso encontrar a minha linguagem, o meu dialeto, a minha maneira de falar. Só quando eu fizesse as pazes com isso eu faria música minha, entende? Acho que “Eu Também Não Sou Poeta” é uma maneira de eu sempre lembrar disso.

No show de lançamento do seu disco, em fevereiro, no Ritz Clube, você tocou “Lágrimas Sofridas”, dos Los Hermanos. A partir disso, quero saber como é que a música brasileira te influencia, se é que isso acontece?

Ela me influencia demais! Los Hermanos é a minha banda preferida. Adoro o Rodrigo Amarante e o Marcelo Camelo, aliás, estive com o Camelo há alguns dias, porque ele está gravando em Lisboa o disco novo do Wado, que conheci há pouco tempo e é brutal! Toda a discografia dos Los Hermanos tem um significado importantíssimo em minha vida, sobretudo o primeiro disco deles. Quando saiu por aqui, eu estava em um relacionamento, e parecia que todas as músicas tinham sido escritas para mim, aquela sensação que a gente tem sempre, não é? Sempre que faço um concerto grande, com a banda, toco uma ou duas músicas dos Los Hermanos, e tenho a intenção de, num futuro próximo, fazer um show-tributo a eles aqui em Lisboa. Mas há mais: Chico Buarque, Caetano Veloso, não passo uma semana sem ouvir um disco deles. É essencial, diria que vou beber muito nessa fonte, porque é brutal. Vou te confessar que tenho planos de, em janeiro (de 2014), ir ao Brasil gravar o meu disco novo. Ainda é uma ideia embrionária, não tenho contatos lá, mas muitos amigos meus moram no Brasil, e sei que as coisas se arrumam. Por enquanto estou preocupado em estar fisicamente lá, porque depois tudo dará certo.

Como a música brasileira chega em você?

Hoje em dia com a Internet é muito fácil ter acesso à música que tu procuras. Descobri recentemente uma coisa incrível que é o Spotify, e através dele descubro coisas bem interessantes. Outro dia digitei “Marcelo Camelo” no programa, e através disso ele busca artistas parecidos, gente com quem eu me identifico muito agora, coisas do Brasil que eu não fazia ideia que estavam surgindo recentemente. Um do qual eu gostei muito é o Cícero. Li recentemente uma entrevista com ele na qual ele dizia que tem muita sorte de viver nesta época, porque é fácil fazer a música chegar a todo lado, e concordo com ele.

Isso é verdade, mas desde que cheguei a Lisboa, percebo que os portugueses ouvem muito mais música brasileira do que o contrário. Quando eu mando alguma coisa para meus amigos no Brasil, muitos deles estranham o sotaque português. Você tem alguma explicação pra isso?

Não sei, acho que é porque é uma coisa que não acontece muito. Para nós, é mais natural, porque há gerações e gerações nós vemos as telenovelas brasileiras e crescemos ouvindo a língua brasileira, mas acho muito natural, sinto que faz parte. Não consigo explicar, se calhar é porque o Brasil é maior e tem maior quantidade de coisas a chegar aqui.

Acha que as tuas canções podem atingir o público brasileiro?

Não sei se podem, mas adoraria se pudessem! Um dos meus sonhos era ir tocar ao Brasil, fazer alguns shows por lá. Seria ótimo se as pessoas se identificassem com a minha música, óbvio!

Uma vez, o Caetano Veloso, quando perguntado sobre porque as bandas portuguesas não faziam sucesso no Brasil, sugeriu que era preciso que elas usassem um sotaque “no meio do Atlântico”. O que você acha disso?

É interessante, mas há aqui uma perda de identidade: elas deixariam de ser as bandas portuguesas para passarem a ser as Bandas do Atlântico. Mas olha só: está aí um nome giro para uma banda. (risos). Banda do Atlântico! Há de ser um projeto paralelo que vou fazer agora (risos).

A verdade é que a gente conhece muito pouco de vocês. Quando se fala em música portuguesa no Brasil, a maior parte das pessoas conhece apenas de nome a Amália Rodrigues, o Roberto Leal, o Madredeus, um pouco menos, e, quando se fala de rock, os Xutos e Pontapés.

Há tanto mais, não é? Pois, o Roberto Leal (risos). É um bocado frustrante, é uma pena, mas estou confiante que isso deve mudar em breve. Acho que devia haver algum evento qualquer que nos levasse lá, para apresentar um pouco essa nova geração que está surgindo aqui.

Há como você sugerir dois ou três bons nomes portugueses de sempre, para os nossos leitores brasileiros, então?

Hmmm… Vou começar com os Ornatos Violeta, que estão tocando agora aqui de fundo [no bar aonde acontecia a entrevista tocava “Punk Moda Funk”, faixa de abertura do primeiro disco da banda], que são essenciais! Eles fizeram uma fusão boa de rock com canções, um bocado de funk e umas cenas experimentais. Não havia muito disso por aqui quando eles apareceram. Há bandas antigas muito boas, outro dia me lembrei dos Jafumega, que nem sabia que ainda existia e é uma banda muito fixe (bacana). Há coisas antigas como os Heróis do Mar, ou o Rui Veloso, um clássico, mais puxado para o blues, e tens o Sérgio Godinho, essa malta toda muito boa. São bons nomes!

Vamos nós para uma pergunta hipotética, então: se você fosse gravar um cover no teu próximo disco, qual seria esse cover?

A escolha evidente seria o Los Hermanos, mas por que não uma canção de Chico Buarque. Ouvi agora há poucos dias uma coisa que me deixou com muitas ideias e me fez descobrir várias bandas brasileiras que foi o “Tributo a Los Hermanos”, da Musicoteca. Gosto muito de “Paquetá”, é uma que a gente toca muito. Sobre pressão, essa seria uma boa escolha.

E quem você gostaria de ver fazendo uma versão sua, e de qual música?

Ah, essa aí é mais difícil! (pensa muito). Essa é uma pergunta tramada, ê pá! Olha, gostava de ver algum artista brasileiro, não sei… seria um agrado enorme se o Cícero fizesse uma versão minha, qualquer uma, talvez do “Domingo de Manhã”. (risos).

Última pergunta: qual é a pergunta que eu não te fiz e você gostaria que eu tivesse feito?

(Pensa um pouco). Não me perguntaste se eu precisava de dinheiro! (risos)

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista, escreve para o Scream & Yell desde 2010 e assina o blog Pergunte ao Pop. Leia mais sobre bandas portuguesas no Scream & Yell aqui. As fotos que ilustram o texto são de Luís Macedo.

 

 

Leia também:
– B Fachada: “A música no Brasil está num estado muito diferente da portuguesa” (aqui)
– Miguel Fúria: “Ambiciono crescer, tornar-me maior, ser conhecido por muitas pessoas” (aqui)



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