A Educação Sentimental do Kid Abelha

A Educação Sentimental do Kid Abelha
Sob O CEL #8
por Carlos Eduardo Lima

Por onde andará Fernanda? É o que sempre me pergunto quando ouço algumas canções desse segundo disco do Kid Abelha. Lembro-me de entrar na sala de aula daquele primeiro ano do segundo grau em 1985 e me deparar com várias pessoas desconhecidas. Muitos colégios do Rio de Janeiro naquele tempo não ofereciam o segundo grau e os alunos migravam para o Santo Agostinho com o objetivo de terminar os estudos antes de partir para a faculdade. Pois então, uma dessas pessoas novas era a Fernanda. Guardo nitidamente o primeiro momento em que a vi. Ela usava uma capa de chuva de nylon vermelho e estava sentada numa carteira mais à frente. Quando virou e pude ver seu rosto, emoldurado por seus cabelos negros e meio curtos, houve uma pausa no tempo. De alguma forma, ainda sou capaz de voltar até aquele instante e pensar que, até então, meu mundo era totalmente diferente do que passaria a ser, logo no instante seguinte.

“Educação Sentimental”, o segundo disco do Kid Abelha, foi a trilha sonora desse tempo. Não ache piegas porque todos têm um tempo assim em suas lembranças. E, antes que perguntem, não, eu e Fernanda não namoramos, ficamos ou algo no gênero. Fui condenado ao pior dos cárceres, ser seu amigo e quase confidente. Pude ficar cruelmente perto dela pelos três anos subsequentes, sabendo de muitas coisas da sua vida, seus amores, suas dúvidas, suas esperanças. Eu não fazia parte desses planos, apenas era um conhecedor profundo deles. Lembrar de “Educação Sentimental” é, antes de tudo, voltar pro meu colégio e tentar entender o que aconteceu ali, o que me trará a ciência da música e desse disco tão especial.

O Kid Abelha E Os Abóboras Selvagem se formou na PUC-Rio, situada no bairro da Gávea. Diziam que a universidade era um prolongamento natural do meu colégio, quase todo mundo se formava e ia pra lá. Sendo assim, posso discorrer com baixa margem de erro sobre o que ia pela cabeça de Paula Toller e Leoni, então um casalzinho como muitos, dentro daquela lógica oitentista da zona sul do Rio. A banda tinha caído no gosto da juventude que só buscava musiquetas de amor e algo para dançar coladinho nas festinhas de playground. Mais que isso: o primeiro disco do Kid, “Seu Espião” (1984), fez sucesso galopante na estrutura de divulgação do rock carioca naquela época: Radio Fluminense FM, Circo Voador e Programa do Chacrinha. Além disso, o Kid Abelha se apresentou no Rock In Rio e cravou Paula como potencial sex symbol dessa turma, ao lado das meninas da Blitz, Marcia Bulcão e Fernanda Abreu. O lado negativo dessa atitude totalmente carioca e pop foi que a crítica especializada, particularmente a paulistana, reduziu a banda a um mero produto sem qualquer valor. A facção carioca não conseguiu fazer frente a esse ruído e o Kid entrou no estúdio pra gravar o segundo disco meio mordido e pensando como poderia revestir seu “rock de bermudas” com um certo verniz de seriedade.

A foto em tom sépia na capa de “Educação Sentimental” já dava a pista de que o Kid Abelha não era (ou não queria ser) uma mera bandeca superficial. O single “Lágrimas e Chuva”, que antecedeu o disco, também mostrava um amadurecimento musical evidente. O título do álbum fora extraído de um livro do escritor francês Gustave Flaubert, escrito em 1869, e dava certa unidade conceitual à coisa toda. A idéia era musicar letras (quase todas de autoria de Leoni) que falavam das famigeradas relações amorosas que regiam os casais. Isso era um prato cheio para uma criatura romântica que estivesse inserida nesse contexto de 1985/86, maltratada pelas injustiças do amor platônico. As canções eram tão bem feitas e dotadas de um conteúdo tão apropriado para quem era adolescente naquele tempo que fica difícil analisar tudo com isenção. Leoni chegava ao requinte de assumir a figura feminina na posição de narrador, algo que acontece com naturalidade em “Garotos”, que poderia ser um “manual dentro do manual”, dessa vez destinado apenas às meninas, sobre como exercer o fascínio sobre os jovens homens. Paula canta com distância, entediada, com a frieza do conhecimento de todo o escopo amoroso cabível, restando ao ouvinte apenas aquiescer com o que é dito.

