Literatura: As histórias de Jeff Tweedy

por Leonardo Tissot

[Este texto contém spoilers – leia por sua conta e risco]

Qualquer pessoa em sã consciência diria que Jeff Tweedy está muito mais para Bob Dylan e Neil Young do que para Kim Gordon e Johnny Ramone. Certo? Bem, concorde ou não com essa afirmação, em seu livro de memórias, “Let’s Go (So We Can Get Back): A Memoir of Recording and Discording with Wilco, Etc.” (Dutton), um dos maiores compositores americanos da atualidade lembra mais o estilo da ex-baixista do Sonic Youth e do guitarrista dos Ramones em suas respectivas autobiografias – “A Garota da Banda” e “Commando” – do que o dos músicos aos quais é mais frequentemente associado.

Tanto Dylan (em “Crônicas – Volume 1”) quanto Young (em “Neil Young – A Autobiografia”), escreveram suas memórias em uma linha do tempo que viaja pelos anos e décadas conforme lhes convêm, pouco preocupados com datas e a exatidão dos fatos, e muito mais interessados no impacto e nas sensações que o texto provocaria nos leitores – como era de se esperar dos grandes compositores que são, aliás.

Como escritor de prosa, Jeffrey Scot Tweedy (nome de batismo), por sua vez, vai direto ao ponto. Na maior parte do tempo, o autor segue linearmente os acontecimentos e revela “causos” de seus 51 anos de vida, desde a infância em Belleville – uma cidadezinha de 40 mil habitantes no estado americano de Illinois –, aos anos de juventude nos quais cruzava os 30 minutos que separavam sua terra natal de St. Louis (Missouri), onde assistiu a shows de X e The Replacements, entre outras bandas fundamentais de sua formação, no palco do Mississippi Nights. A região também foi onde o músico deu seus primeiros passos na carreira, primeiro na banda The Primatives, e, depois, como baixista do Uncle Tupelo.

Ainda assim, o livro, embora tenha passagens convencionais, busca inovar na linguagem em diversos momentos – Tweedy compartilha antigas letras de músicas, situações são contadas em formato de história em quadrinhos, diálogos entre o cantor, a esposa e o filho Spencer são relatados na íntegra, entre outros truques editoriais que mantêm o leitor interessado e fazendo aquilo que lhe cabe: virar as pouco mais de 300 páginas da obra de forma voraz.

Mas não se engane – apesar da mão pesada dos editores em vários momentos, o autor narra suas memórias como apenas ele poderia fazer. Em “Let’s Go…”, o músico lembra muito mais o contador de histórias de canções clássicas do alt-country como “Passenger Side” e “Hate It Here” – de “A.M.” (1995) e “Sky Blue Sky” (2007) –, do que o hermético compositor de letras como “I Am Trying To Break Your Heart”, de “Yankee Hotel Foxtrot” (2002), ou “Laminated Cat”, do projeto paralelo “Loose Fur” (2003).

Livro vai de anedotas banais da juventude aos momentos mais obscuros da vida do compositor

Tweedy é ora engraçado, ora sarcástico. Por vezes sério, mas fundamentalmente sincero nas memórias registradas no livro. Passando pelo relacionamento próximo com a mãe, JoAnn, e pelo alcoolismo do pai, Bob, chegando às primeiras namoradas e experiências musicais, o livro é revelador até mesmo para o mais estudioso fã do Wilco.

Pela primeira vez, Tweedy entra em detalhes sobre o acidente de bicicleta sofrido aos 12 anos, que quase lhe custou uma perna, e o consequente verão “desperdiçado” preso dentro do próprio quarto. Foi durante este período de molho que o futuro líder do Wilco voltou a se debruçar sobre um violão que havia ganhado de presente aos seis anos, (re)começando uma relação que mudaria sua vida para sempre.

Outro acidente, ocorrido mais adiante – sofrido por seu irmão Greg nas ferrovias onde trabalhava ao lado do pai –, proporcionou o “trampolim” que Tweedy precisava para dar um salto como músico: após receber uma indenização de milhares de dólares, o irmão mais velho deu de presente o primeiro instrumento de qualidade do caçula – uma Fender Telecaster preta e branca novinha em folha, “igual à de Joe Strummer”.

