por Karina Lacerda
Chester Brown é um quadrinista canadense de 52 anos que publica comics desde 1983, mas não é muito conhecido por aqui. Após levar um pé na bunda, ele resolve que não quer mais ter namoradas. Mas também não quer abrir mão da vida sexual. A solução? Pagar por sexo (“Paying For It”, 296 páginas com edição nacional pela Conrad Editora). Você pode até não ser entusiasta do sexo pago, mas eis um serviço imprescindível em qualquer tipo de sociedade (principalmente na falta do amor romântico, o ideal).
À primeira vista você pode imaginar Chester Brown como uma cara weirdo e misógino, sem respeito algum pelo sexo oposto e que prefere pagar uma acompanhante ao invés de correr o risco de ter o coração despedaçado mais uma vez. Mas ele não é um cara passional, desses que cortaria os pulsos depois de um rompimento inesperado. Quando a namorada diz pra ele que está interessada em outro, ele leva tudo de forma tão tranquila que faz lembrar Meursault, o personagem de “O Estrangeiro”, de Camus.
No começo, a ideia que se tem do quadrinista ao virar as primeiras páginas é a de um cara sem emoções e sem sentimentos. Ledo engano. O que não falta nele é sensibilidade. E se, provavelmente, você nunca fosse concordar com Bruna Surfistinha em alguma coisa, Chester nos faz ver que temos, pelo menos, um ponto de vista em comum com a moça. Além de nos fazer reavaliar vários (pré)conceitos.
Chester faz da graphic novel um retrato sincero da sua experiência com as profissionais do sexo que cruzaram seu caminho. A abordagem inicial, os detalhes dos encontros, sua própria performance (nem sempre memorável), a avaliação do serviço – tudo precisamente documentado, mas com o cuidado de não revelar nenhum detalhe pessoal que possa identificar quaisquer das moças citadas.
Muita gente imagina as moças que fazem esse tipo de serviço como umas pobres coitadas sem opção, recorrendo ao corpo para colocar na mesa o leite das crianças. Ou então damas que seguem algum esquema estilo Hilda Furacão: fazer da prostituição um tipo de punição por algum pecado horrível. Porém, Chester conduz o relato por outro caminho: para ele, as prostitutas prestam um serviço capitalizando seu corpo, sem dramas, para fazer um pé de meia. Tudo que elas precisam é sossego pra trabalhar.
Ele não é a favor da regulamentação da profissão, nem está interessado em receber nota fiscal pelo serviço. Seu argumento é que a mulher é dona do corpo dela e que a prostituição é uma profissão como qualquer outra. Se a mulher resolve receber uma grana em troca de sexo, é problema dela, do cliente e de mais ninguém, obrigado. O apêndice do livro é uma verdadeira surra com luva de pelica nos argumentos batidos das pseudo femininistas e conservadores reacionários de plantão.
Brown também não acredita no conceito de amor romântico. Ele “culpa” o interesse geral pelo amor a uma má interpretação da literatura do século XII, que perpetuou o conceito de amor idílico. Trazendo a discussão para o século XX é possível relembrar (e concordar) Rob Fleming e culpar a música pop que ouvimos desde sempre e os filmes do John Hughes, que muitos de nós víamos na Sessão da Tarde (que seguem o conceito de final feliz perpetuado pela época de ouro de Hollywood).
Mas nem tudo são flores: Chester é questionado pelos amigos e por ele próprio, que fica na dúvida em vários momentos se a opção por fazer do sexo uma relação comercial é realmente válida a longo prazo. Em alguns momentos ele se sente solitário e vazio. Mas quem não se sente assim de vez em quando, mesmo estando num relacionamento incrível? De qualquer forma, segue firme no seu propósito de pagar por sexo e a defender seu ponto de vista de diferenciar o amor idealizado do que acontece de verdade nos relacionamentos. Para ele, relacionamentos duradouros e sólidos existem, mas são a exceção, não a regra.