As duas versões da faixa-título são canções totalmente diferentes entre si, sendo que a mais bonitinha, “Educação Sentimental 2”, traz uma introdução “decalcada” (pra ser gentil) de “London Calling”, do Clash. É uma lista de planos pro futuro, que se desfazem ao vento sob a ameaça do fim do amor. Por mais que alguém pensasse o futuro e imaginasse que morreria velho ao lado do marido/esposa, o imponderável, esse implacável agente secreto do destino, não deixaria certeza alguma ao jovem casal, a não ser a noção de que nada haveria de certo ali. Em “Amor Por Retribuição” há o escrutínio de uma relação já no fim ou que se estabeleceu entre pessoas que não deveriam estar juntas. “Sempre inventando mais provas de amor, e só me abraça pra sentir o efeito, acho que a sua inspiração está em livros de Direito” é um verso que nocauteia a metade interesseira do casal, aquela que pode estar destoando, justamente por estar junto apenas por interesse ou insegurança. “Uniformes” é lenta e triste, fala sobre padrões de comportamento que a gente tem que seguir quando está nessa idade e como isso pode nos esconder de quem realmente nos interessa. Aqui o amor verdadeiro é o inimigo mortal desses “uniformes sociais”. Em “A Fórmula do Amor”, também gravada por Leo Jaime (que também participa da versão do Kid), é feito outro manual, dessa vez para os homens. O que deve ser feito, o que pode ser dito, se é indicado dançar, que roupa usar, enfim, tudo que realmente interessa na hora de impressionar a menina, mas que nada disso é decisivo diante do imponderável (olha ele aí de novo).

A facada no peito, com requintes de crueldade, é dada em “Os Outros”. Essa é uma das mais belas canções da geração oitentista do rock nacional, digna de figurar num hall of fame de sentimentos expressos em português, relativizando a importância de outros tratados emocionais vertidos na língua de Camões. “Chega de Saudade”, “As Canções Que Você Fez Pra Mim”, “Atrás da Porta”, entre outras músicas definitivas sobre o fim do amor hão de não se importar em conceder a “Os Outros” um lugar honorário nessa galeria. Leoni escreve a letra na pessoa de uma menina que lamenta o fim de um amor que provavelmente durou o bastante a ponto de parecer eterno. A ex-namorada não tem qualquer pudor ou medo de admitir que poderia passar a vida ao lado daquela cara que se foi e diz o quanto era bom estar ao lado dele. Os amigos não entendem o fim de tudo e, por mais que ela procure esquecê-lo ao lado de outras pessoas, ao fim das contas, só é possível ter mais certeza que “depois de você, os outros são os outros e só”. A melodia é uma beleza, o arranjo dá ao sax de George Israel um papel de contraponto ao que é dito e os exemplos dados sobre situações de um cotidiano que foi experimentado por todos, é atordoante. Cinemas, flores, mãos, perfumes, artifícios corriqueiros de um cotidiano que é atemporal, mas que só servem para dar a certeza de que as mais elementais situações da vida se modificam decisivamente se a pessoa certa não está ao seu lado. E se isso mostra-se definitivo (pelo menos até o coração dizer que sim), tudo pode ser mais complicado.

Lançado em 12 de maio de 1985, esse disco deu ao Kid Abelha outra fornada de sucessos e, sim, conferiu à banda uma nova dimensão de prestígio, mais distante da inocência adolescente que lhe fora conferida por conta de “Seu Espião”. Foi o último disco com a presença de Leoni, que deixou a banda após um episódio inóspito (Paula o acertou com um pandeiro nos bastidores de um festival no Rio) formaria o Heróis da Resistência em 1986/87 para depois partir numa simpática carreira solo. Em termos musicais a banda estava mais madura, talvez pela entrada de Claudio Infante na bateria ou pela produção de Liminha. O fato é que as canções são o forte desse trabalho do Kid, mais que qualquer outro quesito. Cheiros, momentos, gostos, sonhos, átimos, choros no travesseiro, provas de matemática, enfim, praticamente tudo vem à mente ao longo dessas dez músicas.

PS: Esse texto é dedicado a algumas pessoas: Fernanda, Denise, Cris, Fabiana, Lívia, Almir, Louco, Sidônio, Arthur, Jaime, Ratton, Felipe, Flavinho, Edson (in memorian), Merlino, Aninha, Bentes, Geninho, Emir, mãe, vô, vó e Maria (todos in memorian). As lembranças de vocês vivem pra sempre, viram?

PS2: Quem disse que haveria frieza jornalística ou algo do gênero por aqui?

PS3: O Mac já deve ter linkado em algum lugar um outro texto meu sobre o disco. Procurei evitar comparações entre ele e esse novo compêndio. Leiam e digam o que acham.

