Deolinda ao vivo em Lisboa

 

Fotos, vídeos e texto por Bruno Capelas

Fazer um show inesquecível é, por vezes, dançar sobre a corda bamba das coincidências. Não basta apenas uma meia dúzia de boas músicas com refrão agitado. É preciso um dia inspirado dos músicos que estejam no palco, um lugar com condições decentes de visibilidade e conforto, um bom sistema de som, um repertório encaixado e um público desejoso de que, à sua frente, se faça um momento especial. Aos olhos de um matemático, tal somatória parece impossível, mas, dia após dia, sempre há um artista capaz de realizar a conta com perfeição. Na primeira sexta-feira de maio (03), as cinco mil pessoas que lotavam o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, viram uma execução primorosa dessa operação não aritmética, realizada pelas mãos, instrumentos e vozes do grupo português Deolinda.

A apresentação em Lisboa foi a primeira do grupo na capital portuguesa após o lançamento de seu terceiro disco, “Mundo Pequenino”. Um passo à frente promovido com o incentivo do produtor Jerry Boys (engenheiro de som de R.E.M., Rolling Stones e Pink Floyd), o álbum vai além da dualidade fado-pop promovida nos dois primeiros discos da banda, o arrasador “Canção ao Lado” (2008) e o lírico “Dois Selos e um Carimbo” (2010), em busca de uma sonoridade ampla. Trocando em miúdos: para além das guitarras lusas e dos agudos típicos do gênero consagrado mundialmente por Amália Rodrigues, em seu novo trabalho, o Deolinda arrisca brincar com pianos, percussões africanas e arranjos de sopros. E, seguindo bem o ditado, quem não arrisca não petisca.

Ao abrir a noite com três canções de “Mundo” (executado na íntegra ao longo daquela noite), o grupo de Ana Bacalhau (voz), Luís José Martins (violão, ukelele, cavaco, viola braguesa) Pedro da Silva Martins (violão) e José Pedro Leitão (contrabaixo) mostra a que veio. Já nos primeiros minutos, a banda evita o caminho óbvio de iniciar os trabalhos com um hit, como quem está a fim de tornar as coisas mais difíceis, porém deliciosas, para o público. A inovação ao vivo é sensível: se antes os arranjos da banda eram muito bem tramados encontros de cordas, agora eles têm todo um colorido especial, graças aos novos instrumentos, criando uma bela base para que a frontwoman do Deolinda possa brilhar.

Fique avisado o leitor: em palco, Ana Bacalhau reluz como poucas cantoras conseguem fazer no mundo hoje. Intérprete de mão cheia, a linda lisboeta é capaz de tirar de sua garganta as emoções que quiser. A voz que dá vida às belas canções de Pedro da Silva Martins salta em poucos minutos da introspecção melancólica (”Não Ouviste Nada”, em belo dueto com o fadista Antonio Zambujo) à verdadeira festa de circo (”Doidos”), da ironia sutilmente feminina (”Pois Foi”) à dor de um mundo em cacos (”Medo de Mim”), para não falar no riso solto pelo estranho caso de amor entre uma mulher e uma tuba (“Fon Fon Fon”).

Versátil, Ana encaixa sua voz de maneira cativante em tudo o que canta, seja em um pop acústico da melhor qualidade (”Seja Agora”, que fica entre a canção de amor e a palavra de ordem no refrão “Se é pra acontecer, pois que seja agora!”) ou num fado autoral que não desagradaria os puristas (”Fado Toninho”, “Fiscal do Fado”). A vocalista do Deolinda demora pouco para ter o público todo do Coliseu dos Recreios nas mãos, extraindo dele palmas, gritos de “linda!” e coros gigantescos – como os de “Movimento Perpétuo Associativo” (que o Do Amor regravou em EP divulgado por este mesmo site), “Mal Por Mal” e “Um Contra o Outro”, três triunfos para ninguém presente botar defeito.

A bem da verdade, é difícil botar algum reparo no repertório atual do Deolinda. Sempre é de se temer quando um grupo inclui novas canções em um setlist já bem ajeitado (como mostra bem o DVD “Deolinda ao Vivo no Coliseu dos Recreios”, lançado em 2011), mas esse não é o caso aqui. O espetáculo do grupo português só tem a ganhar com as adições de “Mundo Pequenino”, um disco recheado de canções que, apesar de bastante pessoais, são extremamente atuais (e universais). Três bons exemplos, recebidos com bastante apreço em Lisboa, são o culto ao corpo (“Doidos”), o cotidiano invadido por estrangeirismos (o boy-meets-girl de “Semáforo da João XXI”) ou a aula de gramática e de relacionamentos contemporâneos (“Concordância”).

Isso para não falar na porrada na cara que é “Musiquinha”, do refrão preciso “Já que a ninguém espanta ver que isto já não anda, ouve a musiquinha e abana essa anca”). Ponto mais alto do novo disco da banda, a canção foi executada no final do primeiro ato com grande sucesso (e bela coreografia de Ana Bacalhau). Como se fosse pouco, ela ainda foi repetida no terceiro (!) bis (espontâneo!) do espetáculo, pedido ensandecidamente pelo público lisboeta que não arredava pé do Coliseu dos Recreios e não se fartava de aplaudir aquela que é, seguramente, a maior banda de Portugal hoje em dia – e que, mesmo assim, passa longe de ser minimamente conhecida na Terra de Santa Cruz.

É complicado lidar com essa perspectiva. Afinal, desde que D. Pedro I (ou seria IV?) gritou no Ipiranga, parece que a rota de troca de informações culturais entre o Oceano Atlântico se tornou uma via quase de mão única da América para a Europa, alargada pelas telenovelas da Globo e suas trilhas sonoras. O que chega da terrinha ao Brasil é muito pouco, e quase sempre uma imagem desfocada e estereotipada da cultura portuguesa – Roberto Leal que o diga. Há muito para ser apreciado na obra do Deolinda, uma banda que fala o mesmo idioma musical (aquele que mescla o pop com a tradição do seu lugar) de Tulipa Ruiz, Nevilton, Wado e Marcelo Camelo. O sotaque e milhares de quilômetros de água salgada não podem ser barreira para tal descoberta além-mar. O momento não poderia ser mais propício, quando a banda portuguesa busca reduzir distâncias no globo terrestre ao cantar sobre um mundo pequenino. Se é pra acontecer, pois que seja agora!

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista, escreve para o Scream & Yell desde 2010 e assina o blog Pergunte ao Pop

Leia também:
– Entrevista – Deolinda (2013): “A individualidade é uma coisa muito rara hoje em dia” (aqui)
– “Lisboetas falando sobre seus problemas falam mais sobre o Brasil que os brasileiros” (aqui)
– Pedro Salgado em Lisboa: Deolinda ao vivo em 2011 e o triunfo do fado pop (aqui)
– Download: Do Amor regrava música do Deolinda. Baixe o EP “Projeto Visto” (aqui)

6 thoughts on “Deolinda ao vivo em Lisboa

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