Mais do que uma história sobre encontros com prostitutas, Chester faz um retrato sensível da sua busca por contato físico sem a necessidade de estabelecer um vínculo afetivo e um verdadeiro tratado contra o amor romântico. Em um dos quadrinhos ele confessa o quanto foi mesquinho com suas ex-namoradas (quem nunca?), mas se mostra um cliente respeitoso e educado com as profissionais. Afinal, por que não ser? Prestadores de serviços merecem todo nosso respeito, não é mesmo? Ele chega ao ponto de fazer contas e concluir que sai mais barato pagar uma prostituta do que bancar uma namorada. E com a vantagem de que, com a prostituta, o sexo é garantido.
“Pagando por sexo” é um desses livros que dificilmente te deixam indiferente. Se você gosta de quadrinhos com pegada autobiográfica no estilo de Harvey Pekar (se você não viu “Anti Herói Americano” você está três degraus abaixo da humanidade, mas ainda a tempo de você corrigir isso) ou Robert Crumb (que escreveu o prefácio), irá se deliciar.
Ah, e onde nos corremos o risco de concordar com a dona Bruna? Chester, depois de experimentar os serviços de mais de vinte prostitutas, acaba fiel aos serviços de Denise. No livro ele diz que continua usando seus serviços por mais de seis anos e numa entrevista já admitiu que os dois ficaram amigos e que está disposto a fazer mais do que apenas dar dinheiro para ela, e ela está disposta a fazer mais do que apenas sexo pago com ele. Parece um relacionamento estável e romântico… e o dinheiro envolvido é só uma forma de fetiche. Bruna diz mais ou menos isso em uma entrevista sobre o livro para o UOL: “Tive a impressão de que é justamente isso que ele sempre busca nas prostitutas. Quando gosta de uma acompanhante, faz questão de revê-la sempre que possível, como se estivesse sentindo saudade e com vontade de conhecê-la um pouco mais. Ele não busca apenas sexo, mas uma companhia feminina.” Será?
– Karina Lacerda (@naoeakazinha) é jornalista, trabalha na TV Cultura.
Leia também:
– “Memórias de Minhas Putas Tristes”, de Gabriel Garcia Márquez, por Jonas Lopes (aqui)
– Cinema: “L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância”, por Itamar Montalvão (aqui)
– Cinema: “Cheri”, de Stephen Frears: o sexo na Belle Epoque, por Marcelo Costa (aqui)
– Cinema: “Viver a Vida”, de Godard: precisando se prostituir para sobreviver, por Mac (aqui)
– A Literatura Erótica: um catálogo incrível de aventuras carnais, por Danilo Corci (aqui)
– Cinema: “Sonhos Roubados” e os caminhos que levam à prostituição, por Roberta Ávila (aqui)
Bela postagem! Pensei nas mesmas referências (como Camus e Nick Hornby) quando li.
E engraçado é que é uma graphic novel que também é autoficção, algo que a academia estuda bastante, e ainda tem a questão de esmaecimento dos afetos (por isso que lembrei do “O Estrangeiro”), de uma pós-modernidade cheia de nuances, que poderia render um ótimo trabalho de literatura, se não fosse a academia ser tão fechada pra esse tipo de arte.
Não leia se não leu o livro!
Tá. Mas no final ele acabou se apaixonando por uma garota de programa e ficou com ela. Embora ela não transasse com mais ninguém, apenas com ele, Chester pagava por essa exclusividade, certo? Ele dava uma grana mensal pra ela pagar suas contas e tudo mais. Ou seja: ela era puta paga, mas apenas dele. Ele confessa ser apaixonada por ela, mas sabe que a recíproca não é verdadeira. Chester tem total ciência de que se parar de pagar o sexo acaba.
Então, na realidade, Chester sempre esteve enganado e se enganando. Sua teoria sobre a falência e os males do “amor romântico” está correta. Ele pôs em prática e provou esta certeza pessoal por muito tempo. A certa altura do livro, fica a impressão de que ele “se achou” e que, se mantiver a disciplina e a cabeça no lugar, nada pode dar errado.
Mas algo deu errado. Alguma coisa fugiu do script. Chester se apaixonou por uma garota de programa. Coisa que acontece com muita frequencia com caras quem transam frequentemente com a mesma garota, principalmente se ela for muito bonita, muito gostosa e tiver o diferencial de ser estudante universitária ou, de preferência, já tiver o canudo na mão.