Leia também:
– Kid Abelha: “É em ‘Os Outros’ que o bicho pega mesmo” (aqui)
– Rock Brasil, 10 Discos, 30 Anos: “Educação Sentimental” (aqui)
– Kid Abelha: “Pega Vida” é uma coleção de pop songs deliciosas (aqui)

LEIA OUTRAS COLUNAS DE CARLOS EDUARDO LIMA NO SCREAM & YELL

32 thoughts on “A Educação Sentimental do Kid Abelha

  1. Texto maravilhoso! Esse disco é o melhor do Kid Abelha pra mim. ‘A Fórmula do Amor’ era a ‘minha música’! Hahahaha, grandes canções! Hinos adolescentes que não perderam a importância, 26 anos depois! Valeu! Vou ouvir direto (de novo!).

  2. Do Kid Abelha gosto daquela música que diz: O nosso amor se transformou em bom dia…
    A banda em si sempre fez um pop competente, embora pueril.
    Lembro da Paula no final dos anos noventa gozando as bandas contemporâneas a sua dizendo: Nos anos oitenta ninguém queria ser pop, hoje todo mundo quer.

    PS: Se essa Fernanda aparecesse por aqui seria bem legal, hein Cel?

  3. Zé, essa máxima da Paula, sobre “ser pop” vai muito de encontro ao tom sério que foi cobrado do Kid no início da carreira e que eles tentaram mudar com este segundo disco. Gosto bastante dos quatro primeiros discos do kid Abelha.

  4. Pra vc ver, Ismael.
    A qualidade do pop, não só mainstream, anda tão fajuta que o Kid Abelha vira foda.
    O tempo ensina, sem dúvida. Mas, qual o parâmetro?

    PS: Fernando, por coincidência ouvi essa música ontem numa rádio enquanto estava no carro.

  5. O Kid Abelha não “virou foda”. A banda era extremamente legal nessa época do Leoni. A partir do quarto disco, as coisas pioraram um pouco mas ainda é possível achar uma ou duas canções legais em todos os trabalhos dos caras.

  6. Eu concordo comigo, mas não discordo do Cel.
    Embore ache que uma ou duas canções boas em um disco seja migalha.
    E ao contrário de Cazuza migalhas não me interessam.
    Na era do ipod o que eu gosto mesmo é de um disco inteiro bom.
    Para os que conseguem isso eu pago pau.

  7. Certo, Mac, tô falando de acordo com o comentário do Cel.
    Da banda ser ou não ser foda eis a questão.

  8. Entendi. Do “Tomate” pra frente a coisa perde foco mesmo, já que a banda tinha perdido o principal compositor e tal com a saída do Leoni e o número de canções boas caiu por álbum, mas no “Educação Sentimental” eles acertaram muito (quatro grandes hits, dois quase hits – “Uniformes” e “Educação Sentimental I” -, um hit na voz de outro – A Fórmula do Amor – e as três faixas que sobram eram bem boas também (apesar de Conspiração Internacional e, principalmente, Um Dia em Cem clonarem demais o Pretenders).

  9. A banda era foda até o quarto disco.
    Desse disco, Kid saíram “Dizer não é dizer sim”, “Agora Sei” e “Todo Meu Ouro”.
    O quinto, Tudo é Permitido, tinha “Grand’ Hotel”, “Não Vou Ficar”, “No Seu Lugar” e “Fuga nº2”.
    O sexto, Iê Iê Iê, tinha “Em 92” e “Eu Tive Um Sonho”.
    O sétimo, Meu Mundo Gira Em Torno de Você tinha “Te Amo Pra Sempre” e “Na Rua Na Chuva Na FAzenda”…

    E por aí vai. A banda foi foda até o Tomate. A partir do Kid, ficou mais inconstante mas ainda capaz de fazer boas pop songs. Simples, né?

  10. “apesar de Conspiração Internacional e, principalmente, Um Dia em Cem clonarem demais o Pretenders”

    pô, Marcelo, clonar o Pretenders é bom, vai – vide “Muros e grades”, daquela banda uruguaia, uns anos depois. e “Conspiração internacional” é a versão universitária de “O mundo anda tão complicado”… 🙂

  11. Boas canções de pop perfeito, como muitas do Kid Abelha, fazem falta no atual rock nacional. Digo rock, pois o pop nacional, hoje, é o sertanejo.

  12. Grande texto CEL, mais uma vez e grande disco também. Me lembro da época do lançamento, degustando cada uma das músicas e o Leoni é um grande cara.

    Pena que junto com um grande colunista vem umas 20 pessoas tentando avaliar algo que não tem o mínimo conhecimento ou vivência. Ninguém que nasceu nos anos 80/90 vai conseguir entender estes discos lançados nos anos 80, discos ótimos. Não é MAC?

  13. Tu é uma exceção Palandi e mesmo que não fosse, só por aquele texto da Blemish x My Bloody tu poderia fazer qualquer comentário 😉 Aliás, onde está ele?

  14. Voltei pra ler a parada aqui… hehe
    Um dos textos mais bonitos que já li sobre um disco nacional. Várias canções marcantes dessa banda

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