O livro ainda traz curiosidades que todo fã – tanto de Wilco como de cultura pop em geral – aprecia: o bar Lounge Ax, de propriedade de Susan Miller (esposa de Tweedy desde 1995 e mãe dos dois herdeiros do músico, Spencer e Sammy), serviu como cenário para o filme “Alta Fidelidade”, de Stephen Frears, baseado no romance homônimo de Nick Hornby. A cena na qual o personagem Rob Gordon (John Cusack) assiste a uma apresentação de Marie De Salle (Lisa Bonet) foi filmada no bar, então localizado em Chicago, onde Tweedy passou a viver após o traumático fim do Uncle Tupelo, em 1994.

Foi na cidade dos ventos que Tweedy se recuperou do impacto emocional sofrido ao ser largado pelo ex-companheiro de banda, Jay Farrar – que, na época, apenas avisou o empresário da banda, Tony Margherita, que “detestava Jeff” e, por isso, deixaria o Tupelo. Anos mais tarde, Tweedy descobriu em uma entrevista de Farrar o motivo do ódio (dica: teve a ver com uma garota).

Os trechos mais barra-pesada ficam por conta do período em que Tweedy se viciou no analgésico hidrocodona (usado para tratar as constantes enxaquecas), em seus relatos sobre os ataques de pânico que o debilitavam desde a juventude e que foram tanto inspiração quanto obstáculo nas gravações de “A Ghost Is Born” (2005), as duas batalhas de Susan contra o câncer, e as perdas da mãe, em 2006, e do pai, em 2017.

Outra revelação é o verdadeiro momento “#MeToo” vivido por Tweedy aos 14 anos de idade, quando teve sua primeira (e traumática) experiência sexual, com uma mulher 11 anos mais velha. No cenário tipicamente machista em que vivia, seus amigos o consideraram um herói, enquanto ele hoje entende por que se sentiu tão perturbado com a relação – ainda que a mesma tenha ocorrido, segundo o próprio, de forma consensual.

O livro ainda reúne histórias e curiosidades das mais variadas – a obsessão do falecido ex-guitarrista da banda Jay Bennet com ketchup, o seu vício em pílulas (que levou Tweedy a demiti-lo do Wilco durante as gravações de “Yankee Hotel Foxtrot”); os arrependimentos como a demissão do baterista Ken Coomer, por meio de um recado enviado pelo empresário; os encontros inusitados com Joey e Dee Dee Ramone, Peter Buck e Michael Stipe (R.E.M.), Johnny Cash, Bob Dylan, Sean “Puffy” Combs e Dean Ween; as vivências como produtor da cantora Mavis Staples e a parceria com o maluco beleza Jim O’Rourke; e até uma “ameaça” a Dave Grohl: “Nas duas vezes em que perdemos o Grammy nesta categoria (rock), o prêmio foi para os Foo Fighters. O que me leva a apenas uma conclusão. Se o Wilco um dia quiser ter toda a atenção e adoração que merece, eu preciso matar e comer o coração de Dave Grohl”, brinca Tweedy.

Hora de dizer apenas “vamos lá!”

“Let’s Go…” é um retrato honesto de um artista que, longe de querer se colocar num pedestal, deixa claro que é um homem comum, repleto de qualidades e falhas, como qualquer um de nós. E, mais do que um tributo a si mesmo, o livro é um agradecimento a todos aqueles que o rodeiam e que tornaram sua carreira possível – inclusive os fãs.

No dia 30 de novembro, Tweedy lança seu primeiro álbum solo de composições inéditas, “Warm” – no livro, o músico revela que não teria sido capaz de compor letras tão pessoais quanto às do novo trabalho, se não tivesse passado pela experiência de dois anos escrevendo suas memórias (confira o clipe do single “Some Birds“)

O livro termina com um convite, ao mesmo tempo em que Tweedy faz referência ao título da obra (uma expressão usada por seu pai): “Acho que finalmente parei de me preocupar em voltar de algum lugar menos confortável – algum lugar onde eu tenho certeza de que ficarei extremamente infeliz. Acho que estou começando a ficar ‘OK’ em qualquer lugar onde esteja. Acho que estou pronto para dizer apenas ‘vamos lá’.”

– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista especializado em comunicação corporativa e produção de conteúdo
– As três fotos que ilustram o texto são de Liliane Callegari, registros do show do Wilco no Auditório Ibirapuera

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